Arte é uma coisa presente na vida de todas as pessoas, ainda que elas não se dêem conta disso. Arte e saúde, arte e loucura são aspectos humanos historicamente ligados. Desde o século XIX, várias linhas de experiências contra-hegemônicas na área de saúde mental utilizaram a arte na disputa com a lógica manicomial e medicamentosa da psiquiatria tradicional. Mas só no início do século XXI acontece a Reforma Psiquiátrica no Brasil, fruto da luta de muitos. A conquista fechou hospícios e implantou alguns serviços de atenção psicossocial e centros de convivência para as pessoas com transtornos mentais severos e/ou persistentes, que constituem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Entretanto, políticas públicas que ignoram princípios do SUS e da reforma psiquiátrica vem causando retrocessos às conquistas da luta antimanicomial no Estado de São Paulo. “São muitas as pretensões da Reforma Psiquiátrica, não basta fecharmos os manicômios e criarmos uma Rede de Atenção Psicossocial”, avalia Rafael Presto, dramaturgo e oficineiro do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) Infantil Sé e arteiro da Rede dos Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial. “Faz-se necessário avançar, e muito, na forma como se constitui o tecido sociocultural dos modos de vida não-hegemônicos, ou seja, a forma como a sociedade compreende as muitas existências fora da norma produtiva capitalista – o louco, o drogado, o deficiente, o velho, a criança”.
E é justamente neste campo que as iniciativas artísticas dentro dos modos de produção de cuidado podem atuar, explica o arteiro oficineiro. “O norte do cuidado psicossocial está em promover experiências que permitam que uma pessoa com transtorno mental possa constituir com a cidade um dia-a-dia saudável, um cotidiano capaz de produzir potência de vida abarcando o modo de existir dessa subjetividade. Nesta perspectiva, a produção artística opera como ferramenta potente para produção destas territorialidades vitais, pois atua diretamente no campo simbólico, possibilitando outras construções culturais no tecido social”.
O clássico binômio “arte e loucura” fala de uma potência, mas também carrega certa conotação pejorativa, nos lembra Anderson Gomes, artista Gráfico e oficineiro no CAPS ADII Ipiranga. “Pensar noutro registro de subjetividade é assumir outras formas de expressividade e não tentar normatizá-las, pacificá-las ou domesticá-las. A honestidade do louco é insuportável”, diz. “E a arte está na conjuntura muito particular de uma subjetividade que já habita o território do poético e que por vezes carece de um ambiente onde possa significar. Criar este ambiente, esta atenção, exige que se rompa com a lógica que pensa ser necessário tornar o louco um pouco mais normal. A arte é contra uma ideia hegemônica de normalidade”.
Espaço de liberdade
Pirei na Cena – teatro no Caps Mandaqui
É nessa perspectiva que os Grupos e Oficinas Artísticas dos pontos de atenção da RAPS acontecem, buscando construir uma estratégia de cuidado ampliada, seja fotografando uma praça, pintando telas, fazendo esculturas, ensaiando uma peça, tocando música. O CAPS da Casa Verde é um exemplo desse trabalho. Com 400 usuários cadastrados, apenas cerca de 50 fazem ali atividades diárias. Com participação entre 15 e 20 pessoas por oficina, lá existem dois grupos de teatro, dois grupos de dança, um grupo de canto, um de instrumentos musicais e um ateliê de artes plásticas, nos informa Jorge Luiz Vieira, psicólogo nesse Centro desde 2009.
Jorge à direita
Estudante e militante da causa em Santos, ele acompanhou as primeiras experiências nos cuidados com a loucura por meio de teatro e da Rádio Tantan, desde a primeira desativação de hospício, que se deu naquela cidade em 1989. “Desde o início, a arte se insere na luta antimanicomial”, diz Jorge, “como um espaço de liberdade, de criação, de lidar com a loucura acolhendo-a, dando expressão a ela e não apenas classificando-a e reprimindo-a por meio de remédios”. Embora os remédios tenham o seu lugar, como faz questão de frisar o psicólogo, e os usuários todos sejam medicados. O primeiro acolhimento deve ser o da família, falta sentida por muitos quando da desativação dos primeiros manicômios com a reforma psiquiátrica. “Se não é acolhida na família, a pessoa fica excluída em espaços de asilamento como albergues, casas de idosos, casas para menores”. Mas não basta a lei para a perspectiva antimanicomial, opina Jorge. “Há a necessidade de articular a defesa dos direitos humanos na saúde mental. Faltam estratégias, juízes não entendem os equipamentos, comunidades terapêuticas desenvolvendo trabalhos com viés religioso, internações compulsórias”.
