Fórum Social Mundial precisa de iniciativas locais para ter efeito duradouro, avalia especialista

Foto: Christian Schröder (no canto esquerdo, de azul escuro) ministrou workshop no FSM 2013, em Túnis | Por: Shakba/ Creative Commons

Um dos palestrantes a vir para Porto Alegre participar do Fórum Social Temático, que começa nesta terça-feira (21), o alemão Christian Schröder estuda o Fórum Social Mundial desde o seu surgimento, em 2001. Formado em Pedagogia, ele atualmente escreve seu doutorado, uma etnografia do FSM. Para ele, a falta de um evento que funcione como contrapartida para o fórum, assim como a falta de oportunidades para atividades locais auto-gestionadas enfraquecem o evento, enquanto as novas tecnologias podem funcionar para fortalecê-lo.

Nesta entrevista ao Sul21, ele fala sobre o histórico do FSM, as mudanças em relação aos acontecimentos políticos da América Latina, o Fórum realizado ano passado na Tunísia – em que ministrou um workshop –, as manifestações de rua e sua relação com esse tipo de evento, o papel do Brasil e as expectativas para o Fórum Social Temático.

Sul21 – Porto Alegre foi referência para o Fórum Social Mundial no início dos anos 2000, quando foram feitas as primeiras edições do evento. Pouco depois o fórum se descentralizou e hoje acontece de forma fragmentada. Quais são as semelhanças entre o modelo inicial e o que vemos hoje?

Schröder – Logo após o primeiro Fórum Social Mundial, em 2001, fóruns aconteceram em âmbito regional, nacional e municipal em todo o mundo. Mas apesar de Fóruns Sociais serem organizados de formas altamente descentralizadas, a ideia principal ainda é a de um “espaço aberto”. Desde seu início, o FSM teve a intenção de ser um espaço exclusivamente da sociedade civil, sem a presença de partidos ou políticos. Com sua chamada “filosofia do espaço aberto”, a força do FSM consiste em aproximar diversos movimentos, ONGs e sindicatos, sob o guarda-chuva do anti-neoliberalismo.

Para continuar com sua força de estar aberto a todos os grupos sociais, o FSM precisou evitar qualquer tipo de declaração final ou ponto de vista político. Um Conselho Internacional foi formado em 2001 e designou a Cartilha de Princípios no Fórum, para colocar em formato escrito a ideia de “espaço aberto”. Este “espaço aberto” sempre foi um tópico controverso mesmo entre os membros do Conselho Internacional. Além disso, muitos fóruns regionais ou temáticos foram organizados apesar da Cartilha. No entanto, esse conceito sobreviveu como uma marca ou característica essencial do movimento FSM. Eu diria que com esse conceito de “espaço aberto”, o FSM ainda pode se diferenciar de todos os outros fóruns internacionais que existem para atores da sociedade civil atualmente.

Sul21 – Além da sua estrutura, o Fórum se modificou politicamente? Desde 2001, houve mudanças políticas enormes no cenário da América Latina, por exemplo. O Fórum acompanhou as mudanças?

Schröder – Uma diferença entre o primeiro Fórum e o que vemos atualmente é exatamente que o contexto político mudou. Nos primeiros anos do FSM o movimento de justiça global ainda estava enérgico com muitos grandes protestos contra organizações internacionais, como o que aconteceu em 1999 em Seattle contra a World Trade Organization. Desde os meados dos anos 2000 esses protestos contra encontros de organizações internacionais se acalmaram, enquanto o FSM continuou a existir.

Nos últimos anos, emergiram novos protestos, como o movimento Indignados, na Espanha, o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, e a Primavera Árabe. Esses são indiscutivelmente um renascimento dos movimentos por justiça global. Mas apesar de haver similaridades, estes “novos” protestos são muito mais internos nacionalmente. Isso acontece principalmente porque organizações como o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Mundial perderam influência na política internacional. Novos poderes emergentes, como China, Brasil e Índia se tornaram superpoderes e agora emprestam dinheiro para países menos desenvolvidos, para influenciar suas políticas para seus próprios interesses. Neste sentido, o FSM pode ser visto como uma relíquia de tempos antigos, mas também parece batalhar com as questões de não ter mais uma contrapartida apropriada.

