“Motosserra” de Milei ataca a ciência argentina

Marcha de Trabajadores del CONICET en Mendoza, en contra de las políticas de ajuste en Ciencia y Técnica. Crédito de la imagen: Red de Autoridades de Institutos de Ciencia y Tecnología/Facebook, imagen en el dominio público.

ScidEv.net -Cientistas temem que o “déficit zero” acabe por destruir o setor e conduza a uma nova fuga de cérebros

Num contexto de recessão e de aumento da pobreza, o setor científico argentino atravessa uma crise agravada pelo congelamento orçamental, pela paralisia das suas organizações e pela crescente incerteza entre os investigadores.

Desde sua chegada à Casa Rosada, em dezembro de 2023, o presidente ultraliberal Javier Milei rebaixou o Ministério da Ciência à categoria de Secretaria e paralisou o ingresso de bolsistas no Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica, cujos trabalhadores também denunciam a possibilidade de perda de projetos já aprovados.

Nas últimas semanas, Milei insistiu no seu objetivo de “déficit zero” – o que implica fortes cortes em todo o aparelho de Estado – e no seu desprezo pelos cientistas, que segundo ele “acreditam que ter um diploma académico os torna seres superiores, e por isso nós todos devem subsidiar sua vocação”.

Com o próprio financiamento público da ciência a ser posto em causa, o investimento na área diminuiu 30 por cento durante esta presidência, segundo os próprios cientistas.

O poder de compra de seus salários se degradou no mesmo percentual, calcula Jorge Aliaga, ex-reitor da Faculdade de Ciências Exatas e Naturais da Universidade de Buenos Aires e atual secretário de Planejamento da Universidade Nacional de Hurlingham (UNAHUR).

“Os jovens em formação têm menos acesso a bolsas de pós-graduação e, dos que conquistaram a vaga no ano passado, ainda não entrou nenhum”, acrescenta em conversa telefónica com o SciDev.Net.

O valor dos subsídios concedidos pela Agência Nacional de Promoção Científica e Tecnológica (Agência de I&D&I), responsável pelo financiamento dos projetos, manteve-se neste ano nos mesmos valores de 2023, apesar de a inflação interanual rondar os 260 por cento.

Mas mesmo este financiamento – cujos recursos provêm maioritariamente de organismos internacionais – é duvidoso, dado que depende da assinatura de responsáveis ​​que, em vários casos, ainda não foram nomeados.

Para a virologista Andrea Gamarnik, com mais de 30 anos no setor, “o plano é destruir a cultura científica argentina”, “não só pela redução do orçamento, mas também pela inação e incompetência das autoridades”.

Sua equipe de trabalho, especializada em dengue, está paralisada pela “desorganização administrativa e pela falta de pagamento de subsídios que impede a compra de insumos”.

Isso acontece depois que a Argentina passou pela pior epidemia da doença em sua história e às vésperas de uma nova temporada de circulação do vírus.

Embora também tenham sido ampliado os orçamentos para programas como Build Science (dedicado à criação ou adaptação de infraestruturas) e Equip Science (aquisição de equipamentos), este ano “nada foi executado”, critica Aliaga.

No âmbito destas iniciativas, a UNAHUR candidatou-se à construção de um edifício na área da Biotecnologia, exemplifica. “Mas apenas 35% foram executados. Aí está o esqueleto, com o resto do trabalho parado, como todos os grandes projetos da ciência argentina”, afirma.

“O plano é destruir a cultura científica argentina […], não só pela redução do orçamento, mas também pela inação e incompetência das autoridades.” – Andrea Gamarnik, diretora do Instituto de Bioquímica de Buenos Aires do Conicet

Estas incluem a pesquisa de câncer de mama e de pele, a resistência aos antibióticos e as contribuições da agricultura familiar para a segurança alimentar.

Também está paralisada a compra de equipamentos médicos, como tomógrafos e ressonadores, e a construção de satélites e reatores de pesquisa nuclear, nos quais a Argentina é referência mundial há décadas.

Mesmo considerando a dimensão dos cortes, há casos marcantes de subexecução, como o do Ministério da Inovação, Ciência e Tecnologia, que até 22 de setembro havia gasto apenas quatro por cento dos fundos atribuídos.

Esta organização também paralisou o desenvolvimento de planos nacionais, a coordenação com universidades e organismos especializados, segundo dados que são enviados a organismos internacionais e os processos de avaliação institucional.

Quando questionado pelo SciDev.Net, um porta-voz respondeu que “o secretário [Darío Genua] não está dando notas”, pelo menos até que uma auditoria institucional seja concluída.

Mais cortes e medos

O projeto de orçamento para 2025 contempla uma despesa de 1,7 bilhões de pesos (1,7 mil milhões de dólares) para a função ciência e tecnologia, o que representa 0,22 por cento do produto nacional bruto, quase o mesmo que este ano e em contraste com um ligeiro aumento registado até 2023.

Assim, o objetivo de atingir um por cento do PIB até 2031 parece cada vez mais distante. Esse aumento progressivo, estabelecido por lei em 2021, não se concretiza porque a norma “não prevê sanções”, reconheceu o Poder Executivo perante o Congresso.

No próximo ano, a Agência de PD&I ficará “completamente sem financiamento”, enquanto as organizações energéticas, agrícolas e industriais também verão as suas funções seriamente cortadas, com 3.471 despedimentos previstos, alertou Aliaga.

A retração é tão grave que o projeto procura também suspender o investimento estatal de 6 por cento na educação, além do quadro legal que financia o sistema científico, apoiando-se na “emergência pública” postulada na chamada Lei de Bases.

Já Gamarnik apela a “um plano de emergência para salvar o sistema científico e tecnológico”, com orçamentos adequados para cobrir os compromissos assumidos a nível nacional e internacional.

Se a situação não mudar, “as pessoas não poderão trabalhar, viajar para conferências ou comprar suprimentos”, alerta Aliaga. “Alguns vão tentar escapar indo para o exterior.”

Sim, um dos maiores receios da comunidade científica volta a encarnar-se: perder toda uma geração de pesquisadores, algo que o país viveu durante a última ditadura militar (1976-1983) ou nos anos seguintes ao colapso socioeconómico de 2001.

“A magnitude da crise já é muito grave”, conclui Aliaga. “O custo será determinado pela sua duração.”

ScidEv.net

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