Foto: Solange Luciano
Se um projeto alternativo para o Brasil ainda não deu certo, qual a nossa parte nisso? E por onde vamos agora, se há horizontes comuns? E como faremos com nossas diferenças de projetos?
Algumas questões levadas ao II FSB pelos movimentos e organizações sociais preocupados com o contexto político brasileiro são tão difíceis que nem as entidades participantes esperavam que ali elas tivessem respostas.
Elas “não se resolvem aqui”, diz Taciana Gouveia, referindo-se ao evento de Recife e ao fato de serem questões às vezes conflituosas, como a que envolve relações entre movimentos, partidos, Estado.
Mas enfrentá-las pode ser, segundo a diretora nacional da Abong, a grande contribuição do processo Fórum Social (Brasileiro e Mundial Temático) para retomar o debate político – reduzido hoje à disputa mesquinha entre setores que assediam o Estado – e o próprio sentido da política, aviltado nessa disputa.
Nesta entrevista em rede, da Ciranda, ela aponta algumas questões que agora são parte do FSB, como esta: e quando o desencantamento político não se dá exatamente com o inimigo?
Qual o sentido político de se realizar um Fórum Social Brasileiro neste momento
Antes de pensar no sentido do fórum é importante a compreensão do processo fórum. O grande sentido político de realizar um segundo FSB ou todos os outros foruns que se realizaram este ano é dar continuidade a um processo de luta e de resistência dos movimentos sociais, no plano nacional, regional ou local. A gente não percebe como um evento, mas como um momento de reflexão conjunta das lutas que são cotifdianas de todos os movimentos. Então o sentido político principal é mostrar, visibilizar e refletir sobre a ação política de todos os movimentos sociais de um determinado campo político – o campo que resiste a todas as formas hegemônicas de dominação, sejam elas de classe, genero, raça ou de todas as outras construções e dinâmicas construídas de igualdade.
O forum é expressão da luta cotidiana dos movimentos e se dá em um momento que o sentido da política ficou refém de uma visão extremamente reduzida. A política passou a ser vista, experimentada e vivida pela sociedade em geral e por alguns setores apenas como disputa de de interesses privados para que se tornem interesses públicos
Os movimentos sociais, ao longo dos anos, décadas e séculos. têm demonstrado que a política é uma preocupação com o mundo e não consigo mesmo. O FSB traz esse sentido político pra gente. E para mim, e para a Abong, no contexto brasileiro, esta seja talvez a coisa mais importante de se fazer: tornar visível que a política é uma preocupação com o mundo.
De que forma essa percepção pode contribuir para modificar o que estamos vivendo no Brasil? Do que se constitui a experiência brasileira que preocupa o FSB?
A gente talvez reduza a experiência do Brasil nos últimos três anos a uma ação de ocupação do poder por determinadas forças políticas no plano federal. Mas a experiência brasileira vem se constutuindo há muitos anos, e a mais recente há 30 anos. E ela é feita de idas e vindas, é muito complexa e determinada por um perfil extremamente conservador. Ninguem acaba assim com a marca de um fazer político conservador, patrimoninialista, autoritário, e violento, porque a marca com que a sociedade brasileira se estruturou desde sempre é a marca da violência, real ou simbólica. Basta ver a escravidão. Isso nao se apaga em tão pouco tempo.
Ao mesmo tempo, ha a centralidade que o plano federal tem no Brasil, apesar de ser uma federação. Temos uma república mas o que acontece no plano do governo federal é dominante de tudo, o que indica uma centralizaçao na organização do estado brasileiro que em si já é importante e complexa de analisar.
Por outro lado, nesse campo político que se denomina ainda de esquerda, talvez a gente esteja no momento de re-significar as palavras perdidas: participação, democracia e o próprio sentido da esquerda.
Pensar a experiencia brasileira não é só pensar a experiência do governo brasileiro. É pensar a relação entre a sociedade civil organizada. governo e estado, e dos movimentos entre si. Como a gente atua e se articula? Como compartilhar ou não projetos politicos? O nosso projeto político passa simplesmente pela ocupação do estado, ou tem que passar por outros lugares?
Que fusões ou disjunções acontecem quando uma força política ocupa o poder do estado e essa força nos é próxima, ou em algum momento compartilhamos com ela projetos comuns? O que acontece conosco, com os movimentos brasileiros? Esta é uma questão importante porque a gente se acostumou a fazer a política tendo muita clara uma ideia de inimigo, de adversário. Como é que a gente faz política tendo a dimensão de que um projeto político não é apenas um projeto de governo, mas é fundamentalmente um projeto de sociedade, um projeto de mundo. Como a gente faz isso quando somos nós que estamos no poder?