Os protestos anti-Davos em 1999 foram antecessores do FSM, que aconteceu em 2001 em Porto Alegre nas mesmas datas que o Fórum Econômico Mundial estava acontecendo em Davos, na Suíça. Neste momento grande parte da mídia estava voltada para o FEM, e o FSM também era mencionado nas notícias em todo o mundo como uma cúpula contrária. Isso foi um grande sucesso para o FSM, que poderia se apresentar como o fórum legítimo para discutir os problemas com aqueles que estão de fato preocupados com os problemas causados por aqueles que estão no FEM. Atualmente, muito menos atenção é prestada ao FEM, e da mesma forma o FSM perdeu quase toda a atenção midiática internacional. O último FSM, em 2013 na Tunísia, não foi organizado nas mesmas datas e foi pouco mencionado na mídia internacional. Então, pode ser um desafio para o FSM encontrar uma nova contrapartida internacional no futuro.

“Tecnologias podem ser usadas para criar debates permanentes sobre questões relacionadas a protestos”

Sul21 – O Fórum Social Mundial tem, entre os seus temas de debate, as novas formas de comunicação. Ao longo de 2013, as redes sociais e a internet foram tidas como centrais para o crescimento das manifestações de rua no Brasil. O FST irá abordar a relação entre os novos meios de comunicação e a política?

Schröder – Eu vejo dois aspectos importantes dessas novas tecnologias para os movimentos de protesto. Um é que as novas tecnologias facilitam a comunicação e, portanto, facilitam a organização de eventos de protesto. Isso é o que vemos atualmente, que protestos parecem ser organizados de maneiras bastante espontâneas. O segundo aspecto é a possibilidade de criar redes e continuar em contato com grupo a longo prazo. Este aspecto pode se tornar mais importante no futuro. A questão é como essas tecnologias podem ser usadas não apenas para mobilizar protestos, mas também para criar debates permanentes sobre questões relacionadas a protestos. E isso acontece desde que começaram a haver grupos de mídia ativista dentro do FSM, que começaram a apontar para o uso de novas tecnologias em termos de comunicação. O Fórum Social Mundial Mídia Livre trouxe à tona a comunicação como um tópico pra debate e reflexão, dentro do FSM e além. A questão do controle e manipulação através das mídias de massa, assim como questões relacionadas a direitos autorais, estão entre os tópicos cruciais que começaram a ser levantados.

Sul21 – Algumas das organizações que antes participavam do FSM com uma postura de contestação aos governos e ao sistema capitalista hoje, paradoxalmente, se encontram no poder, ao menos no Brasil. O quanto esta transformação modificou a essência do evento?

Schröder – O FSM, especialmente no Brasil, trabalhou desde o seu início com o Partido dos Trabalhadores, e alguns grupos brasileiros também apoiaram a eleição presidencial do candidato Lula. Isso também acontece em outros países quando partidos de esquerda facilitam a organização dos eventos do FSM. O governo em Túnis colaborou de perto com o comitê de organização local, renovando universidades, fornecendo infraestrutura para internet, segurança, ou pela organização de voos e hotéis. Um evento como o FSM, com dezenas de milhares de participantes, precisa ter algum apoio do governo. Essa cooperação se torna problemática, no entanto, quando políticos tentam instrumentalizar o Fórum para seus próprios propósitos.

Sul21 – A sua tese é um estado etnográfico do Fórum Social Mundial. Como você desenvolveu sua pesquisa e que aspectos você analisou?

