Em 1889 o cientista alemão Albert Niemann, jogando-se na temeridade, utilizou seu corpo como cobaia para se injetar na veia uma substância que acabava de isolar quimicamente: o alcaloide cloridrato de cocaína. O corpo de Nieman sentiria a força impetuosa da cocaína viajando por sua corrente sanguínea, foi o primeiro humano em deleitar-se numa euforia induzida com este novo fármaco. Nieman acreditou descobrir um analgésico efetivo, nunca pensou que aquele composto seria o combustível que alimentaria as ferozes guerras do capitalismo nos países do Sul.
Aquele prodigioso analgésico que ocuparia as vitrinas dos boticários médicos, continha forças incontroláveis capazes de motivar vendetas sanguinários, financiar mercenários, trair a moral pública e os valores religiosos, financiar lutas guerrilheiras, infestar de criminalidade as ruas e encher as bolsas dos banqueiros. Isto costuma acontecer, substâncias ou descobrimentos inicialmente benévolos que se tornam autodestruições trágicas, a própria fúria dos deuses. Aconteceu com os inimigos de Spiderman, metáforas trágicas dos perigos da ração, e aconteceu com a divisão do átomo, com o TNT ou os alimentos transgênicos.
Remédio
“Aquele prodigioso analgésico que ocuparia as vitrinas dos boticários médicos, continha forças incontroláveis capazes de motivar vendetas sanguinários, financiar mercenários, trair a moral pública e os valores religiosos, financiar lutas guerrilheiras, infestar de criminalidade as ruas e encher as bolsas dos banqueiros”
A cocaína, no início, foi uma aliada para curar a dificuldade de viver, o mesmo Freud a utilizou para enfrentar a depressão severa de seus pacientes, entre eles, Salvador Dalí. Como bom alquimista da cognição humana, Freud consumiu cocaína por via intravenosa durante 12 anos. A cocaína limpava desventuras, ansiedades e parecia despistar as confusões contra o mundo alienante. Inclusive se afirma que o escritor Robert Louis Stevenson escreveu “O estranho caso do Dr. Jekill e Mr. Hide” sob os efeitos da cocaína que seu médico subministrava-lhe para combater a tuberculose.
Deste modo a chamada “branca de neves” seria a musa inspiradora de artistas, espíritos atormentados e várias gerações de jovens que, à frente das repetidas guerras mundiais, experimentavam o mundo como transumantes da incertidão em procura de si. Também chegariam logo os excessos, os abismos abertos pelo abuso no consumo de cocaína foram novos gritos catárticos que fariam reagir aos setores mais escandalizáveis e conservadores da sociedade.
Assim, em 1949 a ONU determinaria que a planta da coca e o cloridrato de cocaína eram substâncias nocivas, proibidas, ilegais e, novamente em 1961 através da Convenção Única sobre Narcóticos, reafirmaria que a cocaína constituía o pior risco para a saúde e a estabilidade social e, de passada, consideraria o ato de mascar folhas de coca uma prática ilegal e nefasta. “Mas coca não é cocaína tá ligado?”. Mesmo assim a ONU repetiria o que fizeram as tropas espanholas em 1551 em Lima, Peru, solicitando a proibição da produção, comercialização e consumo da folha de coca por suas supostas propriedades demoníacas que faziam os indígenas cair no pecado e na invocação de Satanás.
De médicos a traficantes
Com a proibição planetária sobre o cloridrato de cocaína se abonaria o terreno social e econômico para a germinação dos gansters tropicais, Pablo Escobar, Rodríguez Gacha, os cartéis de Medellín e de Cali, O Chapo Guzman e Marcola. A Colômbia passaria a chamar se, segundo as palavras do rock star argentino Charlie García, a Cocalômbia e, por sua vez, a estética narco inundaria as ruas latino americanas, correntes de ouro em peitos peludos, farras monumentais nas que choviam dólares, hipopótamos nos rios colombianos, Picassos perdidos em fazendas clandestinas, peitos siliconados e hoje, como era de esperar, narco-séries que contam a história e disputam a memória das vítimas e de quem sofreu os crimes dos narcos, em outras palavras, séries que participam na disputa pelo relato da nossa verdade histórica.
Minissérie
A série “Narcos”, dirigida inicialmente por José Padilha e protagonizada por Wagner Moura, tem vários efeitos que não podem se perder de vista. Não pretendo fazer uma apreciação audiovisual ou falar de suas imprecisões históricas ou da pouca crítica com a versão que a série difunde da DEA. O importante é o que a série pode nos dizer sobre o mundo que hoje vivemos. Inicialmente, a série permite que os brasileiros se aproximem um pouco mais de seus vizinhos latino americanos, mesmo que seja pela via do narcotráfico que é o estereótipo comum. O papel das guerras e do narcotráfico também é ensinar um pouco de geografia. Isto permite pelo menos advertir que o país de Pablo Escobar não só é cocaína, café, guerrilha, as acrobacias do goleiro Higuita, a música da Shakira e o joelho memorável de Zúñiga nas costas de Neymar na copa do 2014. Mesmo assim para um gringo da Alemanha, tanto Medellín como Campinas continuarão sendo o mesmo buraco perdido num país do Sul.
