Uma das mais bonitas histórias da bíblia me foi contada pela mãe. Eu adorava. Ambas. A mãe e a história. Era sobre o bom samaritano. Aquele que diante do outro, caído, não hesita em ficar e ajudar. Ele não pergunta: o que poderá me acontecer? Não. Ele se pergunta: o que poderá acontecer a ele se eu o deixar aqui no chão? E, correndo todos os riscos ele acode o homem e o leva até uma hospedaria onde o deixa sob cuidados. Ao longo de toda minha vida me pautei por essa história de amor. Correndo todos os riscos, me debruçando sobre os caídos. Sem medo.
Imagino que foi isso que pensou o homem – um mendigo – que ajudou a mulher na Praça da Sé. Francisco Erasmo Rodrigues de Lima, de 61 anos, não pensou duas vezes ao vê-la sendo ameaçada por um cara, com uma arma. Uma cena de amor, de violência e de dor. A mulher, pobre como todos nós. O homem com a arma, outra vítima desse mundo cheio de desigualdade e exclusão, e Francisco Erasmo, vivendo de esmolas, dormindo em abrigos, mas que, ainda assim, tinha dentro do coração a certeza de que se alguém precisa, é preciso ajudar. Uma tragédia cotidiana, nesse nosso Brasil dependente e subdesenvolvido.
Morreram ali, na escadaria da igreja. Francisco Erasmo e o outro, Luiz. Os dois crivados de bala, enquanto a mulher conseguiu sair viva, com o coração aos saltos e a alma em escombros. Ela rezava dentro da igreja, pedindo sabe-se lá o quê. Paz, talvez. Saúde, talvez. O bandido queria um troco, para um crack, para um pão? Queria fugir? Quem pode saber? E Francisco Erasmo, agiu por amor. Sem muito pensar ele se jogou contra o homem armado, salvando a mulher. Um genuíno ato de amor, que terminou banhado em sangue.
Ontem estive com mais de 300 jovens das pastorais da cidade e do campo. E insisti na necessidade do amor. Ocorre-me agora essa dúvida.O risco de amar é tão grande. Pode valer a vida. Também vivem comigo dois guris que são puro amor e que fazem essas coisas bonitas, samaritanas, todos os dias. Então me acomete um certo medo desse mundo tão desigual, tão dolorosamente individualista e egoísta.
Sim, nós podemos morrer por conta de um ato de amor.Mas, apesar das dúvidas, reverbera em mim a voz da minha mãe na história do samaritano: o que será dele se eu não fizer nada? Cá comigo eu penso que Francisco Erasmo não tombou em vão. Ele fez o que mandou o coração. Atirou-se sobre o homem, salvou a mulher. Ele, que era uma sombra na Sé, agora viverá para sempre no coração de Elenilza, a balconista.
E assim segue a vida. Penso que não podemos nos render aos discursos de ódio. Não mesmo. Vejo na Europa as pessoas recebendo os refugiados com amor, contra as políticas segregacionistas dos governos. E vejo pessoas como o Francisco Erasmo, arriscando a vida em nome do amor. Sim, vale a pena. É o que nos faz humanos. Que o amor nos domine, que o amor nos domine. E que Francisco Erasmo viva para sempre, porque a vida mesma não se acaba. Ela se transforma. A ele rendo graças.
Francisco Erasmo era um mendigo, um samaritano. Ele tombou na Sé. Ele salvou uma vida. Ele é um exemplo de amor. Que o seu ato humano, demasiado humano, possa tocar os corações empedernidos. E que o amor, vença, que o amor vença…