Esse debate é uma contribuição que podemos dar, e é difícil porque requer uma análise muito profunda sobre nós movimentos, nós sociedade civil, com relação a governos e partidos. No fundo a experiência histórica é muito recente, porque a gente vem de uma tradição em que a ação política era privilégio dos partidos. Só que nestes últimos 30 anos, os movimentos sociais, em sua diversidade, também começaram a fazer política por outros lados, e a refletir: qual é a nossa relacao com os partidos. Vamos confluir necessariamente para uma ação partidaria ou somos todos sujeitos políticos diferentes?
Acho que estas são as grandes questões do FSB que não se resolvem aqui, porque política e democracia não se fazem só com consenso, mas também com conflitos. Nâo quer dizer que um aniquile o outro, mas reconheça diferenças e igualdades. Vai um pouco por aí.
Voce já elencou algumas das principais questões trazidas para o II FSB. Mas e a tua avaliação? Você vai mais no sentido de um desencantamento hoje, ou tem uma avaliação mais positiva, mais esperançosa?
Talvez eu esteja entre estas duas posições. Uma idéia que eu uso muito é de uma esperançazinha afoita. A experiencia política, com este governo, está em um plano de desencanto. Mas há outro plano de desencanto, que é de perceber que a nossa forma de luta precisava ter sido revista um pouco antes. Acho que o desencanto mais complicado é quando a gente se desencanta consigo mesmo.
Percebemos a crise se configurar como uma grande crise política, que continua até agora. Mas crise de quase um ano é quase crônica. A gente entende que a estrutura do estado é complexa, e que as nossas formas de fazer políticas não eram tão … Não se trata de classificar como boas ou más e sim perceber com que estratégias lutamos. Era fundamental a ocupação do poder. Mas o que é fundamental: o lugar de chegada, ocupar, ou como a gente constrói e institui novas práticas?
No desencanto com o governo, ano pasado, mais ou menos junho ou julho, a gente também se descobriu desencantada com a gente mesmo. A Abong, por exemplo, também se posicionou. Mas para construir aquele próprio posicionamento foi preciso analisar a crise de governo e analisar porque aquele também era o nosso projeto. Se não deu certo, não da pra culpar apenas o outro.
Daí a importância de avaliar que práticas a gente foi construindo ao longo da história e que nos levaram a isso. Não acho que tenha sido um fracasso. Mas insuficiência da nossa ação política, como um conjunto de movimentos, em um momento histórico, nos leva a nos desencantar.
Mas vem a esperançazinha afoita, no sentido de que o desencanto, quando não é desilusão e é apenas descoberta do real, ele traz a esperança. Por isso eu falo da esperançazinha afoita de reinventar novas práticas. Acho que nós precisamos reinventar a utopia, que ficou perdida. E recuperar sentidos políticos. Por exemplo participação e cidadania viraram palavra fácil na boca de todo mundo. Algo como “seja cidadão, vá pra praia”. E como a gente re-significa esses conceitos?
A gente está em uma disputa de sifnificado político sobre o que é o mundo. E é uma luta de hegemonia, contra a dominação. A dominação se reinventa. E a gente precisa se reinventar também. Novas lutas estão surgindo e novas preocupações.
Penso em dois fatos importantes recentes: os trabalhadores da França, os jovens, e os migrantes em Washington. Na França, é uma tentativa de resposta, equivocada, às manifestações do final do ano, dos jovens migrantes ou não migrantes mas de famílias que não são originariamente francesas, que não tinham mercado de trabalho. Pessoas sem cidadania. Ou seja, em Paris e em Washington , são manifestações de pessoas que se sentem sem cidadania. São os migrantes querendo o direito de existir. E como vc pensa a globalização quando existem pessoas em trânsito? O que essas novas lutas nos dizem? O que a luta do Oriente Médio. Temos de pensar nisso também. E a relação do Brasil e a Bolívia, com gasodutos, imigrantes de lá pra ca. E em São Paulo os bolivianos e colombianos, que vivem siturações absurdas no Brasil. A gente não olha isso? Dizemos ter uma política externa avançada, em relação à OMC e à Alca. Mas como é que a gente faz uma política externa com a Bolívia? É de muita complexidade. A gente achava que era difícil, mas nunca conseguiu enxergar que era tão complexo, o que é diferente.