Os primórdios
As duas primeiras atividades de reação frente ao que chamávamos de “baixaria na mídia” tomaram corpo com o TVerii, formado pela Marta Suplicy, e que contou com a participação do Eugenio Bucci, do Lalo Leal, da Maria Rita Kehl, Suzana Prado, Ana Olmos, eu, entre outros.
Algum tempo depois, a convite do deputado Orlando Fantazzini, parte destes participantes juntaram-se a outros representantes de movimentos, fundando a Campanha pela Ética na TV.
Em ambos os casos, os telespectadores podiam denunciar programas considerados ofensivos ou “baixaria” e, revendo os mais denunciados, tomávamos iniciativas, entre as quais a de encaminhar pareceres técnicos ao Ministério Público Federal, para um parecer deles.
O que nos chamou a atenção, num primeiro momento, é que, ante a abertura de um espaço para a manifestação do público, choviam cartas e manifestações de agradecimento e alívio ante a possibilidade do/a telespectador/a manifestar a sua insatisfação, que não tinha com quem compartilhar, ante o nível da programação. E, depois disso, nos permitiu abrir ou encontrar caminhos de diálogo com a emissora, com os anunciantes, com o Ministério Público – enfim, abrir um caminho que nos levasse a alguma mudança da situação.
Entre outros efeitos obtidos, conseguimos um mês de direito de resposta do programa do João Kleber, que ridicularizava os movimentos sociais – mulheres, negros, LGBT. Abrimos espaço e demos voz aos segmentos antes ofendidos, e conseguimos, em um mês de programação com um equipamento mínimo, dobrar a audiência do programa, passando de 1 para 2 pontos de audiência no mesmo horário.
Depois disso, as mulheres, aos poucos, foram também se manifestando em nome de suas entidades.
Inicialmente sozinhas, tateantes, as feministas, através de suas entidades, começaram registrando reclamações contra peças publicitárias, músicas e outros que considerassem ofensivas.
A título de exemplos bem-sucedidos, tivemos o Instituto Patrícia Galvão que ganhou, com o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) determinado pelo Ministério Público Federal, que a Kaiser patrocinasse cinco seminários, espalhados pelo país, para discutir o tema “mulher e propaganda”. O TAC veio em resposta ao protesto contra as “bolachas”iii, distribuídas pelas mesas dos bares, que diziam “Mulher e cerveja – especialidade da casa”.
Outro exemplo nos vem do Sul, quando o grupo Themis conseguiu a proibição, em território nacional, da música “Só um tapinha não dói”, que teve seus CDs também recolhidos. No Ceará, foi realizada a ação de protesto – e recolhimento – de um anúncio de revista que, mostrando uma mulher de olho roxo, nítida consequência de violência que tinha sofrido, com os dizeres “Está na cara que precisa de funilaria”.
Outras iniciativas não tiveram o mesmo sucesso – como o caso da propaganda da Skoll, a “Musa do verão”, encaminhado pelo Observatório da Mulher. Esta, depois de percorrer um longuíssimo caminho – do MPF ao MPE e a todas as instâncias para as quais a Ambev podia apelar, e que lhe indicavam um TAC, com alguma ação (campanha de prevenção do câncer uterino, por exemplo), recebeu o parecer final do último juiz que decidiu que o anúncio não merecia nenhuma medida restritiva, porque simplesmente “representava uma homenagem à beleza da mulher brasileira”.
Finalmente, levantamos a questão no movimento feminista como um todo e colhemos assinaturas numa passeata de 8 de março, e pedimos uma audiência pública para reivindicar o nosso “direito de resposta” ante toda a programação televisiva que nos parecia não refletir a diversidade e as demandas da mulher brasileira. E lá fomos para essa audiência no MPF, junto com representantes de todas as emissores de TV.
Nossa análise da situação das mulheres na mídia
A mídia é uma poderosa educadora informal. Qualquer criança aprende hoje que bom é reservar a melhor opção de hotel pela Trivago, antes de saber o que significa Trivago, cuja grafia e leitura provavelmente aprenda antes de saber escrever “papai, mamãe”.
Entre os diversos meios de comunicação, o rádio e a TV – de maior alcance – são concessões públicas, e estão portanto sujeitas à prestação de um bom serviço, de interesse social. Ao menos na teoria.
