Inês Etienne faleceu no dia 27 de abril enquanto dormia, aos 72 anos. Foi a única sobrevivente da “Casa da Morte” em Petrópolis – local onde eram seviciados e assassinados resistentes contra a ditadura empresarial-militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985. Foi várias vezes estuprada e torturada por agentes do estado da então equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Ficou ainda oito anos presa no presídio Talavera Bruce, onde cumpria a prisão perpétua decretada pelos tribunais dóceis ao regime de exceção.
Inês conseguiu sobreviver à tortura e teve uma participação essencial no esclarecimento do que foi não só a casa de horrores específica onde ficou, mas todo o aparato repressivo que foi montado durante a época. Especialmente a participação do “Dr. Carneiro”, codinome do médico Amílcar Lobo (1939-1997) responsável por fazer as vítimas resistirem por mais tempo, regulando “tecnicamente” as torturas que eram impostas aos militantes. “Dr. Carneiro” (Amílcar Lobo) foi um dos pouquíssimos casos de justiça feita após o período ditatorial. Denunciado por Etienne e por outros militantes, teve o registro profissional de Medicina cassado de forma definitiva. O caso ainda serviu para expor o ambiente conservador das instituições psicanalíticas do período, já que Lobo era “candidato a analista” de uma conceituada Sociedade de Psicanálise, no Rio de Janeiro, integrante da International Psychoanalitical Association (IPA).
Inês foi uma lutadora, tanto em sua opção de juventude por uma resistência armada com pouquíssimas chances concretas de sucesso quanto na militância pelo esclarecimento do que foi o aparato de violações bárbaras dos direitos humanos criado pelo Estado brasileiro naquelas circunstâncias. Ao contrário de Inês e com exceção do médico Amilcar Lobo, nenhum de seus algozes conheceu nada nem remotamente semelhante a um tribunal. Seguiram impunes, alguns se vangloriando de seus crimes. Seqüestradores, estupradores e torturadores de jovens que se insurgiam contra um regime ilegal. Nenhum desses criminosos tinha um décimo da coragem que suas vítimas demonstraram mesmo nos piores momentos.
Infelizmente para nós tal estado de coisas ainda não está no passado. Em boa parte devido à recusa de nossas elites em passar a limpo o regime ilegal e assassino de 64, ainda vivemos em larga medida sob sua sombra. Nosso aparato de Estado ainda mata sua própria população, principalmente quando eles são pobres e negros. Nossos meios de comunicação – a maioria cúmplices da ditadura – seguem se esforçando para manter nossa iniqüidade social e criminalizar quem a tenta superar. A própria memória daqueles tempos segue sendo deturpada em nossas academias militares. Nossos jovens oficiais das três forças ainda são treinados para imaginar que os responsáveis pelo 31 de março de 1964 são outra coisa que não criminosos covardes e traidores de seu próprio país. Muito recentemente, tivemos outro exemplo do custo pela não memória: ver o fantasma dos algozes de Ines poderem novamente exibirem com orgulho nas ruas o que deveria ser motivo de ignomínia.
Inês se foi, mas sua luta segue sendo necessária. Que seu exemplo siga conosco para a superação do estado de coisas que ela e sua geração deram o que tinham de mais precioso: a vida e a juventude.
Companheira Inês Etienne, presente!