Preso por ter amigos e filho na favela

O encarceramento dos pobres, dos moradores das favelas, dos negros, é cada dia maior; isso quando não morrem, nas chacinas por grupos armados e nos chamados “autos de resistência”, que também servem para legalizar assassinatos pelos militarizados policiais. Isso vem ao encontro deestratégias dos setores de segurança do mundo, os mesmos que industrializam as guerras, cometem genocídios de povos, constroem a cada dia mais presídios e muros no mundo, desenvolvem principalmente a proteção e defesa dos muito ricos, um mercado que cresce cada vez mais. A violência com que as pessoas são tratadas, o número de inocentes encarcerados, é muito pior quando vistos mais de perto.

Gabriel Scarcelli Barbosaescolheu estar ao lado dos muito pobres, resolveu ter um filho entre eles, trabalhar como motoboy, divertir-se com eles. Filho de mãe professora universitária e pai engenheiro,passou por boas escolas, mas não quis fazer faculdade. Preferiu trabalhar.Há seis anos estava num trabalho fixo numa famosa pizzaria no período noturno, além de trabalhar com entregas em outro restaurante no período do almoço desde que soube que seria pai. A mãe de seu filho é moradora da favela, e isso é imperdoável aos olhos desta sociedade preconceituosa e desigual. Este foi o único crime que Gabriel cometeu, ser amigo e ter um filho na favela.

A história toda começou em agosto de 2013, quando o Delegadoda Polícia Federal de São Paulo Kleber Massayoshi Isshiky foi assaltado e conseguiu assumir a investigação do caso, numa estranha troca do responsável. As investigações passam a ser conduzidas pelo próprio delegado que figura como vítima, mas isso é só uma das irregularidades. Nas relações estabelecidas entre a Polícia Civil e Polícia Federal, também estranhas neste caso, o delegado Isshiky consegue incriminar vários rapazes da Favela Mário Cardim, entre eles Gabriel. A vida de um jovem trabalhador, de sua nova família, de seus pais e mesmo dos amigos, transformou-se numa saga kafkiana.
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Ao arrepio da lei e dos direitos humanos

Apesar de nunca ter posto o pé numa Delegacia dePolícia; apesar de ter trabalho lícito e com registro na mesma empresa, há 6anos; apesar de ter residência fixa, morando com sua progenitora; enfim, apesarde ser cidadão honrado e de bem, vê-se o paciente agora, abruptamente, nacontingência de responder a (3) três processos-crimes pelo delito de roubo. Tudo pela simples circunstância de aparecer emfotografias postadas nas páginas do Facebook de alguns jovens acusados de roubarem acarteira e os celulares (um funcional) de um Delegado da Polícia Federal deSão Paulo Kleber MassayoshiIsshiky que, mesmo vítima, foi nomeadoencarregado do Inquérito”.

Este é um trecho do texto do pedido de habeas corpus em favor de Gabriel, primoroso ao mostrar a série de irregularidades legais e morais que levaram à sua prisão, apesar dele ter todos os requisitos para responder os processos em liberdade. O roubo ao delegado foi há quase dois anos e a perseguição não parou. É chocante ver como são forjadas as circunstâncias e “provas” dos delitos cometidos, baseadas em fotos de facebook (jovens parecidos, vestidos no estilo típico dos “manos”, jaqueta larga e boné, rosto nem sempre nítido), que são apresentadas às vítimas, induzidas a reconhecer alguém. Foi assim que o delegado conseguiu, espalhando um álbum com fotos de jovens da comunidade encontradas na página de um dos acusados pelo roubo do celular, “montar” uma quadrilha que assaltaria à mão armada, roubando veículos na Vila Mariana.

Um ano depois, o Delegado Isshiky representou pela decretação da prisão temporária deles e pela busca domiciliar genérica na comunidade. No dia 4 de novembro de 2014, ocorreu uma operação para fazer a detenção dos rapazes moradores da Favela Mario Cardim, que utilizou muitos aparatos e policiais federais. Nesse mesmo dia, o próprio delegado/vítima foi à residência onde Gabriel morava com sua mãe à sua procura, mas ele não estava. Passados quase dois anos, o delegado vítima conseguiu prender Gabriel, no último dia 21 de junho, exacerbando na violação dos seus direitos, ao invadir seu local de trabalho, junto com mais dois homens à paisana, sem nada explicarem. “Quando os funcionários pediram um número de telefone para que sua família fosse avisada”, relata Ianni, “os policiais disseram que ninguém seria avisado e afirmaram, ainda, que a pizzaria ficaria sem entregador, pois iriam prender todos os motoboys daquele local”. Ressalte-se que esse tipo de procedimento criou dúvidas e angustias na família, nos funcionários e no advogado, por ter características semelhantes a de sequestro. Por algumas horas, seus pais ficaram sem notícias e sem noção do que poderia ter acontecido com o filho.

A maioria não é classe média

Há outros inocentes conhecidos de Gabriel envolvidos e presos nesse caso, e sem famílias com posses para lutar por sua liberdade. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), no relatório “Sobre o Uso da Prisão Provisória nas Américas”, denuncia que, no Brasil, mais de 40% dos presos não tiveram julgamento. O relatório também aponta que o país possui a segunda maior população carcerária das Américas, jápassa dos 600 mil presos, perdendo apenas para os Estados Unidos. Nesse meio tempo, provisórios e condenados, com raras exceções, compartilham as mesmas celas e unidades prisionais, apesar da Lei de Execução Penal exigir a separação entre esses dois tipos de pessoas privadas de liberdade.

A taxa de aprisionamento do Brasil também chama a atenção. De 1995 a 2010, o país teve a segunda maior variação na taxa se forem considerados os 50 países com mais presos no mundo. A taxa de superlotação também é uma das maiores e as condições de detenção são degradantes: pouco ou nenhum acesso à saúde, à higiene, à alimentação, violência e tortura – por agentes do Estado ou em razão da omissão destes – são apenas alguns dos exemplos desta realidade. Gabriel é hoje um destes inocentes presos, que mal consegue comer ou dormir e impedido de ver seus pais ou seu filho e companheira. Temos acompanhado a saga para levar roupa e alimentos, a revista vexatória e os castigos imputados aos presos. Gabriel está preso há 37 diase não pode ainda ver sua família.

Sabemos que na periferia essas prisões injustas acontecem cotidianamente, sobretudo nas favelas… Mandados de prisão preventiva, como no caso de Gabriel, levam muitas vezes inocentes a passarem anos encarcerados. Estou vendo uma injustiça muito grande de perto, resultado de um Estado que continua tão militarizado quanto na ditadura, o tanto que esse Estado desrespeita mínimos direitos humanos, humilha as pessoas, aterroriza mesmo, destrói pequeníssimas materialidades e grandes sentimentos!!! Depois da história de Gabriel, acho que não acredito mais na solução de crimes midiáticos, contra pessoas da classe média, e que rapidamente a polícia resolve. Estou vendo como injustiças são construídas e quadrilhas “desbaratadas”…

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