A atividade aconteceu na manhã de sexta-feira (24/1), na Procergs (centro de processamento de dados do governo do estado do Rio Grande do Sul), na cidade de Porto Alegre. O evento faz parte do Seminário Internacional do Fórum Mundial de Mídia Livre, inserido na programação do Fórum Social Temático 2014: Crise do Capitalista, Democracia, Justiça Social e Ambiental, ocorrido entre 21 e 26 de janeiro.
Sem rodeios, Claudia Wanderley, da Casa de Cultura Digital de Campinas (SP), uma das proponentes da roda de conversa, abriu o bate-papo colocando as dificuldades que encontrou ao tentar propor um trabalho de inclusão digital em um quilombo urbano daquela cidade. “Quando começamos a procurar quem são as protagonistas em mídia digital, tivemos muita dificuldade de encontrar essa rede. E por isso estou aqui, vim pedir ajudar para a rede, tanto para ajudar esse pessoal de Campinas, que montou um laboratório ‘afrohacker’ pra fazer rodada hacker de mulheres, oficinas para discutir as tecnologias e a realidade das mulheres, como também para entender o que está acontecendo. Quem está conseguindo construir um trabalho e quem não está conseguindo? E porquê de não está conseguindo”, indagou.
Bia Barbosa
Para dar um rumo certo na prosa, Bia Barbosa, do Intervozes, pontuou que existem dois debates inseridos nesse contexto. O primeiro é a luta histórica das mulheres no movimento feminista contra o machismo é fundamental desconstruir a imagem da mulher na mídia comercial, onde está relacionada invariavelmente ao sexo ou, quando não, a um papel secundário. O outro, ainda parte das bandeiras feministas, é a apropriação dos meios de comunicação, das tecnologias e a ocupação do espaço na internet e a produção de conteúdo em pé de igualdade com o sexo oposto. “Não somente para produzir conteúdo feminista, mas também para produzir conteúdo geral. Tem um debate grande no Brasil de que as mulheres não necessariamente devem só produzir conteúdos de gênero na internet. Mas, sim, produzir conteúdos para discutir todas as agendas, para ocupar os espaços”, explicou Bia.
Dríade Aguiar, 23 anos, coordenadora de Comunicação da rede Fora do Eixo, e uma das coordenadoras da Mídia Ninja, concorda com Bia que há de fato duas disputas em jogo: “Temos ocupado com maestria as redes abertas de comunicação livre e tem onde nós somos retratadas [na mídia tradicional]. Uma é a disputa de como a gente se retrata, se coloca na comunicação, que é onde a gente tem poder. Eu trabalho em dois movimentos de comunicação, onde temos muito cuidado em como retratar as mulheres, principalmente porque a gente trabalha em mídia que é de confronto, nas ruas, as repórteres mulheres passam por uma experiência diferente, se comparado com outros meios de comunicação”.
Dríade Aguiar
Desde os 16 anos, quando entrou no Fora do Eixo, Dríade vem passando por um processo de formação que atribui à vivência nas casas coletivas, onde jovens convivem cotidianamente em um ambiente colaborativo onde todos trabalham, fazem amizades e festas para manter a rede de colaboradores que compõe o Fora do Eixo, que atua com cultura e comunicação. Hoje, ela retribui contribuindo na formação de novos colaboradores e colaboradoras (que também são maioria) para atuar nas mesmas funções que homens: fotógrafas, redatoras, vídeo-makers. Ela explicou que existe uma diferença entre a Mídia Ninja e a Casa Fora do Eixo. Enquanto na primeira “vai muito da vontade pessoal de cada um que entra para trabalhar ali dentro, você acaba tendo momentos da pessoa escolher em não ir pra rua [para coberturas midiáticas] ou querer ir pra rua e não ser suficientemente formado para lidar com aquilo”. Mas, na Casa Fora do Eixo, “ocorre um processo muito forte de formação da mulher ao entrar, para ela se sentir empoderada, para ser essa mulher que pega o microfone”.
