Que o Brasil é o país campeão de operações cesarianas no mundo – contrariando todas as recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde) e de qualquer um que entenda o que é realmente saúde -, todo mundo sabe! Pela comodidade, dos médicos principalmente, pelo medo de muitas futuras mães, tem gente que pensa ser mais seguro… vários são os motivos que levam as gestantes a preferir ou aceitar a cesárea, como é conhecida essa operação. ). A OMS recomenda que o índice não ultrapasse 15%, mas no Brasil o índice é de mais de 50% de cesáreas nos partos realizados. Nos hospitais particulares, em 2011, o índice chegava a 83,8%, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Existe até um projeto de lei transitando no congresso desde o ano passado, para humanizar o parto no Sistema Único de Saúde (SUS). Mas os desrespeitos às mulheres na hora do parto vão muito mais longe em nosso país.
A desumanização do parto é outro exemplo de como a naturalização da violência constitui a base de capitalista. Temos uma cultura dominante que perpetua o controle da mulher mercantilizando de todas as formas o seu corpo e o seu papel reprodutivo. Para debater esta questão e, principalmente, mostrar que aquela hora tão importante da mulher dar à luz pode ser uma experiência maravilhosa, fundamental para a mãe e para o novo ser humano que surge, a Associação Artemis realizou atividade no Fórum Social Temático 2014, em Porto Alegre.
O cine debate “Violência Obstétrica – como as corporações de saúde e a indústria da cesariana contribuem para a cultura de violência contra a mulher” aconteceu no dia 23 de janeiro, no Memorial do Rio Grande do Sul. O documentário “O Renascimento do Parto”, dirigido por Érica de Paula, doula e educadora perinatal, e por Eduardo Chauvet , ativista e produtor de vídeos, foi apresentado. Além de reunir muita informação e dados a respeito do parto humanizado, ouvindo especialistas de vários lugares do mundo, o filme emociona com a apresentação de partos realizados fora de hospitais, de maneira natural e tranqüila, e com depoimentos fantásticos das mães. O debate contou com as falas da advogada Lúcia D’ Aquino, da mestre em saúde pública Raquel Marques, também presidenta da Artemis e do obstetra Ricardo Jones (foto, nesta ordem).
Violência machista naturalizada
A mercantilização do nascimento de mais um ser humano faz com que a violência obstétrica seja prática comum nos hospitais, públicos ou privados, pelo SUS ou pagando plano de saúde! A pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, realizada pela Fundação Perseu Abramo, em 2010, revelou que uma em cada quatro mulheres brasileiras foi vítima de violência obstétrica, de gritos e agressões verbais, que incluem julgamentos machistas e preconceituosos, a procedimentos dolorosos sem a informação e escolha da parturiente.
Por isso, o doutor Jones iniciou saudando o fato do tema da humanização do parto estar hoje sendo mais debatido e mais gente estar mobilizada em torno da luta contra a violência obstétrica, pois há muito tempo “tentamos modificar esta realidade”, diz o obstetra. “O nascimento é fonte de saúde e desenvolvimento das crianças e de nós todos. A violência obstétrica tem a ver com a forma como nos relacionamos com o feminino, com a mulher. O nascimento é um microcosmo do que ocorre na cultura”. Para o médico, com larga experiência em partos humanizados, “a violência é banalizada totalmente, gerações anteriores viram como natural a violência contra os filhos, contra as crianças, as mulheres. Indivíduos violentos quase sempre sofreram violência na infância. Precisamos reeducar toda a sociedade de que violência não pode ser aceitável”.
“Na situação de abortamento a violência é ainda maior”, disse Raquel Marques, explicando que a Artemis promove a autonomia feminina e luta contra a erradicação da violência no parto, mas também na condição do aborto em nosso país, “vem como forma de punição, pois sempre se acha que o aborto foi provocado. E os abusos contra adolescentes, mulheres com deficiência, e outros, continuam”. Raquel denunciou ainda as desigualdades sociais que impedem a maioria das mulheres de ter acesso a serviços que a classe média tem, a situação das mulheres encarceradas que sofrem ainda mais violência, normas do Ministério da Saúde que não são respeitadas. Por isso, a atuação da sua organização se dá também junto aos poderes legislativo e judiciário.
Lucia D’Aquino tornou-se ativista pela humanização do parto depois que viveu os processos durante sua gravidez e parto. “Violência e machismo são da nossa cultura”, ela concorda. “Estamos habituadas a ver violência na televisão, na novela, a violência obstétrica existe, tem profunda ligação com o machismo e com os valores que estão na nossa sociedade”. Ela convocou as mulheres a se mobilizarem, pois é nossa responsabilidade de consciência levar as informações e o tema para além das ativistas, que eram maioria no debate. “O parto traumático tem reflexos na criança, na mãe, na sexualidade”.
A nutricionista Eliane, militante pelo parto humanizado e pelo aleitamento materno, destacou que os trabalhadores da saúde, as enfermeiras, não partilham destas questões, que também está muito distante do meio acadêmico. Neusa, enfermeira obstétrica trabalhando no SUS, denunciou os hospitais escola, onde também “se usa e abusa das mulheres, com quatro pessoas fazendo toque na mulher, por exemplo; mesmo as mulheres mais esclarecidas não têm aonde ir”. Raquel lembrou finalmente a necessidade de mecanismos de controle social, defendeu que devemos ocupar os conselhos de saúde, interferir nas políticas públicas. Apresentou ainda a parceria com a Defensoria Pública que, em São Paulo, está colecionando relatos por hospital para juntá-los e entrar com denúncia junto ao Ministério Público. Quando todos os nascimentos forem acontecimentos respeitados e amorosos, estaremos vivendo um outro mundo possível!