Está no ar o Dossiê Violência contra as Mulheres

A diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo, destaca que o Dossiê foi construído para ser uma ferramenta que permita fácil acesso a fontes, pesquisas e análises, e dessa maneira colaborar para uma cobertura mais ampla e contextualizada sobre o tema. “O Instituto Patrícia Galvão tem como missão contribuir para qualificar a cobertura jornalística sobre questões dos direitos das mulheres. Buscamos influenciar a agenda pública e pautar a imprensa, para que ela cobre as responsabilidades do Estado e também mudanças na sociedade”, explica Jacira (foto).
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Por meio do trabalho de monitoramento da cobertura jornalística que a organização vem fazendo há vários anos percebeu-se que, apesar da presença crescente da pauta no noticiário, a cobertura é repleta de estereótipos e se concentra em casos individualizados, por vezes revitimizando a mulher, ao sugerir que ela possa ter culpa pela violência que sofreu. “Percebemos que existem vários gargalos, alguns não conseguiremos resolver no curto prazo, mas existem também várias brechas em que é possível trabalhar o tema, e é aí que entra o Dossiê”, destaca a diretora de comunicação do Instituto Patrícia Galvão, Marisa Sanematsu.

O projeto do Dossiê foi uma das 31 iniciativas apoiadas pelo Fundo Fale sem Medo, administrado pelo Fundo Elas com apoio do Instituto Avon. “É a primeira vez no mundo que um fundo de mulheres faz uma parceria como esta, com o intuito de apoiar ações que buscam a autonomia e o fortalecimento das mulheres no Brasil”, frisou a coordenadora geral do Fundo Elas, Amália Fisher. O diretor do Instituto Avon, Lírio Cipriani, lembrou que a organização surgiu com o intuito de promover a saúde e o bem-estar das mulheres por meio da mobilização da sociedade, o que tem sido possível com parcerias como essa.

Dados, fatos e fontes

Para o Dossiê, foram feitas sistematizações de dados, fontes especializadas e pesquisas de órgãos governamentais e institutos privados, elencando os aspectos mais relevantes e as questões sobre as quais é preciso ter cuidado na hora da elaboração das matérias. Neste primeiro momento, o Dossiê conta com seções sobre as violências doméstica, sexual e na internet, o feminicídio e as intersecções da violência de gênero com o racismo e a homofobia. A proposta é que a ferramenta seja constantemente atualizada e gradualmente ampliada, para dar conta não só da divulgação de novos dados e da diversidade de fontes especializadas, mas também das várias formas assumidas pela violência de gênero.

“Todas as pesquisas apontam que a violência contra as mulheres é uma questão que preocupa a sociedade. O Dossiê é uma ferramenta que está se propondo a contribuir para o trabalho dos profissionais da imprensa, tendo em vista a lógica das redações, onde a internet é fundamental”, ressalta Marisa Sanematsu.

A jornalista Débora Prado, que coordenou a elaboração da ferramenta, frisou que o Dossiê foi pensado para o profissional que está na linha de frente da cobertura e precisa ter acesso rápido às informações. “Estamos falando com pessoas que não têm tempo, conciliam várias tarefas, que falam com um público amplo e precisam de dados e especialistas.”

Leia a seguir uma seleção de trechos dos debates durante os painéis e saiba mais sobre as seções do Dossiê Violência contra as Mulheres:

Cultura da violência

Além da discussão sobre os diferentes tipos de violências que atingem as mulheres no cotidiano, o Dossiê também reflete sobre os fatores culturais que estruturam essas violências. A jornalista Maíra Kubik (foto), do blog Território de Maíra da CartaCapital e professora de teorias feministas na Universidade Federal da Bahia, destaca que a violência é “a ruptura de qualquer forma de dignidade, seja ela física, moral, psíquica ou sexual, e é também uma relação de poder exercida por uma pessoa sobre as outras”.
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Maíra lembra que essa violência é sustentada por meio de construções sócio-históricas e ideologias, como o machismo e o racismo, que colocam as mulheres como seres naturalmente inferiores e que se manifestam em práticas cotidianas, como a divisão sexual do trabalho. “Não é a toa que a maioria das formas de violência manifesta-se no contexto doméstico, pois a violência ou a ameaça são formas de impedir a ruptura de uma relação de poder. É uma forma de exprimir e reproduzir a violência contra as mulheres.”