“Aos 23 anos, eu, mulher, negra, vinda de uma comunidade pobre, viajo internacionalmente para falar do Fora do Eixo. Eu sou a prova viva de que o Fora do Eixo empodera as mulheres em um processo natural”, declarou a midialivrista fazendo uma crítica a alguns movimentos que para cumprir a equidade de gênero, acabam “empurrando” a mulher para falar em nome do movimento, tornando a experiência traumática. Ela aproveito para convidar os presentes a participarem do primeiro congresso de mulheres do FdE, que ocorrerá em março deste ano.
Falta de aptidão ou de interesse?
Rita Freire, da Ciranda e também integrante do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, lembrou que ainda hoje a tecnologia é vista como “coisa de homem”. “Naturalmente mexeu com cabo, tomada, botão, a gente já pede a um homem, não é Banto”, brincou se referindo a Rafael Banto, colaborador em tecnologia da Ciranda. “As mulheres não têm menos aptidão ou menos interesse em tecnologia. Mas, fazemos as perguntas erradas quando tratamos disso. A gente está sempre se perguntando se elas estão ocupando os espaços. Mas temos que perceber que é uma dificuldade das mulheres de terem suas atividades reconhecidas, que é um problema estrutural da sociedade”, completou.
Banto aproveitou a deixa para dar uma informação que para muitas e muitos ali presentes era desconhecida: a primeira pessoa a desenvolver um software foi uma mulher, a Ada Lovelace. “Então, na real, tem mulher na tecnologia desde o início”, exclamou Banto.
Claudia e Rita
Para exemplificar suas dificuldades, Claudia relatou a experiência de organizar uma atividade sobre mulher e tecnologia no Fórum de Cultura Digital na Casa de Cultura Digital de Campinas, a qual ela faz parte, que ocorrerá no final de março. Ao propor a atividade, alguns homens sugeriram nomes de outros homens para falar sobre o tema durante a atividade e ela reagiu: “Não. Não quero fazer uma atividade sobre mulher e tecnologia em que a gente vai para fazer o cafezinho”.
A professora Solange Mittmann, do Instituto de Letras da URGS, que atua com análise do discurso e, mais recentemente, com projetos de autoria na internet, também chegou junto na roda. “Existe o discurso ‘de’ e o discurso ‘sobre’. E isso que a Claudia trouxe é um bom exemplo sobre o discurso sobre, dos homens falando sobre as mulheres. Como a mídia tradicional fala sobre as mulheres. Agora, como é que nós mulheres falamos de nós mesmas. Como é o discurso das mulheres. Para mim, esse encontro nosso é muito importante sob esse ponto de vista, para a gente sair do discurso sobre para falar do discurso de mulheres”, comentou Solange.
Já no Intervozes, Bia Barbosa e as outras integrantes do coletivo sentiram a necessidade de criar um setorial feminino para fortalecer as mulheres e equilibrar as relações de gênero. O mesmo também ocorre em outros coletivo, bem como nas redações de jornais, onde, apesar de ser formado majoritariamente por mulheres, ainda possui um discurso sexista.
“A gente sempre insiste que temos que fazer um trabalho de formação de base na universidade para, ao chegar no mercado de trabalho, tenhamos uma visão diferente e contribuir para desconstruir esse lugar da mulher”, lembrou.
Como exemplo de política pública que pode contribuir para reduzir a desigualdade, Bia citou a luta pela implantação do Plano Nacional de Banda Larga para universalizar a internet, que tem como objetivo conectar as camadas menos favorecidas da população brasileira. Os movimentos da sociedade civil defendiam que deveria haver uma política específica para a mulher. “No conjunto da sociedade civil defendíamos a universalização da internet, por ser um meio de comunicação essencial e, portanto, todos devem ter acesso, mesmo os que não têm como pagar por ele. Já tinha uma disputa grande com o poder publico que queria a massificação”, contextualizou. “Mas se a gente não fizesse ações específicas para levar a internet, o uso da tecnologia para as mulheres, a gente corria o risco de, numa política genérica de massificação da internet, de ampliar a desigualdade ao invés de combate-la, porque o caminho natural, sem uma política que garanta a apropriação das mulheres pela tecnologia, seria a apropriação muito maior dos homens do que das mulheres”, concluiu Bia, referindo-se à relação patriarcal já estabelecida na sociedade.
