A camiseta em questão

As redes sociais pegaram fogo.

Mulheres perplexas, enfurecidas, entristecidas não paravam de comentar –
Você viu? Que horror!!!

Tratava-se de uma linha de camisetas lançadas pela Adidas, e posta à venda no Shopping Westfield, em San Francisco – California – USA.

Numa delas, um coração amarelo num fundo verde, ostentava o que parecia um biquíni fio-dental, transformando-o em uma bunda feminina de ponta-cabeça.

Na outra, uma mulher voluptuosa, com o Pão de Açúcar ao fundo, e a frase
“Looking you score” – com duplo sentido, entre futebolístico e sexual.

A leitura feita é que essas peças – que aparentemente estavam vendendo bem – prometem e estimulam o turismo sexual.

O que os move?

Ora, com tantas belezas a mostrar – tanto em termos de natureza, quanto de simpatia e acolhimento dos brasileiros, quanto em termos de nossa habilidade com a bola nos pés – foram justamente tentar despertar … a fantasia sexual dos turistas?

O que queria a Adidas? Só faturar mais uns trocos?

O seu recuo, diante da mobilização do Ministério do Turismo, da SPM e da
própria presidenta, marcou um tento a nosso favor. Mas teremos milhões de olhos atentos a todos os expedientes utilizados para faturar às custas da
venda da imagem da mulher brasileira? Até tentamos ampliar a vigilância,
contatando feministas americanas para nos auxiliar nessa tarefa.

Mas, afinal, porque nos indignamos tanto, desta vez?

Lá e cá

Essa última pergunta me levanta algumas questões.

A primeira é que a publicidade brasileira reproduz ad nauseam imagens e
idéias semelhantes à que nos provocou a nossa fúria. Mulheres “gostosas” e semi-nuas praticamente caem no colo dos bebedores da cerveja x, y ou z.

O homem pode entregar todos os artifícios de sua “beleza” ao assaltante, que lhe basta o desodorante (e o carrão) para que a loira estonteante que entra no carro, se recoste nele, satisfeita e ronronante.

Há um par de meses, mulheres brasileiras vivendo em Portugal nos contataram
denunciando que, a pretexto da Copa, a mulher brasileira estava sendo
retratada como prostituta, ou como mulher eternamente desejante e receptiva.

Uma fêmea eternamente no cio.

Elas queriam o nosso apoio na coleta de assinaturas numa moção de protesto.

Pedi-lhes cópia das imagens que eles lá veiculavam. E me mandaram… as
mesmas imagens que são utilizadas em nossa propaganda nacional!

Meses antes, uma amiga italiana me mandou fotos de uma manifestação
das mulheres, em Roma, em protesto contra a novidade televisiva – desde a
ascensão de Berlusconi, havia nos programas dominicais uma série de jovens
mulheres, pouco vestidas, dançando, sem que aquilo tivesse nada a ver com o
tema ou conteúdo abordado no programa. (Lembram do Domingão do Faustão
e tantos outros similares?)

Pois bem, elas estavam preocupadas porque achavam que as jovens poderiam
– ou estavam começando a – ver este papel como uma perspectiva de
ascensão social desejável…

Aqui, já estamos tão bombardeadas destas imagens, que reagimos apenas
às mais terríveis. O nosso limiar de percepção já incorporou, já naturalizou
essas imagens – que, inclusive, as mulheres introjetam como ideal de beleza
que procuram alcançar. Ou que simplesmente rebaixa a sua auto-estima. Além de – é claro – movimentar a nossa já muitíssimo bem-situada indústria de
cosméticos e de procedimentos estéticos.

Porque então a indignação?

Mas afinal, porque esta imagem específica, estampada na camiseta americana
nos perturbou tanto?

A hipótese a que cheguei é que ela muda o nosso papel no mecanismo de
venda.

Nas propagandas de cerveja, de automóvel e outras, somos uma espécie de
brinde que vem para o consumidor do produto que está sendo anunciado.
Estimulamos e enfeitamos a venda.

Neste caso das camisetas, o produto vendido somos nós, as mulheres
brasileiras.

A diferença é sutil, mas é importante. Escancara-se mais abertamente a nossa utilização … como mercadoria.

Compatibilizar a imagem externa e interna

Mas o problema com que nos defrontamos – não se ver o Brasil como um
destino para o turismo sexual – se coloca tanto em termos da imagem que
vendem de nós “lá fora”, quanto de nossa imagem nos out-doors, na mídia, na
propaganda em geral, aqui no Brasil.

Ou como imaginam que reagirão os turistas diante de nossos comerciais?

Lembro de um cartaz, num aeroporto do Ceará, com uma paisagem, à frente
da qual um prato de frutas tropicais e uma mulher de biquíni. E com os dizeres

“Desfrute as belezas do Ceará”.

A hora é de deixar de lado a hipocrisia, e de dar o nome certo às coisas. A
publicidade e a mídia contribuem fortemente para a formação da cultura,
para a naturalização da violência de gênero, para a mercantilização do
corpo da mulher. Como atividade com o alcance e impaco social que tem,
deveriam ser sujeitas a normas que garantissem o efetivo exercício de sua
responsabilidade social.

A hora é de pensar numa ação civilizatória e respeitadora dos direitos humanos
(porque as mulheres também são seres humanos), que também se estenda
para a mídia como um todo.

A indignação e receptividade da SPM e da Presidência foram um sinal
alvissareiro, que queremos estender para um cuidado maior com relação à
imagem da mulher na mídia em geral, e na publicidade.

Será pedir muito?

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