Esse contexto, entretanto, é pouco explorado nas coberturas jornalísticas. “Uma mulher que sofre violência doméstica, um casal de lésbicas expulso de um bar ou uma trans que foi estuprada fazem parte de um amálgama de relações de gênero, calcadas na cultura e justificadas pela biologia. É fundamental na cobertura não perder esse contexto”, recomenda.

A professora de Antropologia da Universidade de São Paulo, Heloísa Buarque de Almeida, explica que o grande desafio para a imprensa é desindividualizar os casos de violência contra as mulheres e mostrar que esse é um problema social mais amplo, o que tem sido percebido pela sociedade.

“Estamos vivendo num momento de crescimento de movimentos feministas e das discussões sobre a pauta. O desafio é entendermos que momento social é esse em que certas categorias que antes eram tão naturalizadas começam a ser tratadas como formas de violência pela sociedade em geral. A cantada de rua hoje é reconhecida como assédio sexual. Antes se dizia “ele forçou a barra e eu topei” e hoje se diz “foi estupro””.
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Uma pergunta recorrente nas pautas sobre o tema é: por que as mulheres permanecem por tanto tempo em relações violentas? A socióloga e cientista política Jacqueline Pitanguy (foto), coordenadora da ONG CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, esclarece que não é possível trabalhar com a questão e desconsiderar a ambiguidade dos sentimentos humanos e desse tipo de relacionamento. “Frequentemente, a relação se dá entre tapas e beijos. Se não compreendermos isso fica muito fácil julgar a mulher. A ambiguidade dos sentimentos é uma questão para a qual a imprensa deve estar atenta, para não julgar com tanta perversidade as mulheres que demoram a romper o relacionamento.”

Nesse cenário, a violência se repete de forma cotidiana, com a frequente destruição do ambiente doméstico e daquilo que ele representa, afetando também os filhos do casal. Jacqueline também lembrou os avanços no enfrentamento do problema, que permitem que hoje a mulher esteja mais amparada para romper o ciclo da violência do que antes.
O filósofo Sérgio Barbosa, coordenador do programa de responsabilização de homens autores de violência contra a mulher do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, conta que antes da Lei Maria da Penha muitos homens agrediam suas mulheres de forma reiterada e não viam isso como crime, o que mudou após a lei. “O homem não é agressor 24 horas, mas autor de uma agressão e deve ser responsabilizado por isso. É preciso identificar o ato e a motivação para fazer o enfrentamento. Entendemos que a responsabilização envolve a participação da sociedade civil, do poder público e das instituições.”

Sobre a cobertura jornalística do tema, a promotora de Justiça Valéria Scarance, coordenadora geral da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid) do Ministério Público do Estado de São Paulo, apontou que o retrato da mulher em situação de violência que a imprensa mostra é de uma pessoa louca, descontrolada, ou ainda a que provoca a agressão, e o homem é tratado como o apaixonado que cometeu um crime passional por amar demais e que perdeu o controle. “Existe ainda uma crença de que o que gera a violência é a bebida, o time que perdeu o jogo de futebol, o desemprego ou a frustração. Campanhas e discursos como esses na mídia levam ao desconhecimento da violência doméstica pela população. Culpar o álcool pela agressão significa inocentar o homem e perpetuar a violência”, alerta a promotora.

Feminicídio

A secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), Aline Yamamoto, explicou o conceito e a história do termo feminícidio, criado em 1970 para definir o assassinato de mulheres por questões de gênero e que repercutiu na América Latina a partir do caso de Ciudad Juarez, no México. “O objetivo desde o princípio sempre foi dar visibilidade a uma forma específica de violência contra as mulheres que está atrelada a uma questão de gênero”, afirma. Aline lembrou que atualmente 16 países da América Latina e Caribe criminalizam o feminicídio, incluso o Brasil. “Esse ambiente de tipificação vem acompanhado de um cenário letal gravíssimo, uma vez que os países com índices mais altos de feminicídio estão na América Latina”, ressalta.
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A socióloga, bacharel em Direito e consultora jurídica do Portal Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha, Fernanda Matsuda (foto), destacou que há poucas estatísticas oficiais confiáveis e que é difícil saber o perfil das mulheres vítimas de feminicídio, um crime com peculiaridades e que atinge um grande número de mulheres dentro de suas próprias casas. “Há uma especificidade na execução do crime. As mulheres morrem menos por armas de fogo, mas por outros mecanismos que possibilitam maior proximidade do autor da violência contra a mulher, e geralmente o homicídio é acompanhado de outro tipo de violência, como a sexual, tortura ou desfiguração.”
Fernanda reflete que, apesar de a imprensa se apropriar dos autos processuais dos crimes e fazer uso intensivo do material jurídico, frequentemente há o discurso que coloca a mulher como responsável pela própria violência. “Ao reforçar estereótipos sociais a cobertura contribui para a culpabilização das vítimas e a revitimização”, destaca Fernanda, que lembrou também do direito à memória, pois “é preciso pensar que o discurso que se faz sobre as mulheres tem impacto nas famílias e nas sobreviventes”.

