Voto obrigatório e hegemonia burguesa (2ª edição corrigida)

Voto obrigatório e hegemonia burguesa

2ª edição corrigida.

Por Jacob (J.) Lumier

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Não deixa de ser interessante observar nas redes sociais a proliferação de grupos de debate em torno da consigna “voto facultativo sem restrições”, ao passo que esse tema parece ainda resistir alheio às pautas da nossa história parlamentar contemporânea, atualmente renovada. Talvez essa ambivalência não prolongue muito tempo.

Claro! Há quem diga que o voto obrigatório não muda a qualidade da democracia eleitoral e que só o debate de ideias na mídia importa, querendo tal interlocutor dizer com isto, talvez, que a hegemonia burguesa e o correlato elitismo têm base em outros aspectos do capitalismo que não a cultura do subdesenvolvimento, a que pertence o antiabsenteísmo com seu ranço cartorial.

Certamente, a conhecida doutrina anti-sociológica da “circulação das elites” (Pareto, Mosca, Michels), tão cultuada nas “altas rodas” (como diria C. Wright Mills), é a ideologia responsável pela “oligarquização” das democracias em escala global, e revelou-se bastante útil ao “produtivismo” e seus modelos estandardizados de êxito, que compõem a hegemonia da burguesia (acumulação do capital para o capital), a que me oponho em conformidade com PATRICK LE HYARIC – Député au Parlement Européen et Vice Président du Groupe GUE/NGL Gauche Unitaire Européenne / Gauche Verte Nordique: o combate à hegemonia burguesa em escala global passa pela defesa de uma outra política agrícola comum (Tecle aqui para ver o pronunciamento de Patrick Le Hyaric).

A livre expressão dos eleitores

Embora se imponha como doutrina haja ou não o regime do voto obrigatório, tudo está a indicar que o elitismo em nossa história parlamentar, ao invés de incrementar o modelo motivado da democracia eleitoral, produz uma “democracia cartorial”, da qual a hegemonia burguesa parece não prescindir, haja vista os seguintes aspectos: (1) imposição da concepção restritiva de que a sustentação da democracia deve ser atributo unicamente dos representantes; (2) por esta via, a prática neoliberal de convocar os eleitores a votar, não para exercer sua parte na sustentação da democracia, mas somente para moderar com seu voto em alternativas definidas de antemão o contencioso que opõe os grupos em luta pelos altos cargos.

Há, pois, uma qualidade específica no modelo de democracia eleitoral com voto obrigatório. Primeiro lugar: ao invés de garantir a livre expressão do arbítrio dos eleitores, as restrições compulsórias aos presumíveis absenteístas constituem suspeitas indiscriminadas sobre os votantes que cerceiam a liberdade do ato de votar, fazendo do sufrágio o imbróglio de um direito que é ao mesmo tempo uma imposição sob penas legais, isto é, um “voto sob pena de…”.

Segundo lugar: por tal desvio, ao subordinar os votantes aos ditames tecno-burocráticos dos cartórios eleitorais, as restrições compulsórias aos presumíveis eleitores absenteístas revelam-se restrições irrazoáveis (unreasonable restrictions) no sentido repelido pelo “Article 25 da International Covenant on Civil and Political Rights”, de 16 December 1966 [tecle aqui] porque tiram as relações com os eleitores do âmbito da prerrogativa constitucional do Congresso Nacional, onde têm sede as legendas partidárias que produzem o conteúdo objeto de eleição (plataformas, chapas, listas, propostas, candidatos) e que se revestem em destinatários dos votos depositados. Portanto, é do Congresso Nacional a prerrogativa das relações com os eleitores em todos os níveis, que delas não pode abrir mão sem que isto implique judiciar com antecedência a livre expressão do arbítrio dos eleitores.

Exemplo de soberania social

Mas não é tudo. Terceiro lugar: Ao tornar pré-judiciada e assim macular a realização da livre expressão do arbítrio dos eleitores, que deveria ser um ato sem manchas, a “votação sob pena de…” manifesta um caráter cultural ilusório, com incoerência, pelas seguintes razões: 1) discrepância do discurso de motivação que é propagado sobre a realidade de imposição, produzindo uma falsa aparência sobre o sufrágio universal, cuja consequência se reflete na disparidade das escolhas elegidas, das quais se esperaria uma tendência coerente para as políticas públicas; 2) indispensabilidade do valor da obediência como elemento constitutivo do “voto sob pena de…”, em detrimento da capacidade política eleitoral das classes subalternas.

Com sua arte moderna de montage combinando ação de mass media e controle tecno-burocrático, o regime do voto obrigatório revela-se, em quarto lugar, um aspecto da hegemonia da classe burguesa, não somente em função do caráter vigilantista sobre as classes subalternas, projetado no antiabsenteísmo do “voto sob pena de…”, mas notadamente como disse em razão da instituição do valor cultural da obediência, com prevalência sobre o valor do ideal político (aperfeiçoamento da democracia), e isto em detrimento da soberania social exercida nos grandiosos atos coletivos da inesquecível campanha das Diretas Já (1983-1984) – sem esquecer que, como ensinou Gramsci, a hegemonia burguesa é notadamente um fenômeno cultural que, em consequência, implica “educação em matéria de obediência”, isto é, a domesticação das classes subalternas.