Tratam-se de imposições da cultura hegemônica que muitas vezes nos tiram a saúde. “A articulação entre arte e saúde já tem caminho histórico construído”, analisa Priscila Tamis, psicóloga e arteira, uma das organizadoras da Rede dos Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial. “Não inventamos a roda, mas sabemos bem dos aprisionamentos cotidianos. E hoje, afirmamos e potencializamos um movimento de luta antimanicomial que se afirma pelo paradigma da arte. Compreendemos o ser humano em sua integralidade, portanto afirmamos ações transdisciplinares e olhar ampliado; não cabe mais pensarmos de modo fragmentário saúde e cultura. Quando produzimos cultura, também produzimos saúde”.
Rede coloca as artes no balaio
O que avança tem sido sobretudo por iniciativa e persistência dos trabalhadores da saúde, de médicos e psicólogos a assistentes sociais e “oficineiros”. Foi a Rede dos Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial que organizou o II Balaio das Artes – Mostra de Artes da Atenção Psicossocial, que aconteceu no último dia 14 de maio, no Centro Cultural São Paulo. Desde o primeiro Balaio, a ideia é “reunir as muitas produções artísticas dos serviços de atenção psicossocial em um dia de trocas entre usuários, trabalhadores, familiares, e territórios interessados na expressão estética como produção de novos modos de existência”. Com um ano e meio de organização, a rede reúne artistas oficineiros e outros profissionais, como explica Priscila. “É um movimento autônomo de trabalhadores em saúde, que se interessam em pensar e construir conceitos e práticas estéticas como modo de produção de saúdes e subjetividades, como reinvenção de territórios e ocupação dos espaços da cidade”.
Organizadores do Balaio: no centro Presto e Priscila
Também Presto faz questão de ressaltar o protagonismo da rede e dos trabalhadores que atuam na ponta dos serviços de atenção psicossocial. “A potência e o propósito da rede nascem disso: construir um espaço de solidariedade e luta entre trabalhadores da saúde, que sofrem todos os ataques e fragilizações de quem encara a árdua tarefa de produzir a Saúde Pública do Brasil”. O oficineiro-arteiro sabe que muitos os precederam. “Hoje, a política nacional prevê como parte integrante das equipes dos CAPS os oficineiros. Eles são uma conseqüência desse processo de construções estéticas realizado, antes de tudo, por diversos profissionais – psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, educadores físicos, assistentes sociais. A arte vem sendo utilizada para desmistificar e transformar a concepção que a sociedade criou dos modos de vida não hegemônicos desde os primórdios da psiquiatria”.
A Rede dos Fazedores de Arte realiza encontros mensais, sempre na última terça de cada mês; o II Balaio é o terceiro evento produzido por ela. “O Balaio surge da necessidade de ação direta”, acredita Priscila. “É um gesto de esforço coletivo para dar maior visibilidade às produções e processos estéticos dos cotidianos de serviços em saúde. O II Balaio das Artes mobilizou usuários, familiares e trabalhadores em saúde de toda a cidade. Tivemos alegria, arte, inclusão, ocupação do espaço público e solidariedade; valores ético, estético e políticos que nos interessam”.
Encerramento do Balaio
“Saúde não se vende, loucura não se prende”
Com esse mote, foi realizado no dia 18 de maio – Dia Nacional da Luta Antimanicomial – ato público em frente ao Teatro Municipal, em São Paulo.
Dizia seu manifesto:
“Diferentes governos tem feito escolhas por investir em ações e serviços distantes dos princípios da Reforma Sanitária e Psiquiátrica Antimanicomial, realizando ações como Programa Recomeço, operação dor e sofrimento, internações compulsórias, financiamento público das comunidades terapêuticas e manutenção e ampliação do número de leitos em hospitais psiquiátricos e em instituições asilares.
Da mesma maneira esse retrocesso aparece nas práticas perversas que legitimam o genocídio da população negra e indígena, pobre e periférica; a criminalização da juventude e dos movimentos sociais; o desrespeito às orientações sexuais e às mulheres; a exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes; e a apropriação privada de bens e serviços públicos.”
O ato foi convocado por dezenas de associações, redes e movimentos sociais da Frente Estadual Antimanicomial, que defendem principalmente:
Um Sistema Único de Saúde (SUS) Público, Universal, Equânime, Integral, Gratuito e Humanizado; o estatuto do idoso e o estatuto da igualdade racial; o combate a práticas manicomiais e higienistas, como o assistencialismo, a internação compulsória, a medicalização e patologização da vida, a partir do protagonismo dos usuários em seu cuidado; o combate à Judicialização da Saúde como forma de subordinação da Vida e do Cuidado da População ao sistema judiciário; o combate à escravidão e à terceirização e toda a forma de precarização do trabalho; a emancipação e tratamento em liberdade dos usuários de álcool e outras drogas respeitando os direitos humanos e princípios da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial; o FIM da política de Guerra às Drogas que exclui e justifica as ações higienistas e genocidas do estado contra sua população mais vulnerável.