A edição do Fórum Social Mundial (FSM) 2021 se encerrou no último domingo de janeiro. Se os promotores o consideram uma grande conquista no processo de 20 anos de existência, os olhares externos se questionam sobre o esquema tecnológico que o constituiu. Como foi possível conseguir que quase 10.000 pessoas de 144 países de diferentes continentes pudessem se organizar e participar por nove dias em quase 800 atividades, com painéis-apresentações-intercâmbios em sua maioria traduzidos para dois ou três idiomas?
Entrevista com François Soulard, especialista em comunicação, ativista associativo e animador da plataforma Dunia, um dos principais pilares que sustentaram a base técnica do FSM 2021. (https://dunia.cc/es/)
FSM 2021: a edição foi um êxito tecnológico.
Um dos debates iniciais do FSM 2021. Foto: Sergio Ferrari
P: O primeiro Fórum Social Mundial em 20 anos, totalmente digital. Sua própria realização/existência não deixa de surpreender…
François Soulard (FS): Sim, houve muito entusiasmo e uma grande vontade de sair do isolamento e encontrar-nos em torno de um grande imaginário comum. O número de participantes reflete isso. Quase não tivemos interrupção nos suportes comunicação, exceto em um servidor de vídeo Peertube, cujo disco se ampliou tanto que tivemos que estendê-lo. Na África e em outros lugares mais distantes das grandes infra-estruturas, o acesso às redes foi mais difícil devido ao custo da conectividade. Sem dúvida – e o constatamos neste FSM mais uma vez – as barreiras digitais constituem uma triste realidade global.
Base técnica para intercâmbio global
P: Como foi garantida a realização técnica de um FSM dessa natureza?
FS: O fórum foi estruturado em torno de um registro online das propostas, painéis e atividades, as quais tinham tendo como pano de fundo os espaços temáticos que iam estruturando os conteúdos conceituais. Os participantes e as organizações foram gerando assim seu próprio Programa Final do FSM, que se desenhava à medida que cada atividade proposta era carregada em uma faixa horária, com seu conteúdo enquadrado em um ou mais eixos temáticos. Foi um fórum muito participativo, hiper descentralizado, com outra modalidade e baseado no uso de computadores! Um balanço rápido: entre os dias 23 e 31 de janeiro, contabilizamos 37 mil visitas ao site base join.wsf2021 e 152 mil buscas no repertório de atividades. A participação do Brasil, com mais da metade dos participantes, foi decisiva. Toda a sua realização foi assegurada e assistida, de fato, pela infraestrutura corporativa instalada na Internet (Zoom, Facebook, Google). Fizemos um grande esforço para usar também outra infraestrutura baseada em ferramentas gratuitas e abertas como drupal, civicrm, big blue button, peertube, jitsi e mobilizon. Essa realidade dual e contraditória levou a se politizar mais o debate no mesmo fórum sobre temas e desafios da comunicação.
Equilíbrio tecnológico e político
P: Quais os principais problemas que tiveram que enfrentar?
FS: Dada a polarização social própria em algumas regiões do planeta, ocorreram várias irrupções agressivas em encontros online que tinham por objetivo interromper ou obstruir certas atividades. Isto aconteceu essencialmente no Brasil. Na Índia, algumas propostas de programas foram canceladas devido a eventos ligados à enorme mobilização dos camponeses e à repressão do Forte Vermelho em Nova Delhi. Na Tunísia, uma discussão online que usava o Zoom e da qual participava uma ativista local muito conhecida foi desativada pela própria empresa. Por outro lado, alguns participantes tiveram dificuldade ao empregar o computador para participar do FSM. Foi preciso forçar uma reflexão ainda não instalada. Há muita diversidade de abordagens, gerações e culturas dentro deste grande espaço e é preciso aceitar isso como uma primeira realidade.