A luta é contra o capitalismo
Terezinha Vicente, que integra a Ciranda e a Marcha Mundial das Mulheres, lembrou que os princípios defendidos pelas redes (na internet), de compartilhar e trabalhar em um sistema colaborativo, “estão em total consonância com os princípios feministas, que é de colaboração, de organização horizontal e não vertical, de paz, de combate à guerra, de algo mais ligado à vida”. “A gente ter sido colocada para dentro da casa, para cuidar de criança, nos tornou pessoas mais ligadas à defesa da vida, do meio ambiente. Somos nós quem estamos mais engajadas às transformações, que acaba sendo uma luta anticapitalista, que é o que foi colocado aqui nas diversas falas”, declarou Terezinha, enfatizando que os valores feministas também deve ser apropriados pelos homens. Por isso afirmou que não é correto falar somente em movimento de mulheres, mesmo porque há muitas mulheres que são tão machistas quanto os homens.
Erika Campelo, da organização francesa Ritimo, contou sobre sua experiência naquele país, onde mora e atua com movimentos sociais. “Na França não é muito diferente daqui. A escala não é a mesma, mas a violência simbólica contra a mulher é”, disse. Com relação à apropriação tecnológica, citou uma das frases que sempre costumam dizer a quem começa a atividade em um dos projetos de formação e acompanhamento de organizações na apropriação de tecnologia: “Nem todo mundo precisa saber programar. Mas a gente tem que entender que a técnica tem uma opção política por trás, e quais são as escolhas políticas que estamos fazendo”.
Erika Campelo
Jerry de Oliveira, um dos coordenadores do Movimento Nacional de Rádios Comunitárias (MNRC), também de Campinas, enfatizou o protagonismo das mulheres no movimento pela democratização da comunicação e reforçou a defesa da luta anticapitalista empreendida principalmente pela mulher. “A gente percebe que vocês conquistaram esse protagonismo não por uma imposição, mas pela capacidade política de enxergar a luta de classe na comunicação”. “Temos um debate muito sério que está colocado aqui: a gente não vai conseguir o espaço da mulher em um sistema capitalista, não vamos conseguir a democratização da comunicação sem fazer luta de classe. O que fica claro aqui é que precisamos alterar o formato acadêmico jornalístico, o formato acadêmico machista nas universidades. Não tenho duvidas que o debate que nos vamos fazer sobre a democratização da comunicação, da mulher na mídia está dado e que chegou o momento de nós irmos para às ruas”.
Muitos participantes sugeriram expandir o debate para as áreas periféricas, saindo do eixo Porto Alegre-Túnis. “Quem assisti a mídia livre é um grupo muito restrito. Essa mensagem ainda não está chegando para a massa da população”, provocou Daniel Landau, colaborador da Mídia Ninja. “Essa é uma provocação que cabe a nós. Porque o Fórum Mundial de Mídia Livre não ocorre na zona norte do Rio de Janeiro, no interior do Mato Grosso, no Nordeste. Esse circuito Porto Alegre-Tunísia bate num teto, tem uma limitação”, provocou Dríade.
Mas ali mesmo naquela sala, alguns dos grupos presentes já demonstram que pelo menos partes dessa periferia marginalizada está se movimentando. A jovem Vanessa, do coletivo Camará, de São Vicente, litoral paulista, foi uma das últimas a se manifestar. Um pouco mais tímida que os demais, ela contou que o coletivo Camará é formado por meninas e jovens mulheres que atuam com a juventude de regiões mais pobres: “Vim ao Fórum Mundial de Mídia Livre em busca de informação, de experiências de outros grupos para manter no cotidiano a experiência de comunicação que iniciamos há alguns anos”.
Para atingir o global, tem que haver o local. As conexões estão só começando.
A PósTV transmitiu ao vivo a toda a programação do Seminário Internacional do Fórum Mundial de Mídia Livre. Assista a essa roda de conversa e as demais aqui
Abaixo, a roda de conversa “Mulheres livre e mídias livres”