Após viver os últimos oito anos em Cuba, o jornalista português Miguel Urbano Rodrigues voltou em agosto último à sua terra natal. Antes, passou pelo Brasil, onde lançou o segundo volume de “O espaço e o tempo em que vivi”, suas memórias editadas pela Campo das Letras, que se dividem em “Procurando um caminho” e “Revolução e contra-revolução na América Latina”. Na passagem por aqui, falou ao Engenheiro e fez um alerta: “a humanidade vive a maior crise da sua história”, representada pelo poder hegemônico dos Estados Unidos. Para enfrentá-la, o comunista, que reconhece a decadência dos partidos revolucionários, propõe a mobilização em contraposição ao “teoricismo”. No Brasil, país em que morou entre 1957 e 1974, identifica já o fracasso do atual Governo como instrumento de transformação da sociedade.
O senhor acaba de lançar, aqui no Brasil, “O espaço e o tempo em que vivi”, seu livro de memórias. Qual a sua avaliação do tempo em que vivemos hoje?
Na minha opinião, a humanidade vive a maior crise da sua história, mais profunda e complexa que aquela que assinalou o fim do Império Romano. Sua causa é um sistema de poder com características inéditas hegemonizado pelos Estados Unidos, que retomou o sonho antiqüíssimo do Estado universal, mas com a ambição de ser perpétuo. Isso representa uma ameaça que põe em perigo a própria continuidade da vida na Terra. Apesar de ser uma nação muito poderosa militarmente e a primeira potência econômica do mundo, tornaram-se parasitas, consomem muito mais do que produzem. Há vários anos, sua balança comercial é deficitária, o resultado negativo de junho, por exemplo, é de cerca de US$ 45 bilhões. Sua dívida externa é maior que todas no mundo somadas. A interna corresponde a 85% do seu Produto Interno Bruto.
São uma ameaça ainda maior pela sua fragilidade?
Os Estados Unidos procuram encontrar uma solução para uma crise estrutural que não tem saída. A que se busca no momento é a das guerras preventivas, definidas pela administração Bush. Por um lado, isso dinamiza o complexo militar industrial e dá a ilusão de crescimento. Por outro, trata-se do saque dos recursos naturais de outros povos. Hoje, procuram assegurar o seu abastecimento de petróleo que, em mais da metade, tem de ser importado. Essa guerra do Iraque, a agressividade contra o Irã, toda a política na região, incluindo Israel como instrumento dessa dominação, tem esse objetivo.
Qual a alternativa diante de um poder que tem fragilidades, mas se mostra imbatível?
Para essa questão, há duas posições que são muito diferentes. Uma delas é a que se vê nos fóruns sociais mundiais. O inimigo é muito poderoso, não temos condições de destruí-lo, então vemos se o reformamos e, enquanto isso, vamos buscando uma alternativa teórica à globalização, vamos pensar a reforma da democracia e possivelmente um socialismo de novo tipo. Isso parece o mais razoável, mas é utópico, porque não se conseguirá nunca formular uma alternativa teórica que seja aceita universalmente. A solução do futuro, o tipo de regime, de organização da sociedade de um país como o Brasil não será o mesmo de um como o Canadá ou a Tailândia. A outra posição é que, como não podemos cair no teoricismo, temos que nos mobilizar contra o inimigo, que é frágil, embora oculte suas fraquezas. Eu penso que o caminho é esse, o da mobilização dos povos contra a ameaça à humanidade, até porque o sistema de poder dos Estados Unidos, pelo seu amoralismo, só encontra precedente no Reich nazista, como mostraram os crimes cometidos no Iraque e no Afeganistão.
Atualmente, há resistência real a esse poder hegemônico na América Latina?
Há um triângulo positivo na América Latina, que coloca desafios insuperáveis ao imperialismo: Colômbia, Cuba e Venezuela. Cuba resiste há 45 anos com grande dignidade. Na Colômbia, há 39 anos, uma guerrilha que eu defino como heróica resiste a uma oligarquia apoiada pelos Estados Unidos. A Venezuela demonstra que, usando as instituições criadas pela burguesia, pode-se transformar a sociedade. Apesar de complexidades como o fato de depender muito do petróleo e a ausência de um partido político, porque o V República no fundo é mais movimento que organização revolucionária, é um processo fascinante, um laboratório de luta de classes como talvez não haja outro no mundo.
O que dizer de Brasil e Argentina?
Na Argentina, o que está acontecendo é extremamente perigoso. Simula-se personalidade no diálogo com Washington, mas no fundo é uma política de reforma do capitalismo, de aceitação da sua lógica e de compromisso gravíssimo com as transnacionais; em tudo que é fundamental, capitula-se. Só que isso é feito com uma habilidade e uma inteligência que, eleito apenas com cerca de 20% dos votos, Kirchner aumenta sua popularidade com uma política que não responde minimamente aos objetivos dos trabalhadores. No Brasil, as coisas são diferentes, aqui já se pode falar de um fracasso, porque houve uma traição muito grande. A idéia de que é preciso colocar a casa em ordem primeiro para depois se iniciar uma política que responda ao programa do PT é ingênua. Não se pode fazer isso quando em postos chaves do Estado colocam-se homens ou mulheres que se identificam com o capitalismo. Não é possível que um banqueiro americano com passaporte brasileiro, como é o Henrique Meirelles, faça uma política positiva. O povo aqui não é sujeito, é objeto e vítima de uma política contrária aos seus interesses.