Na segunda entrevista em rede da Ciranda, Fernanda Mendes, do Movimento Humanista, entrevista Antonio Martins, do Movimento Attac
Imagem: Arte de rua, em ação do COLAtivo, em Alagados.
Os movimentos sociais se proliferaram e cresceram em todo o território brasileiro nos últimos 25 anos. Hoje, maduros, começam a tomar consciência de si mesmos e assumir as rédeas do outro Brasil possível, depois de terem acreditado que a sua verdadeira atividade política estava restrita à colocar a esquerda no poder. E o II Fórum Social Brasileiro – Fórum de Abril representa o marco dessa nova etapa.
Essa é a opinião de Antônio Martins, da Attac, membro da organização do evento, que concedeu a entrevista abaixo à Ciranda.
Qual é o sentido desse II Fórum Social Brasileiro – Fórum de Abril?
O Fórum está ligado à crise política que o Brasil está vivendo, mas que viveu mais intensamente no ano passado, e à afirmação de uma alternativa de transformação social que, nos últimos 25 anos, ficou ofuscada. Os últimos 25 anos foram marcados por dois processos: primeiro, com a democratização, houve a multiplicação de iniciativas autônomas da sociedade, dos movimentos, associações, ONGs. Talvez o Brasil seja o país onde esse fenômeno ocorreu com mais força, se espalhou pelo território todo, se enraizou, se ramificou. Em qualquer bairro que você vá existe essa idéia de que as pessoas podem transformar o mundo, desde que elas debatam e façam ações comuns.
Esse movimento foi ofuscado por um outro paralelo, que foi o surgimento, pela primeira vez na história do Brasil, com força popular, de uma esquerda institucional com o projeto de ocupar o poder, que foi o projeto do PT. E, num certo sentido, esse ofuscamento atingiu as próprias pessoas que participam dessa enorme rede de iniciativas cidadãs, porque elas acreditaram durante muito tempo que a verdadeira política não era a que elas faziam, mas que aquilo que elas faziam tinha, no fundo, o objetivo essencial de levar a esquerda ao poder.
Existe, nas diferentes experiências da esquerda, muitas coisas positivas, mas a verdade maior é que está caindo a ficha de que não é a partir do poder de Estado que se transforma a sociedade. A beleza do fórum é que ele pode representar um primeiro momento de ebulição e de emergência dessa idéia, que no fundo não é nova. Um momento desse movimento de associativismo, de tradição política nova assumir identidade, se reconhecer e compreender que a partir dele é que se faz uma outra forma de política.
Qual é a importância do Fórum nesse momento político atual, no que ele pode contribuir?
Em primeiro lugar, o Fórum vai permitir que esses movimentos, ao se encontrar, comecem a formular alternativas. É muito importante que esses movimentos saiam da atuação local, não no sentido de abandonar a atuação local, mas no sentido de perceber que se as iniciativas locais estão juntas podem se enxergar umas nas outras e ter uma visão muito mais ampla do problema. Segundo, elas podem se tornar capazes de reunir saberes, competências, capacidade de mobilização para fazer uma coisa que é muito importante, que é formular alternativas para o conjunto da sociedade brasileira.
É muito importante essa idéia de alternativas porque o Fórum não veio para dizer se o Lula é bom, se o Lula é ruim. Enquanto fizermos isso vamos estar sempre a reboque. A importância do Fórum e a beleza dele é dar a possibilidade de redes de movimentos e pessoas começarem a formular suas alternativas. Por exemplo, qual seria a alternativa brasileira para o gargalo de energia, para a ocupação não predatória da Amazônia, para resolver o problema dos transportes? Esse é o tipo de iniciativa que é profundamente desalienante, porque é a sociedade tomando consciência da vida social e propondo iniciativas, mas é claro que esse passo não será dado no Fórum.
Uma das características das eleições, cada vez mais, no Brasil e em outras partes do mundo, é o esvaziamento programático, é muito freqüente verificar que as eleições muitas vezes se resumem à disputa de nomes. Essa iniciativa pode oxigenar a vida democrática institucional na medida em que ela force os partidos a voltar a debater temas nacionais, provocá-los, aqui está a proposta que um conjunto de organizações fez em relação ao plebiscito, da formulação de formas diretas de democracia.