Violência sexual

Entender o conceito do consentimento é outro ponto apontado como fundamental para que a cobertura sobre a violência sexual não revitimize a mulher. A promotora Silvia Chakian, coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) do Ministério Público do Estado de São Paulo, explica que a relação consensual ocorre com o consentimento das duas pessoas, ambas com capacidade para responder pelo ato, sem interferência de álcool ou substâncias que lhes tirem a consciência, e sem estarem sob pressão ou violência.

Entretanto, a compreensão da noção de consentimento ainda é pouco difundida e frequentemente o estupro é justificado pelo comportamento da mulher. “Em uma sociedade que comemora os nove anos da Lei Maria da Penha e as inegáveis conquistas na luta pelos direitos das mulheres não pode mais haver espaço para que, na avaliação desse consentimento ou não, aspectos relacionados ao comportamento social ou sexual da mulher deem margem a discursos de que algumas podem ser consideradas verdadeiramente vítimas em detrimento de outras, como se o comportamento ou vestimentas dessas mulheres dissessem que elas não têm direito ao próprio corpo”, destacou a promotora.

Silvia também reforça que, nos casos em que o ato sexual é praticado com menor de 14 anos, ou pessoa com deficiência, é configurado o estupro de vulnerável. “Nesses casos, há violência presumida e não se fala em consentimento”, explica.

O problema da revitimização da mulher que sofre estupro também se faz presente no acesso a serviços de aborto legal existentes no país. O juiz de Direito José Henrique Rodrigues Torres, titular da 1ª Vara do Júri de Campinas e membro do Grupo de Estudos sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos da Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), lembra que hoje existem em todo o país apenas trinta serviços que realmente fazem atendimento a mulheres que engravidaram após um estupro. O juiz ressalta que interromper essa gestação é um direito da mulher, sem que haja necessidade de apresentar laudo do IML ou Boletim de Ocorrência do crime. “A palavra da mulher é absoluta, tem que ser acolhida e isso está claro nas normativas do Ministério da Saúde. Se eventualmente a mulher estiver mentindo, ela responderá por isso. Esse sistema tem funcionado e levado à constatação de que a mulher não é mentirosa”, aponta o juiz.

Violência contra mulheres na internet

Outra forma recente de manifestação é a divulgação de fotos íntimas sem consentimento na internet e redes sociais, prática chamada de “pornografia de vingança”. O promotor de Justiça e coordenador do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Thiago Pierobom, explica que hoje existem formas de investigar o crime e chegar à responsabilização do autor do delito, porém a dificuldade é tirar o vídeo da rede, uma vez que o conteúdo prolifera e chega a ser compartilhado em países diferentes, o que também está relacionado à cultura de violência existente na sociedade. “A questão da vingança está atrelada à cultura, pois ela só existe porque a sociedade culpa a mulher pelo fato de ter se deixado filmar naquela situação e questiona a moralidade dela a partir desses fatos. Existem consequências muito sérias, de meninas que chegaram ao suicídio”, alerta.

A promotora Valéria Scarance ressaltou que a internet tem sido um dos instrumentos mais eficazes para se destruir a autoestima e a imagem de uma mulher e que a divulgação de fotos íntimas equivale a uma morte civil, que marca a vida das mulheres em família, na sociedade, no emprego, mesmo passados muitos anos da divulgação. “O uso da internet enquanto instrumento para a prática de crime configura violência moral ou violência psicológica, com previsão na Lei Maria da Penha. O questionamento que deve ser colocado não é por que a vítima tirou a foto ou em que circunstâncias, mas por que essa foto foi divulgada sem autorização?”, frisa.