A segunda questão que queremos salientar diz respeito à importância atribuída pelo sistema às mulheres, não só por representarem 52% da população, mas também por serem elas responsáveis por 80% das decisões de consumo, cabendo-lhe assim desde a compra da cueca do marido, das fraldas do nenê, dos alimentos para a família, até dos cosméticos para parecer eternamente jovem. E, hoje, também na escolha do carro. Representamos portanto, um segmento a ser necessariamente focado, seduzido e bombardeado pela propaganda comercial.
Por isso, abundamos na mídia, que dirige a sua publicidade de modo a nos convencer não só da excelência de infinitos produtos anunciados, como da eterna beleza e felicidade que conseguiremos ao adquirir tais produtos. E, nos anúncios de produtos voltados para os homens, novamente aparecemos, numa sugestão de que estaremos disponíveis para eles assim que comprarem o que lhes anunciam. A programação da mídia segue a lógica complementar.
Sempre que um fabricante anuncia consistentemente o seu produto, o programa ou emissora assim patrocinados, abrem-se para matérias e personagens compatíveis com o que anunciam. Exemplo disso foi o crescimento de personagens negras nas novelas, depois que a indústria, reposicionando-se em termos da classe social a ser atingida, incorporou modelos negros/as em sua publicidade. É o que parece estar acontecendo com a abertura de espaço para casais homossexuais, tanto na programação, quanto nos anúncios deste ano.
Com isso, a nossa mídia monopolizada/oligopolizada reduz as suas funções a dois grandes objetivos, absolutamente compatíveis com a análise de Anne Marie Gingras,iv e que consistem em criar uma posição com relação ao governo do país onde se inserem, e criar consumidores para os seus anunciantes.
A programação complementa seus objetivos, destilando modelos-padrão de beleza e de valores que convêm à ideologia dominante. E, isto, desde a mais tenra infância, como mostram os jogos e brinquedos das crianças, adequadas para cada sexo, com as modernizações cabíveis.
Assim, o treino de maternagem que representava o brincar de boneca, hoje mudou, quando a boneca não mais representa um bebê, mas a Barbie, já introjetando o modelo de beleza nas meninas, desde cedo.
Como somos uma espécie dependente de cuidados e afetos, para viver adequadamente nos convém perceber logo e incorporar os comportamentos e atitudes socialmente valorizados. E este bombardeio de imagens, valores e atitudes passam a constituir uma influência importante na formação da nossa subjetividade – é assim que eu quero e busco ser, ou é assim que eu quero ser quando crescer.
A pesquisa bianual encomendada pela Unesco inclui o Brasil em sua amostra. E mostra que, mesmo nos espaços considerados “sérios” na mídia – como os telejornais – estamos sub-representadas (só 18%) e, quando aparecemos, é sempre no papel de vítima ou testemunha – nunca como especialistas, embora estejamos hoje em todas as faculdades e profissões, e que acumulemos em média quatro anos de estudo a mais que os homens, em qualquer função considerada.
Alguns programas, com a desculpa de que o humor não precisa ser politicamente correto, reforçam os estereótipos e preconceitos, mesmo que na contramão da ação explícita das mulheres e do movimento social organizado – como quando, no programa Zorra Total, da Rede Globo, semanalmente se exibia um quadro em que uma mulher recomendava à outra, ambas num ônibus lotado, que “aproveitasse” o fato de estar sendo bolinada, para não ser boba – mesmo depois de o movimento se manifestar contra o assédio e violência no transporte público.
Para sintetizar a situação, podemos dizer que, com relação à mulher, falta aos grandes meios mostrarem a nossa diversidade (em termos de padrão de beleza decorrente de nosso jeito de ser e mistura de raças/etnias, além de nossa diversidade de faixas etárias). Falta-lhes também abrir o espaço para a nossa pluralidade – afinal não pensamos todas do mesmo jeito e todos os enfoques deveriam ter espaço e vez na mídia, para que a pessoa que assiste/ouve/lê se sinta devidamente informado para formar o seu próprio ponto de vista.
Falta também abrir um espaço para a discussão de nossos problemas atuais, que raramente o têm merecido. Assim como falta um cuidado infinitamente maior com relação ao que a mídia faz frente à violência de gênero, e à violência em geral. Isso porque a mídia banaliza a violência, naturalizando-a portanto. Isso, quando não a espetaculariza sempre que alguma figura importante está envolvida em algum episódio de violência, divulgando-o então com detalhes e com uma frequência que, por vezes, chega a superar a das novelas.