P: E os aspectos positivos…
FS: É que foi uma realidade e nós conseguimos realizá-lo! A pandemia obrigou a gerar outra coisa que provavelmente a própria organização do FSM não teria sido capaz de gerar em um período normal. Foi preciso colocar a inteligência em rede a serviço do fórum. Em suma, eu diria que o poder da Internet permitiu construir ao mesmo tempo mais unidade e mais diversidade: mais visão de conjunto do programa e um calendário comum de ação; maior agilidade para consultá-lo e explorá-lo; maior diversidade de atividades; maior descentralização e horizontalidade. Por outro lado, por ser um fórum virtual e por sua amplitude e dimensão, ficou menos disperso em eventos paralelos ou devido a problemas de logística presencial. Recorde-se que cada edição foi confrontada – desde o 1º fórum – por este tipo de problemas no que diz respeito a lugares físicos, à amplitude do espaço onde se desenvolvia e às mudanças de salas. Muitas vezes, até mesmo com a impressão do programa final de todo o evento. Agora, os encontros online impuseram a obrigação de se propor um conteúdo disparador e mobilizador para estruturar essas relações. A lógica de organização remota fez com que os conteúdos e as temáticas fossem mais destacados.Esta forma de organização que abriu portas para o processo contínuo – mais que a organização de um evento final – é muito interessante.
Próximas etapas, desafios abertos
P: Desafios futuros?
FS: Acho que será impossível sintetizar todos os conteúdos deste FSM, pois a sobreposição de atividades não levou automaticamente à construção de propostas comuns. Ainda há um ponto fraco aí: a construção de perspectivas comuns a partir do conteúdo e das propostas. Apesar de que para isto foram planejadas as assembleias e o último dia, as convergências no Agora. E então, rapidamente, o calendário que segue rumo ao próximo FSM no México. Vai obrigar a muita criatividade e a reforçar as convergências para avançarmos a partir de onde paramos nesta edição virtual. Adicionalmente, acho que sem dúvida o fórum é um ator global. Mas os desafios geopolíticos e os da esquerda internacional o atravessam como a qualquer outra organização: há inércias ideológicas, dificuldade para sair dos métodos herdados de construção e de pensamento. A superação faz parte do seu próprio desafio. Concretamente, o grande desafio interno será garantir uma sequencia tendo em vista esse futuro. Os discursos levantam ambições importantes, mas na prática a implementação e a sequencia podem se diluir se os compromissos individuais não forem adequados… com 800 atividades incluindo os painéis centrais e quase 10.000 participantes, corre-se o risco de dispersão. Coordenar algo nessas condições exigiu uma linguagem comum e confiança acumulada. Um elemento positivo: as equipes que antes se conheciam funcionaram muito bem. Na verdade, sinto que houve uma conformidade relativamente alta e sem precedentes no que diz respeito à organização.
“Continuar sonhando com os olhos abertos”
P: Algumas reflexões finais como um ator importante dessa equipe que conseguiu assegurar a base técnica deste encontro virtual…
FS: Eu creio que é preciso seguir sonhando com os olhos abertos, isto é, articular aspiração e percepção das situações particulares e da realidade, deixando um pouco de lado a tendência de ideologizar. Esta ida e volta é imprescindível hoje e requer uma nova ética pessoal/coletiva. O fórum foi organizado sem os abraços que sempre são essenciais. Dialeticamente, houve menos problemas logísticos típicos desses grandes eventos presenciais que sofrem por sua própria magnitude. Por outro lado, e para que não nos esqueçamos, neste 2021 comemoramos os 20 anos do FSM, nascido em 2001 em Porto Alegre. E neste marco histórico, o nível de mobilização confirma que a sociedade civil requer uma agenda social global, processos de convergência e luta que vão além do seu âmbito habitual. Poderíamos ir mais longe – neste sentido – à luz das crises que estamos vivendo. Neste FSM 2021, foi dado um passo adiante.
Convocatória internacional para o FSM. Foto: Sur y Sur.