A dificuldade atual é a inexistência de uma lei que puna maiores de 18 anos por essa prática. “O que temos hoje é o Projeto de Lei nº 6.630 de 2013, de autoria do deputado Romário). De acordo com o projeto, quem divulgar fotos íntimas sem consentimento terá pena de até três anos de prisão e deverá indenizar a vítima por seus gastos com mudança de casa, de escola, tratamentos médicos, psicológicos e perda de emprego”, explica a promotora.

Violência contra mulheres negras

A intersecção entre a violência contra mulheres e o racismo também está presente no Dossiê Violência contra as Mulheres. A advogada Luanna Natielly, da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), ressalta que, “quando discutimos violência contra as mulheres negras, especificamente a doméstica, a questão racial é deslocada. Se um homem branco casa com uma mulher negra considera-se que não existirá racismo dentro da relação, mas ele prevalece. A relação de gênero, raça e classe social está presente. Se um homem branco casa com uma mulher negra da periferia, a relação hierárquica está posta na relação”.

O promotor Thiago Pierobom, que também atua em casos de racismo no Distrito Federal, lembra que, para as negras, todas as discriminações são cumulativas. “Apesar da violência atingir todas as mulheres, sem distinção, estatisticamente falando essa violência atinge muito mais as mulheres negras e pobres do que as brancas e de classes mais altas, porque elas estão marcadas por fatores de discriminação”, destaca.
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Djamila Ribeiro (foto), jornalista e colunista da CartaCapital, ressalta que são as mulheres negras as mais afetadas quando se fala em aborto, mortalidade materna ou violência doméstica. “A hipersexualização do corpo da mulher negra vem desde o período colonial, das violências que as mulheres negras sofremos, de como somos representadas de maneira geral, sempre reforçando estereótipos.” Djamila afirma que, pelos comentários que recebe em seus textos, percebe o quanto as pessoas ainda têm dificuldade de aceitar o debate sobre o racismo. “O racismo cria uma hierarquia de gênero e quando não falamos da mulher negra estamos escolhendo quais vidas devemos salvar e quais vidas são importantes”, problematiza a jornalista.

Violência contra mulheres lésbicas, bissexuais e trans

A mesma exclusão também afeta as mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais. A presidente da União de Mulheres de São Paulo, Rute Alonso (foto), reforça que existe uma aceitação desse tipo de violência, calcada em estereótipos e preconceitos que dizem que as mulheres lésbicas, bissexuais e trans não são seres humanos e, logo, seriam merecedoras da violência que sofrem. “Parece que a nossa sociedade tem um pacto tácito em que há uma permissividade da violência contra essas pessoas. A figura da travesti é ligada ao marginal e a tudo o que é ruim na sociedade. O estupro corretivo que as mulheres lésbicas sofrem é colocado como algo natural para colocá-las em seu devido lugar”, exemplifica.
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A lógica da violência é corroborada por manchetes e matérias que desumanizam essas pessoas e não as reconhecem como pertencentes ao gênero que escolheram. Rute também lembra que o fato de que essas mulheres estão ganhando voz e direitos incomoda a sociedade. “A partir do momento em que temos políticas que promovem os direitos da população LGBT, as pessoas se sentem incomodadas, por verem a violação desses direitos como algo naturalizado. Não foi o mundo que mudou, é que agora temos uma proteção, direito a respeito, de ser tratada pelo nome social, de ter o tratamento de gênero respeitado.”

Direitos, responsabilidades e serviços

Para que as mulheres possam superar essas e outras violências presentes no cotidiano, o Dossiê também indica os caminhos para acessar a rede de atendimento e enfrentamento à violência. Marisa Sanematsu, diretora de comunicação do Instituto Patrícia Galvão, ressalta que as matérias jornalísticas que falam sobre o assunto raramente trazem tais informações, essenciais para que as mulheres rompam o ciclo de violência.

Luana Grillo da Silva, analista de programa da ONU Mulheres, reforça que o tema da violência está relacionado diretamente com a atuação da rede e que a mídia pode ter papel fundamental na divulgação e fiscalização dos serviços existentes.
Público-alvo aprova a proposta do Dossiê.

Em seus comentários sobre o Dossiê, as repórteres, blogueiras e colunistas presentes foram unânimes em elogiar a proposta da ferramenta, considerada uma importante contribuição para quem escreve sobre o assunto.

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