Uma Carta ao Presidente

Há alguns semanas, o senhor vetou o projeto de lei que tinha por objetivo distribuir gratuitamente absorventes a meninas e mulheres em situação de “pobreza menstrual“.

Essa expressão remete à falta de condições materiais de quase 6 milhões de meninas e mulheres que, Brasil afora, não conseguem adquirir absorventes durante o ciclo menstrual e usam de todo tipo de recurso para garantir a sua higiene: um pedaço de pano, de papel, miolo de pão etc e assim conter o fluxo sanguíneo que o corpo delas precisa mensalmente liberar.

Isto é algo que merece atenção e sensibilidade de todas as pessoas porque não há nada mais inconveniente do que o sangue que escorre do corpo, seja por um processo natural, seja por que o corpo foi ferido. Quando o sangue sai em grande quantidade exala um cheiro, às vezes, produz náuseas; outras vezes, vômito. Em algumas situações, desespero. O sangue assusta tanto quanto envergonha e constrange.

Quem não é barata, sabe bem do que eu estou falando.

Tenho minhas dúvidas sobre se se o senhor sabe o que é isso porque apesar de haver, por algumas vezes, postado fotos suas em camas de hospital, o senhor nunca mostrou o seu sangue a ninguém, mesmo nas situações em que isso seria esperado. Muita coisa, enfim, sobre a sua saúde é um segredo de Estado.

Diferentemente da saúde das meninas e mulheres, a sua é uma questão política.

Vale lembrar, né, que o senhor até declarou sigilo sobre a sua caderneta de vacinação, imagina então se seria admissível expor o seu sangue?

Não!

Aliás, o senhor sempre protege os seus filhos, que são sangue do seu sangue. Não os quer expostos!

Sua atitude em relação ao sangue de família é real, quase de realeza apodrecida! Tudo que tem a ver com o seu sangue é mantido sob cuidados e/ ou ocultado.

Então, talvez por isso, suponho, o senhor não saiba o que é o sangue, o sangue de verdade, aquele que escorre por entre as pernas, às vezes num fluxo intenso e, nos momentos mais inusitados em que o corpo de uma menina ou de uma mulher se move.

Outras vezes, nem precisa se mover, o sangue pode escorrer quando o corpo está imóvel, sentado numa cadeira, por exemplo, e a quantidade pode ser tanta que o assento fica carimbado de um vermelho escuro.

Pra ser sincera, senhor Presidente, essa questão de distribuir absorvente feminino nem seria pauta no Legislativo tampouco debate político no país, se não estivéssemos falando do Brasil, que tem o maior nível de desigualdade do planeta e que hoje voltou ao mapa da fome e tem milhões se alimentando de osso e pés de galinha. Ou seja, um povo que já não vê sangue de bicho porque o seu próprio está secando, tal como os reservatórios e os rios.

Por um curto período de tempo o Brasil estava acertando os ponteiros com sua História para superar as desigualdades, mas esse processo, como o senhor bem sabe, foi interrompido, e lhe beneficiou, em 2018. A decadência se inicia quando o país se tornou alvo de uma baixaria parlamentar-midiático- judicial e empresarial, a partir de 2014 e, em 2016, expulsou do poder uma mulher digna, inteligente, elegante e honesta, a qual, tristemente, no curso do processo de impeachment foi também aviltada com adesivos eróticos e vergonhosos em carros dirigidos por homens machos como o senhor.

Justamente uma mulher, viu? Uma mulher que sofreu tortura em suas partes íntimas durante a ditadura militar e cujo torturador mereceu do senhor uma menção honrosa no plenário da Câmara de Deputados.

Tudo isso são fatos bem documentados na História recente do país, estou apenas rememorando. São fatos como os 51 milhões de reais do Ministro da Economia do seu governo, depositados em uma offshore. O mesmo ministro que disse que era um “absurdo” ver uma trabalhadora doméstica viajar pra Disney. O mesmo ministro que declarou em reunião com o senhor que deveria “deixar explodir uma bomba no bolso do servidor público” em sentido figurativo. O mesmo que disse não ver nada de mais na elevação do preço do gás.

O seu veto, Presidente, foi justificado pelo argumento de que não teria sido indicada a origem dos recursos para subsidiar a distribuição gratuita de absorventes. Além disso, ainda contou com uma declaração de apoio da Ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, a qual teria indagado “se a prioridade seria ofertar à população absorvente ou vacina?” como se o senhor tivesse comprado em tempo oportuno e de bom grado todas as vacinas produzidas contra a Covid-19, quando elas foram liberadas pelos fabricantes a fim de frear a pandemia causada pelo coranavírus que vem afetando o mundo todo desde 2020.

Tudo isso aqui é rememorado para não surpreender ninguém que possa imaginar, por acaso, que o senhor seja um entusiasta da ciência e das vacinas, e como se o senhor não tivesse feito o BR passar o vexame de levar uma comitiva de gente infectada pelo coronavírus à Assembleia Geral da ONU, a começar pelo seu Ministro da Saúde que não pôde retornar ao país, ficando em quarentena num hotel em Nova Iorque e pagando diárias astronômicas com dinheiro público.

Quem quiser que se surpreenda com tudo que foi narrado até aqui, mas o que eu quero dizer é que o senhor até se mostrou coerente.

O senhor é o Presidente em cujo governo se faz um corte de 92% no orçamento do Ministério da Ciência; o senhor é homem macho que disse a uma deputada que ela ” não merecia ser estuprada por ser feia”; o senhor também é o pai que disse ter tido quatro filhos homens e teve uma “fraquejada” ao ter uma filha, totalizando uma prole de cinco.

O senhor é coerente porque, no máximo, esquenta as suas nádegas no assento de uma motocicleta, nas suas “motociatas”, ou sobre a sela de um cavalo, jamais na cadeira do Planalto.

O senhor é coerente com o seu universo de macheza. De outro lado, o senhor não tem fluxo menstrual e não corre o risco de ver o sangue descer por entre as pernas, causando- lhe constrangimento.

Com esse veto, Presidente, o senhor mostra coerência porque ao honrar a memória do torturador da Presidenta Dilma, seu semblante foi de regojizo.

Ao saber da morte de milhares de brasileiros, o senhor não se incomodou porque todos “vamos morrer um dia” e o senhor “não é coveiro”.

Está claro que existe uma intimidade entre o senhor e a morte assim como o gosto de sangue na sua boca, figurativamente e o cheiro de sangue nas suas mãos. Mas é um sangue que não corre em suas veias porque o senhor deve ser feito de uma matéria diferente daquela que compõe os seres chamados “gente”.

Fiquei aqui pensando… como seria possível lhe fazer conhecer o sangue de verdade que sai das veias ou do corpo das mulheres toda vez que o senhor pensa numa?

Talvez uma boa maneira seja fazê-lo manusear um absorvente feminino usado. Que tal? O senhor pode fazer isso de várias formas: colocando-o entre as suas pernas, cheirando-o, lambendo-o, guardando no seu paletó, enfim, como quiser, mas não deixe de ter ao alcance de sua mão um único absorvente feminino que seja, de preferência, usado.

Tenho certeza que depois de conhecer um, o senhor entenderia um pouco mais de fluxo menstrual e manteria as mulheres em um lugar seguro nos seus pensamentos, palavras e ações.

Maria Betânia

Imagem capa: Bolsonaro foto Evaristo Sa / AFP , montagem cirandanet

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