Antes de existir Internet já existia a pirataria. Fotocopiadoras, fitas cassete de áudio e vídeo foram tecnologias que amedrontaram gravadoras, estúdios e editoras – os detentores dos direitos autorais -, cuja atitude imediata foi acionar seus advogados em defesa de suas garantias legais. No entanto, os computadores e a Internet, através dos quais foi possível criar cópias idênticas às obras originais e transmiti-las com rapidez e eficiência, é que têm se tornado a grande dor de cabeça das empresas e de alguns artistas. A gravação daquele disco emprestado de um amigo rendia uma cópia ruim em fita cassete e essa fita só podia dar origem a cópias ainda piores. Hoje, um CD pode dar origem a arquivos de qualidade em formato .mp3, que podem ser transmitidos facilmente pela Internet se a conexão for boa.
Mas o golpe fatal nos direitos autorais aconteceu há 3 anos. Shawn Fanning, um universitário norte-americano criou, em 1999, o Napster, um software que possibilitava a troca direta de arquivos de música entre os usuários. O princípio foi a tecnologia peer-to-peer (P2P), que possibilita a conexão direta entre dois computadores ligados à Internet. Os usuários do Napster conectavam-se com o sistema de busca de um computador central, capaz de listar diversos computadores de outros usuários comuns que possuíam a música desejada e conectá-los com o computador de outro usuário. O software tornou-se popular rapidamente e as gravadoras movimentaram seus exércitos de advogados acusando o Napster de estimular a pirataria. Em 2001, o Napster saía do ar.
A tecnologia a partir da qual o software funcionava, entretanto, continua disponível e milhões de usuários de todo o mundo habituaram-se a trocar livremente seus arquivos. Novos softwares como o Kazaa e o contemporâneo do Napster, Gnutella, continuam operando e realizando trocas de arquivos de músicas, fotos e até mesmo filmes. Melhorias nos softwares e o desenvolvimento de tecnologias de compactação de arquivos permitem que um filme, gravado em um DVD, seja compactado para que caiba em um simples CD-ROM, capaz de armazenar, pelo menos, sete vezes menos. Evitar a pirataria na Internet tornou-se cada vez mais difícil.
Por medo da pirataria a indústria do entretenimento, através da Walt Disney Productions e da Universal Studios, já processou até mesmo a Sony por ter desenvolvido o vídeo-cassete – que, segundo ela, também facilitava a pirataria. A produção de um equipamento pode ser contida legalmente mas a de um software é muito mais difícil. Uma vez que músicas, filmes e textos são transpostos para um padrão digital torna-se quase impossível impedir o desenvolvimento de um software capaz de lê-los e copiá-los. Para se fazer um vídeo cassete é preciso uma indústria mas para se desenvolver software é preciso apenas um computador e um programador esperto.
Copyleft
Por perceber como é difícil conter a pirataria ou por não concordar com os esquemas da indústria do entretenimento – que fica com a maior parte do lucro da venda de obras culturais – músicos, escritores, fotógrafos e jornalistas têm feito crescer uma iniciativa que surgiu com o movimento de software livre: o copyleft. Ao invés de tentar impedir a pirataria, os autores buscam é compartilhar livremente sua produção. Assim, as obras sob copyleft podem ser copiadas, distribuídas e alteradas. As únicas restrições são manter o crédito para a fonte original e a licença copyleft.
Sob essa ideologia o movimento do software livre tem conseguido resultados importantes desde a sua fundação, em 1984. O sistema operacional GNU, que é a base do Linux, por exemplo, foi desenvolvido dessa maneira, unindo contribuições de diversas partes do mundo para um software que continua sempre sendo aperfeiçoado e retrabalhado. Sua licença tem o nome de General Public License (GPL) e permite a livre cópia, distribuição e alteração mas obriga os produtos que gera a adotarem a mesma licença. Assim, o Linux também tem que adotar a GPL.
