Na televisão, uma moldura perfeita: o trabalhador com a enxada na mão reluz suor e satisfação em seu musculoso e saudável corpo, o sol brilha sobre sua cabeça e a mata verde preservada completa o cenário. No reverso deste quadro, como se virado para uma parede e não para o observador, o que se esconde tão bem: trabalhadores exauridos, acometidos por doenças e transtornos psicológicos, bolsões de miséria e prostituição, além de pequenas cidades depredadas pela necessidade de lucro.
Ambos os retratos acima descritos, por mais que surpreendam a quem lê, se referem ao mesmo personagem; as tintas e traços é que variam de acordo com os interesses e fatos. Tanto um como outro lado têm como musa inspiradora a Companhia Vale do Rio Doce, a maior siderúrgica do mundo, nascida no Brasil, mas há muito inserida no palco do capitalismo globalizado, sem pátria e devastador por onde passa.
E é no intuito de denunciar o surrealismo gravado na primeira tela, graças ao caríssimo pincel de agências publicitárias, que trabalhadores organizados de vários países se reúnem no Rio de Janeiro. Trata-se do 1º. Encontro Internacional dos Atingidos pela Vale, iniciado na segunda-feira, 12, com fim previsto para quinta-feira, 15.
“As desapropriações forçadas, a terceirização com as perdas dos direitos trabalhistas, os constantes acidentes de trabalho, a contaminação e o rebaixamento do lençol freático e a perda da biodiversidade são exemplos de degradações ocasionadas pela mineração”, enumera a convocatória do encontro, que em escala nacional é animado primordialmente pelo movimento Justiça nos Trilhos, que por sua vez congrega diversas entidades e sindicatos de afetados pela mineradora.
“A gente está aqui para crescer, se articular e se unir. Nós não podemos aprofundar esse modelo de desenvolvimento que está aí. Temos que lutar por outro. O Rio de Janeiro é a sede mundial da Vale. É aqui que se tomam as decisões, e é aqui que temos de intervir. É muito importante a gente sair desse espaço com uma estratégia comum de enfrentamento”, disse Ana Garcia, da Fundação Rosa Luxemburgo, na abertura do evento.
Contando com a presença de delegações de trabalhadores de Canadá, Peru, Alemanha, França, Chile, Argentina e Moçambique, o encontro prosseguirá com mesas de debates e também manifestações de rua, e será encerrado em frente à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro.
Como se vê, os ataques da mineradora presidida por Roger Agnelli não se restringem ao país onde seus controladores, em delituosa parceria com o governo FHC, deram um dos maiores golpes da história brasileira, arrematando a empresa por cerca de 3,5 bilhões de reais, quando o valor de mercado da mesma era de cerca de 40 bilhões.
E como revelou o agrônomo e cientista social Raimundo Gomes, em entrevista ao Correio, além de o tratamento da empresa com seus contestadores ser “debochante, como se tudo e todos fossem insignificantes”, o retorno aos cofres públicos segue incógnito. “É assim que o Estado assume seu papel: permite que a Vale retire nossos recursos a preço de nada, pois a CFEM (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais) varia de 1 a 13% no cobre, e no níquel fica em 2%. E quem faz a contabilidade é a empresa, que por sua vez se referencia no lucro líquido”, denuncia.
De fato, a repartição das riquezas produzidas por seus cerca de 6000 funcionários não é o forte da multinacional. Com lucros de 21 bilhões de reais em 2008 (alta de 6% ante 2007), em plena explosão da crise financeira mundial, demitiu 20% de seu quadro de empregados e flexibilizou direitos e salários dos remanescentes.
Além disso, protagonizou uma luta imperialista às avessas contra os mineiros canadenses da INCO, comprada pela Vale. Com outros parâmetros de cidadania e direitos, estes não aceitam em hipótese alguma os cortes de postos e salários, estando em greve há 10 meses. “Diálogo sim, ditadura não!”, vieram logo avisando.
Antes de chegar à capital carioca, o Encontro realizou duas caravanas específicas, com intenção de conscientizar as populações de locais afetados pela presença da Vale. Ambas ocorreram nos estados em que se concentra a grande maioria de seus negócios, Minas Gerais e Pará, aonde o passivo ambiental e social, além do total descalabro regulatório, chegam a níveis assustadores.
Para Raimundo Gomes, é uma autêntica “máquina de destruição”. “A região em que a Vale atua no sudeste do Pará é dona dos maiores índices de criminalidade, prostituição, roubo, furto, estupro, falta de serviços de saúde, moradia, educação. E tudo acima dos índices do restante do estado. É sob este clima que vivemos aqui”, conta.
Já em Minas, a Vale mostra que a sanha por lucros não possui limites. A pequena Itabira, a 115 km de Belo Horizonte, inacreditavelmente igualou-se a São Paulo no índice de poluição atmosférica, gerando toda sorte de doenças em seus moradores. Alcançou também a liderança nacional em suicídios. Com esse ambiente pouco inspirador, em outros tempos poderíamos ter sido privados dos versos de Carlos Drummond de Andrade…
Sem publicidade, resta aos trabalhadores o esforço conjunto pela continuidade da conscientização. Até porque o passivo ambiental gerado pela empresa, consumidora de 5% da energia brasileira, já chama muito a atenção e faz parte da agenda, ao menos discursiva, de todos os governos.
A mídia, beneficiária de boa parte dos cerca de 160 milhões de reais anuais gastos em propaganda, silencia sobre tanta cólera. O mesmo fazem deputados, senadores e governadores, em número a perder de vista, financiados pela empresa. “Nos locais em que a Vale atua não se publica nada contrário aos seus interesses. Os meios aqui no Pará criminalizam qualquer ação dos movimentos sociais. Quando a empresa é multada por crime ambiental, não cobrem os fatos, mas dão visibilidade para a explicação da empresa”, exemplifica o jornalista paraense Rogério Henrique Almeida, em sua quase solitária contracorrente.
Por fim, é inteiramente oportuno o local escolhido pelos organizadores do encontro. O Rio de Janeiro não apenas abriga a sede administrativa da ex-estatal como também seu próximo empreendimento. Ao lado dos alemães da ThyssenKrupp, instalará na Baía de Sepetiba a Companhia Siderúrgica do Atlântico, que, de acordo com a Secretaria de Meio Ambiente carioca, elevará a poluição da cidade em 76%.
Gabriel Brito é jornalista.