Qual é a sua avaliação da experiência brasileira dos últimos anos em relação à resistência ao neoliberalismo, houve avanços e o que ainda está faltando?
Houve avanços maiores e avanços menores. Não só no Brasil, mas em outras partes do mundo, a essência da idéia de neoliberalismo, que é a incapacidade da sociedade de estabelecer regras para o seu funcionamento, a suposta decadência das formas de regulação como o estado, a supremacia do mercado como meio de regular as relações, a competição para assegurar a eficiência, essas idéias todas estão em decadência, o período delas passou. A eleição do Lula representou esse entendimento, que a sociedade aposta numa pessoa de origem humilde, cuja trajetória política foi construída em relação ao coletivo, a partir da reivindicação da distribuição das riquezas. Esse sentimento, hoje, é muito forte no Brasil.
A sociedade brasileira também avançou muito em outros aspectos como a relação entre os sexos, entre as etnias. Isso não é ligado diretamente ao neoliberalismo, mas reflete uma evolução muito grande nas formas de relação, na busca de relações menos hierarquizadas, de mais solidariedade.
Eu acho que temos um déficit muito grande porque a sociedade ainda compreende pouco os mecanismos essenciais pelos quais se dá a dominação neoliberal. Vou dar dois exemplos. Primeiro o mecanismo do controle do orçamento pelas finanças, isso é uma caixa preta, a sociedade não entende, os movimentos não entendem. Algumas pessoas entendem mas ainda não se criou uma cultura de compreensão disso. É um déficit tremendo porque é uma maneira invisível de aplicar o programa neoliberal.
O estado brasileiro transfere hoje R$ 10 bilhões todos os anos em renda na forma de Bolsa família, o que é excelente, mas tranfere R$ 150 bilhões de juros para 20 mil pessoas. Enquanto esse déficit perdurar, o neoliberalismo vai continuar se aplicando sem que a sociedade decida ou mesmo enxergue. Outro problema é dissolução do debate político no Congresso Nacional, com mecanismos ligados ao predomínio das finanças, à não-obrigatoriedade de aplicação do orçamento, à existência abusiva de MPs.
Como será a agenda da ATTAC no Fórum?
A ATTAC participa junto com a Abong e a Fundação Friedrich Ebert de um debate sobre a criação de um sistema internacional de impostos. É um tema muito pouco conhecido, mas muito importante, porque a globalização criou uma esfera internacional de poder, muitas vezes superior à esfera nacional, mas não criou uma democracia e nem elementos de cidadania global. E é preciso criar isso, e um dos elementos essenciais é um sistema de finanças públicas globais, assim como nós temos, nos países, alguns tipos de atividades redistributivas, como o Bolsa-família no Brasil, ou quando a sociedade por meio do estado resolve assegurar que não haja apagões, e cria um instrumento, tributos por meios dos quais reúnem recursos pra atingir esses objetivos.
Na esfera internacional não tem nada disso. Tudo tem funcionado numa base, que é das piores, que é a da ajuda internacional, que condiciona quem recebe a uma série de exigências e nunca cria cidadania porque nunca cria empoderamento. Há um debate internacional muito interessante sobre isso, virão pessoas de fora e pessoas do Brasil que estarão debatendo sobre isso.
A segunda agenda é organizar, junto com algumas entidades que tratam do tema das finanças públicas no Brasil, em especial dos aspectos relacionados à dívida, a tributos, ao perfil tributário do estado brasileiro, a controle dos movimentos de capital e a orçamento, a construção de propostas e mobilização da sociedade. Nós achamos que devem ter umas 15 a 20 organizações que tratam disso com capacidade de construção e mobilização que, no entanto, atuam com pouca coordenação, com pouca sinergia entre si.
Então, muitas vezes o pessoal que trabalha com orçamento cidadão, não conhece a aplicação dos recursos, não conhece o trabalho da Unafisco, que é o sindicato dos auditores públicos, de debater a origem das receitas públicas, de debater maneiras de fazer com que o orçamento incida menos sobre aqueles que não podem pagar e inclusive de ampliar o orçamento criando tributos que incidam sobre aqueles que podem pagar.
Nós queremos começar a compartilhar informações entre gente que trabalha em áreas tão afins. Há também, não sabemos se vamos ser capazes, mas acreditamos que sim, que a partir desse trabalho se possa imaginar a formulação de bases de um programa econômico alternativo.