A Colômbia, aquela esquina da América do Sul, justamente por sua posição geográfica com acesso para o oceano Atlântico, para o Pacífico, para os países andinos e amazônicos e, ao mesmo tempo, lacerada por uma histórica desigualdade social, pela repressão secular aos movimentos de esquerda, a desproteção aos direitos e o controle exclusivo do poder por uma elite indiferente e insensível, motivou a procura do dinheiro fácil tanto nos grupos delinquenciais como nos setores populares, aproveitando as saídas, mesmo ilegais, do tráfico de drogas ilícitas para conseguir um pouco da ascensão social negada por séculos. Neste próspero negócio, que precisou de subornos e pagos às forças militares e polícias para que a mercadoria circulasse, também os políticos quiseram se beneficiar.
No capitalismo tudo aquilo que se declara ilícito se torna mercadoria sem controle e cai quase sempre em mãos criminosas. A ilegalidade da cocaína a tornou o melhor dos negócios, sua proibição regula seus preços no mercado e permite sustentar os ganhos. “é ouro branco, meu irmão”. Desse modo, na Colômbia, muitos setores do poder, fazendeiros, igreja, empresários, juízes, mídia, futebol e especialmente políticos, terminaram untados de pó.
A série “Narcos”, assim como a série colombiana “Pablo Escobar. O Patrão do Mal”, nos fala da aliança ativa entre políticos e narcos no negócio das drogas. Ah, os políticos da América Latina, criaturas do pântano, sempre tentadas à venalidade! Não é piada aquela frase que se repete na Colômbia: “Foram os políticos que corromperam aos Narcos”. Os vínculos entre políticos e narcos instigaram uma guerra suja dirigida a amedrontar a justiça, eliminar violentamente concorrentes eleitorais, criar grupos de mercenários de segurança privada das terras espoliadas, assassinar lideranças populares e adversários políticos, controlar geopoliticamente negócios, financiar campanhas eleitorais e combater aos grupos insurgentes. A mistura entre armas, dinheiro da droga, políticos e narcos foi a clara expressão do exercício da política dirigida a proteger estruturas econômicas baseadas no dinheiro mafioso.
Guerra às drogas
Com o negócio das drogas veio o negócio da guerra às drogas. Armas, helicópteros, aviões de combate, insumos militares, uniformes, fumigação da floresta, serviços de inteligência e espionagem, tudo oferecido no kit norte-americano de combate à cocaína e, de passada, uma geopolítica antidrogas para América Latina, um controle militar da vida social que na verdade também serviu para inventar novas categorias contra os inimigos, “narcoguerrilha”, o tenebroso inimigo à democracia liberal e ao império que habita este bairro latino.
A série “Narcos” não nos fala de um simples anti-herói, uma espécie de Walter White latino, barrigudo e com bigode, e não deve cativar-nos só pelo fato de explorar essa atração ficcional que nos despertam os pilantras. As narcosséries nos falam de como funcionam nossos mercados regionais, de como atuam nossos políticos, as forças militares e, especificamente, como funciona o Estado. Porque como diz o cientista político Norberto Emmerich, “para compreender o narcotráfico se precisa estudar o Estado”.
“Por quê atacar determinados grupos de narcos ou levar a guerra antidrogas em zonas de presença guerrilheira, mas permitir que os paramilitares – expressão da direita latifundiária armada vinculada ao narcotráfico – atuem tranquilamente?”
O narcotráfico é um processo organizativo que precisa conquistar territórios para vender cocaína ou outras drogas. Acaso o Estado não sabe que estruturas operam na comercialização da cocaína? Por quê atacar determinados grupos de narcos ou levar a guerra antidrogas em zonas de presença guerrilheira, mas permitir que os paramilitares – expressão da direita latifundiária armada vinculada ao narcotráfico – atuem tranquilamente? Porque, como diz o Taussig no My Cocaine Museum, a guerra contra as drogas é financiada pela cocaína e não é dirigida contra as drogas. Pelo contrário, é uma guerra pelas drogas.
O papel de quem dirige e trabalha nas estruturas do Estado com o narcotráfico é aceitar a propina, olhar para outro lado e permitir que o negócio frutifique. Aqui pouco importa a democracia, o assunto central é a toxicomania. Quando, nestas relações, o Estado se sente confrontado é porque as disputas violentas pelo capital ilegal mafioso anunciam ordenações geopolíticas entre novos grupos de narcos, novas rotas de comércio e novos protagonistas. A democracia não funcionará, o negócio da toxicomania sim e, o Estado como regulador policial e judicial, será o ator principal do jogo histórico do narcotráfico.
Espelho
Se você assiste a série “Narcos” não perca de vista que é um espelho sobre o mundo que hoje habitamos, posta em cena de um mundo que parece se repetir com sua criminalidade, sua corrupção política, com o pó branco circulando nas ruas e com as contradições dos estados latino-americanos expostas como feridas abertas.
Enquanto a cocaína continuar sendo ilegal qualquer política antidrogas continuará sendo dirigida para fracassar e as narcosséries aparecerão por mais mil vezes mudando só os protagonistas, porque qualquer captura ou morte de um narco será o anúncio irremediável do nascimento de um novo patrão do crime. O drama mais brutal, evidentemente, é da Colômbia que padece de uma guerra histórica alimentada pelo tráfico ilegal da cocaína e que, na sua solidão dramática, carrega, sem que ninguém aparentemente se importe, quase 6 milhões de refugiados internos, mais de 57.265 pessoas desaparecidas e mais de 219.000 mortos (cifras do Centro Nacional de Memória Histórica).
♦ Marco Tobón é colombiano, antropólogo e doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)