Schröder – Na minha tese de doutorado, estou interessado na questão de como essa coalizão transnacional da sociedade civil do FSM “permaneceu junto” desde 2001. Há três grandes aspectos do fórum que estou analisando. Primeiramente, estou interessado na questão de como a identidade do FSM permaneceu, apesar de ter sido organizado independentemente em tantos lugares diferentes do mundo. Para responder a essa questão, eu fiz uma análise pela internet sobre o desenvolvimento de atenção da mídia desde 2004, comparei os designs de diferentes sites do Fórum social Mundial e analisei como eles se descrevem. Então, pesquisei a maneira como se guarda a memória histórica do FSM. O segundo aspecto é a estrutura organizacional que existe entre os eventos do Fórum. Eu analisei o trabalho do Conselho Internacional, as formas como as decisões são tomadas.

Eu também reconstruí a mudança na estrutura desde 2001 e as novas iniciativas em evolução a partir do FSM, como o Fórum Mídia Livre. Em certo momento, analisei o papel da comunicação online e a forma como comitês de organização local trabalham dentro da estrutura do FSM, como a formação de comissões locais em Túnis. O último aspecto analisado foi em relação às finanças do Fórum. Eu analisei a forma como o dinheiro teve um papel como possível fonte de conflitos em relação à ideologia e à distribuição justa. Para tanto, eu considerei principalmente as discussões do Conselho Internacional, assim como a cooperação entre o governo, fundações e organizadores locais do Fórum. Esses três aspectos mostram uma forma interessante de como o FSM se desenvolveu desde 2001.


“Esse processo de organização poderia se tornar um espaço aberto e utilizar a energia criativa de iniciativas locais”

Sul21 – Você organizou um workshop chamado “Descolonizando o Fórum Social Mundial”, em que falou sobre movimentos sociais na Tunísia que queriam participar do Fórum e foram proibidos pelo comitê de organização local. Você poderia falar um pouco sobre esse workshop e suas impressões sobre a maneira como o FSM é organizado?

Schröder – Esse workshop levantou uma questão importante sobre o FSM e seu futuro. Se o Fórum não quer ser um espaço para ONGs e fundações principalmente de países ocidentais, a questão é como movimentos locais de base podem se envolver melhor. Isso envolve vários aspectos, como questões de diferenças financeiras, a maneira como o conhecimento é produzido, e igualdade de gênero.

Eu levantei a questão de que há possibilidades de envolver melhor iniciativas locais de base no processo de organização do FSM. Enquanto o evento dura apenas poucos dias e, portanto, talvez não produza efeitos imediatos, o processo organizacional começa pelo menos seis meses antes. Do meu ponto de vista, esse processo de organização poderia se tornar um espaço aberto e utilizar a energia criativa de iniciativas locais, que poderiam ser apoiados por comitês de organização local, a partir de mediações com o governo, fundações e organizações internacionais. Um desafio para perceber isso é fornecer transparência de decisões do orçamento financeiro. O fluxo de informação deve ser melhorado entre as comissões e o comitê organizacional condutor. Esse foi um dos principais problemas, não apenas em Túnis mas em outros FSM, o que pode ser percebido pela organização de fóruns paralelos para protestar contra o FSM. Se fosse melhorado o processo organizacional do evento em si, ele poderia se tornar um espaço aberto para se criar redes de contatos de iniciativas locais, que poderiam continuar existindo após o final do Fórum.

Sul21 – No último ano, além das manifestações de rua do Brasil, houve forte mobilização política em países como Portugal, Grécia e Espanha (que atravessam grave crise econômica) e Turquia. É possível encontrar uma nítida contestação do sistema capitalista e da forma com que ele está colocado nestes protestos?

Schröder – Eu não diria que todas as pessoas nas ruas estão contestando contra o sistema capitalista. Outras razões vêm antes, como corte de gastos do sistema de bem-estar social, ou a incapacidade do Estado em melhorar o mercado de trabalho. A explicação de porque o Estado teve que cortar programas de bem-estar social leva, no fim, à logística do sistema capitalista: “não há alternativa”. Então eu diria que tais crises são sempre uma oportunidade para questionar os princípios desse sistema capitalista, e podem também ser o início de uma forma de repensarmos a maneira como queremos viver no futuro.