Transpondo essa idéia para a produção cultural, um grupo de designers e arquitetos de informação ligados ao Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (C.E.S.A.R) criou o Hipopota.mus. Através do site, é possível conseguir vários tipos de mídias audiovisuais livres, entre imagens, loops de instrumentos e vozes. “A idéia de uma produção coletiva e aberta de software já é um fato, uma realidade bem sucedida. Com o projeto Hipopota.mus estamos trazendo a mesma lógica para o mundo da produção artística, fomentando um modo de produção cultural livre”, conta h.d.mabuse, um dos fundadores do Hipopota.mus.
Para o site foi desenvolvida uma licença livre chamada LPH. “O único parâmetro que tínhamos no início era o GPL. Sabemos que a adesão a esta Licença é grande, por isso a nossa projeção é que as pessoas respeitem também a LPH”, diz Diego Credido, um dos envolvidos com o projeto.
Outro projeto importante baseado no conceito de copyleft é a Ciranda Internacional da Informação Independente. Projetada como estratégia de comunicação alternativa para o Fórum Social Mundial, a Ciranda reúne, desde a primeira edição do Fórum, contribuições de jornalistas de todo o mundo que permitem a republicação e o aproveitamento de seus trabalhos. Avaliando o resultado das duas edições da Ciranda, Antonio Martins, um dos editores do projeto, afirma que “tanto este ano como em 2001, muitos textos
foram compartilhados”. Martins ressalta também a repercussão e o sinal político da Ciranda. “A Ciranda tornou-se conhecida menos pela facilidade prática que ofereceu aos jornais independentes, e muito mais pela ousadia de materializar, durante um fórum que debate alternativas, uma saída contra a mercantilização do saber”, afirma.
O copyleft é uma estratégia de esquerda?
Segundo alguns autores, o questionamento das restrições à cópia e compartilhamento de arquivos pode levar a transformações profundas no sistema de produção capitalista. O pesquisador da Falmouth College of Arts, na Inglaterra, Johan Söderberg, defende no artigo Copyleft vs. Copyright: a marxist critique que a ideologia Hacker (veja resenha sobre a ideologia Hacker na ComCiência) pode desafiar a dominação do capital a partir do desenvolvimento tecnológico. “Sugiro nesse artigo que o desenvolvimento do software livre fornece um modelo primário das contradições inerentes ao capitalismo informacional”, afirma ele
Antonio Martins considera que o copyleft não conseguirá grandes avanços estando sob o capitalismo neoliberal. “O xis da questão é: como propor a desmercantilização radical do trabalho jornalístico (e do saber, em geral), num mundo cada vez mais mercantilizado, e onde a sobrevivência das pessoas depende da venda de sua força de trabalho?”. Entretanto, ele ressalta a proposta inovadora de projetos como o da Ciranda. “O copyleft é uma alternativa política e ética – mas também viável na prática – a um dos aspectos piores da globalização capitalista: a transformação do conhecimento em mercadoria. Através da Ciranda procuramos, ainda que
em escala muito pequena, que a colaboração intelectual, o saber compartilhado, são melhores, mais eficientes e mais prazerosos que a chamada ‘propriedade’ intelectual, com sua enorme ameaça de exclusão”.
h.d.mabuse, do hipopota.mus, acha que há o surgimento de uma nova mentalidade de “generosidade intelectual”. Ele cita uma ocasião em que o governo português quis pagar ao escritor Agostinho da Silva direitos autorais de uma série de livros que tinham sido publicados durante seu exílio. “Agostinho da Silva respondeu mandando a conta do seu trabalho de datilografia: ‘Eu não fiz nada demais, apenas peguei as idéias que estavam no ar e pus no papel'”, conta h.d.mabuse.
A questão, no entanto, não é um ponto pacífico para o movimento de software livre. Para Luiz Fernando Capitulino, programador de computadores, “o software livre é uma revolução na maneira de usar, modificar, fazer e pensar o software. Ele não traz uma proposta economica para país algum”. Segundo ele, há pessoas que espalham que “o software livre é coisa de comunista” para denegrir o movimento. “Visto que tal caracterização é incorreta ela deve ser esclarecida para que não se crie uma idéia incorreta do movimento”, conclui.