O sentimento de que os abusos da ocupação são tolerados internacionalmente aumentou à medida em que o grupo que integra a missão começou a circular e a se defrontar com uma clara segregação da população palestina. Um jovem militar palestino, de 24 anos, morador de Jericó, disse viver em um estado de apartheid. Apesar das distâncias não serem grandes na Palestina, o rapaz nunca têve permissão para entrar em Jerusalém, a capital sagrada dos muçulmanos, dos cristãos e dos judeus. Nem ele, nem os palestinos que vivem fora de lá, desde que Jerusalém Oriental foi ocupada e anexada por Israel após a Guerra dos Seis Dias, em 1967.
A representante da Autoridade Nacional Palestina para a administração de Jerusalém Oriental, Lara, explicou que a autorização de entrada em Jerusalém é assegurada a poucos, o que é terrível para os palestinos que têm Jerusalém por capital. Na sexta-feira santa, muitos palestinos cristãos desejam rezar na Via Dolorosa, mas isso não é para eles. Postos de controle e leis sionistas impedem que automóveis de placas verdes circulem pelas vias expressas e conservadas que só podem ser usadas por carros de placa amarela, cor a indicar que seus ocupantes são israelenses.
Quem vive em Jerusalém, e não tem identidade israelense, se mantém em uma espécie de limbo. O que lhe da direito de viver em sua própria cidade é uma permissão de residência concedida por Israel, desde que o morador ou moradora não se case com uma pessoa de outra parte da Palestina – porque a permissão não é extensiva à um novo membro da família que venha de fora. E se a pessoa sair de casa para viver em outra parte, perde a casa e a permissão de residência. Em outras palavras, a sua moradia não lhe pertence, mas a Israel. Para reformar um velha casa, ou construir um puxadinho que seja, é preciso pedir permissão, mas esta nunca vem. É uma burocracia que pode se arrastar por mais de cinco anos. E quem constrói sem esperar pela resposta, pode ser expulso com família e mobília, e ter sua casa confiscada ou inteiramente demolida. Isso acontece com frequência.
Jerusalém Oriental é toda cercada de assentamentos, e de áreas onde a construção é proibida por motivos de toda ordem. A alegação pode ser um repentino interesse arqueológico mal explicado ou um novo detalhe de zoneamento que muda conforme a ocupação determina. Enquanto isso, a ocupação da área por colonos é assustadora. Em novembro de 2012, quando a ONU aceitou a Palestina como Estado Observador, Israel reagiu anunciando a construção de 2 mil novas casas para colonos, sendo 1.650 delas em Jerusalém Oriental. É um abraço de urso que estrangula a cidade histórica, impede sua expansão da população palestina e expulsa seus moradores mediante violência.
No início da tarde de quinta-feira, o grupo de visitantes decidiu conferir de perto o que ouviu de Lara, pela manhã. Ao circular nas áreas dos assentamentos espalhados aos arredores de Jerusalém, colados a habitações palestinas que aos poucos vão desaparecendo, foi preciso parar para ouvir o velho Nabeel, de 71 anos, disposto a relatar em detalhes uma história realmente difícil de acreditar.
Ele mora em uma das casas espremidas pela presença dos condomínios israelenses, entre os quais uma população judaica ortodoxa circula tranquilamente. Na verdade ele mora na metade dos fundos de sua casa e conta que uma certa noite, soldados chegaram à sua porta, mandaram a família sair, e começaram a retirar sua mobília. A parte da frente foi entregue na mesma hora a judeus vindos dos Estados Unidos. A parte de trás foi tomada por vizinhos solidários, que se amontoaram para impedir que tudo fosse invadido. E assim ficaram os habitantes da casa partida ao meio, separada por uma parede: o velho Nabeel e sua família, e os colonos judeus recém chegados, vizinhos que não se falam, a não ser para troca de xingamentos.
O direito de Nabeel de permanencer em sua casa está no aguardo de decisão judicial, e o mesmo acontece em relação à casa de um vizinho próximo, que se recusa a sair. Mas vários outros palestinos que moravam na área já foram expulsos.
Uma outra noite, colonos chegaram para derrubar uma cerca da casa de Nabeel e foram flagrados por ele. Por tê-los visto e ter reclamado, o morador foi levado à delegacia. E lá acabou preso, com mãos e pés atados, sendo liberado só no dia seguinte. Sua mãe e irmã foram espancadas e hospitalizadas, uma delas com traumatismo craniano. Ele mostra fotos de cada uma dessas situações, que ele passou a registrar e a documentar. Em uma delas, um colono brinca no balanço de um playground enquanto uma mãe protesta, ao lado de um menino assustado. Daeel relata que o israelense havia acabado de arrancar a criança do brinquedo, com violência, dizendo que aquela terra é para os judeus, não para os palestinos. E depois o brinquedo, que havia sido instalado pela família do menino, foi destruído.
Aos poucos, integrantes da missão humanitária se deram conta de que não há meras situações de conflito entre israelenses e palestinos, mas todo um cotidiano de horror, onde um dos lados não tem direito de reagir. Entre Ramallah e Jerusalém, a humilhação é infligida por meio de um check point armado em corredores de barras de ferro, onde uma por uma as pessoas atravessam grades giratórias e submetem pertences às esteiras detectoras de metal. O tempo de espera é aquele que a polícia israelense quiser.
De Jerusalém, o grupo partiu para Cobar, uma comunidade próxima à Universidade de Beizet, onde os moradores estavam em festa. Todos queriam celebrar a libertação de Mohamed, um jovem que permaneceu por 14 anos na prisão, por fazer parte da resistência à ocupação. Ele explicou ter orgulho de lutar por liberdade para seu povo. E falou ao lado de seu filho, que tem a mesma idade do seu tempo de prisão. Mahamed foi preso quando se dirigia ao hospital, onde a mulher de 17 anos deu à luz.
Mohamed de camiseta vermelha e seu filho, ao seu lado/Foto: Lúcia Rodrigues
O rosto de Mohamed está desenhado por stencil em vários muros do bairro. Para todos, assim como para seu filho, ele é um herói que sobreviveu à prisão injusta e arbitrária. Agora, ele relata sua história em uma grande tenda armada pelos moradores para que toda a comunidade caiba e compartilhe o momento de alívio trazido com a sua libertação. A mãe de Mohamed, visivelmente emocionada , diz que está feliz, porque não queria morrer sem ver o filho livre. Mas ela ainda tem medo, de que ele volte à prisão, porque ele mesmo admite que não é possível parar de resistir. “Quantos aqui já foram presos?” Pergunta uma integrante da missão. Para surpresa, vários adultos jovens erguem as mãos, enquanto os mais jovens riem da situação – como se dessem risada de um futuro que espera por eles também.
rosto de Mohamed nos muros / Foto: Moara Crivelente
Enquanto a comunidade de Cobar passou seu dia de festa, a quinta-feira foi dia foi de preparativos israelenses para a celebração de seus feriados santos: dois jovens palestinos foram presos em Ramallah, um foi ferido. Dois foram presos em Hebron. Um preso em Jerusalém, outro ferido.
Na quinta-feira de madrugada, a casa da parlamentar de esquerda, Khaleda Jarrar, na região central de Ramallah, foi invadida por seis soldados e ela foi levada. Líder feminista e proeminente defensora dos direitos humanos, ela é dirigente da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), o mesmo partido de Mohamed
Gaza, 3 de abril de 2015
Fotos:Gal Souza