“O FSM foi realmente algo especial na Tunísia e encorajou muitos jovens a se envolverem com política”

Sul21 – Você foi um dos organizadores do último Fórum, em Túnis. Por que é importante a realização do FSM no país que foi o berço da Primavera Árabe e que ainda passa por mudanças políticas e sociais? A escolha da Tunísia para sediar o Fórum foi relacionada a isso?

Schröder – Depois da chamada “Primavera Árabe”, o Conselho Internacional decidiu realizar o FSM na região do Magrebe (noroeste da África). Mas a escolha de organizar o Fórum na Tunísia também passou por questões práticas, como segurança, apoio do governo e uma rede existente de atores da sociedade civil prontos para realizarem o FSM. Quando vim para Túnis pela primeira vez, morei com alguns estudantes tunisianos em um apartamento. O que eles me contaram é que desde as revoltas, eles agora podem falar abertamente sobre política em público. Então o FSM foi realmente algo especial neste país, e pelo que eu pude ver, encorajou muitos jovens a se envolverem com política.

Sul21 – O Fórum Social Mundial Mídia Livre também começou no Brasil, a segunda edição aconteceu no Rio de Janeiro. Você acha que o Brasil é uma espécie de referência em sediar esses eventos?

Schröder – Eu acho que a principal referência é o Fórum Social Mundial, não especificamente o Brasil como país. Então eu prefiro afirmar que o Fórum Mídia Livre é uma iniciativa que surgiu do contexto do FSM. Ativistas de mídia internacionais começaram a fazer a cobertura juntos desde o primeiro FSM, e com o tempo o Fórum Mídia Livre se tornou mais independente, desenvolvendo sua própria Cartilha, por exemplo. Como a maioria dos eventos do FSM aconteceu no Brasil, os grupos brasileiros sem dúvida tiveram um papel importante na criação do fórum Mídia Livre. Mas isso sempre depende do lugar onde o evento é sediado. O último FSM Mídia Livre aconteceu na Tunísia, durante o Fórum Social Mundial, com muitos grupos da região do Magrebe.

Sul21 – Depois do FSM, surgiu o Fórum Social Temático, com o tema “Crise capitalista, democracia, justiça social e econômica”. Todos esses eixos se relacionam com o cenário internacional atual, mas de que forma eles também se relacionam entre si?

Schröder – De fato, todos esses tópicos se relacionam entre si, mas é claro que há grupos diferentes que se enfocam mais em um ou em outro eixo. Isso significa que pode também haver conflitos entre justiça social e ambiental. Por exemplo, se há empregos correndo risco, um sindicato pode insistir em diminuir os padrões ambientais de certa forma, para que empregos possam ser mantidos, em regiões mais pobres. Ambientalistas não concordariam com isso. Nestes casos, um acordo ou outra solução deve ser encontrada entre esses grupos civis sociais. Ambos os grupos têm interesses legítimos. Em curto prazo, as pessoas precisam sobreviver, mas em longo prazo, recursos naturais precisam ser preservados para gerações futuras.

Sul21 – Como você começou a se interessar e pesquisar a respeito do Fórum Social Mundial?

Schröder – Eu estudei Pedagogia de forma combinada com Ciências da Educação, Sociologia e Psicologia na Universidade de Trier (na Alemanha). Minha principal linha de pesquisa era trabalho social transnacional e ajudas para o desenvolvimento. Em minha dissertação, pesquisei sobre um projeto de desenvolvimento social em San Salvador (El Salvador). Eu levantei a questão de como uma ONG local pode ajudar a iniciar uma rede dentro de uma comunidade que se torne algo como um movimento político. Logo depois da universidade, trabalhei com organização comunitária na Alemanha e comecei a me interessar em como atores da sociedade civil podem ser bem-sucedidos em criar redes com outros, e eventualmente contestar empresas internacionais ou organizações internacionais que influenciem as vidas das pessoas. E comecei a pesquisar sobre o FSM como um exemplo disso.

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