Questão de fatos, a soberania social pode ser constatada na união prévia tornando mais transparente o pacto social que vem das sociedades globais, projetadas estas, por sua vez, além das comunidades supranacionais, nas diversas entidades, fóruns, movimentos, conferências, convenções, tratados e organizações internacionais.

Do ponto de vista histórico contemporâneo, o exemplo mais contundente da soberania social como fenômeno total global é a corrente de atos coletivos que teve foco nas agitações trabalhistas levando à formação do sindicato autônomo Solidariedade (Solidarność), isto é a federação sindical fundada em setembro de 1980, em Varsóvia, Polônia.

Justificação ideológica

Neste sentido, se compreende que a Campanha das Diretas Já em 1983/1984 é um movimento que engloba nossa história particular, e tem integração em uma corrente global de atos coletivos que transformou a configuração do mundo político e revitalizou o ideal do aperfeiçoamento coletivo da democracia. E não estou dizendo novidade alguma. Graças a cooptação pelas classes superiores, muita gente boa se esforça em esquecer a efetividade da soberania social.

Seja como for, para ultrapassar o elitismo na cultura do subdesenvolvimento que aí está, devem ter em conta que o atual eleitorado brasileiro é como disse aquele que exerce a soberania social conquistada nos grandiosos atos coletivos pelas Diretas Já, e que o regime do voto obrigatório, com suas restrições irrazoáveis (repelidas como disse pelo mencionado Article 25 International Covenant on Civil and Political Rights, em Epígrafe) tende para o fim porque incorre em certo desequilíbrio nas relações institucionais, haja vista o deslocamento das relações com os eleitores, cuja sede constitucional é o Congresso Nacional e não a tecnoburocracia.

Depois da brilhante e elevada campanha bem sucedida da candidata da ecologia política pelo louvado Partido Verde, a notável senadora ambientalista Marina Silva, não só fortalecido está o ideal do aperfeiçoamento da democracia, mas o elitismo dominante perdeu o fio de suas próprias alegações.

Por exemplo, como preservar a conversa fiada de que o voto obrigatório sob penas legais aos “faltosos” tivera algum alcance formativo além de educar em matéria de obediência imposta? A quem a lengalenga da obrigatoriedade educativa vai enganar quando está mostrado e demonstrado que o regime do “voto sob pena de…” serve unicamente de justificação ideológica para os grupos em luta pelos altos cargos repartirem de antemão suas fatias do grande bolo federativo.

Em favor do voto facultativo

Muitas foram as pressões da mass media contra uma candidatura independente em face da praxe neoliberal de estabelecer alianças elitistas prévias à participação e com imposição aos eleitores. Aliás, é por esta razão que se afirmou candidatura diferenciada, e isto não só pela firme defesa da indispensável plataforma ecológica. O alcance histórico objetivo de sua independência trouxe consigo a dignificação jurídica-política do eleitorado, tarimbado este como disse em matéria de compromisso democrático desde os anos 80, por seus atos coletivos em favor das Diretas Já (1983/4).

Daí que, uma vez posto o caráter social de sua campanha independente, os quase 20 milhões de voto em Marina Silva presidente constituem uma resposta cabal aos elitistas radicais contrários ao voto facultativo sem restrições e derrubam por terra a falácia de que supostamente não haveria na sociedade uma corrente política consistente em dissensão perante o voto obrigatório, com disposição contrária ao modelo de vertente patrimonialista que o mesmo significa. Desta forma, pode-se afirmar que o reconhecimento da soberania social foi alcançado.

A soberania social é reconhecida quando a modernização e mudança em os níveis ou aparelhos organizados de qualquer espécie hierárquica (níveis econômicos, gerenciais, políticos, administrativos, culturais, por exemplo, dentre outros) não implique em imposição prévia das alternativas não-excludentes umas às outras, mas, para adotá-las, os modernizadores acolham as medidas que passem pela indispensável participação garantida, com a elaboração de seus critérios em conformidade ao arbítrio para este fim exercido em livre expressão dos setores subalternos.

O reconhecimento da soberania social compõe a mirada da sociologia e orienta a atuação do sociólogo como integrante do mundo do trabalho, e, como doutrina das democracias em sociedades com desenvolvimento industrial, a Soberania Social foi expressamente promovida como base para a implementação homogênea dos direitos em todos os níveis e escalas das sociedades, pelo que constitui uma doutrina histórica de reconhecimento e revalorização dos Direitos Humanos e dos Direitos Sociais (vejam o livro do notável sociólogo Georges Gurvitch intitulado La Déclaration des Droits Sociaux, New York, Maison de France, 1941).

Por estas razões, subscrevo e promovo todas as iniciativas de eleitores em favor do voto facultativo que se proliferam nas redes sociais, e deixo aqui minha sugestão de uma ciberação junto aos representantes no Congresso Nacional para tal desiderato.

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