O joio e o Trigo - Normas coíbem esses produtos na alimentação escolar, mas, enquanto outros países avançam, por aqui faltam políticas públicas federais garantidas por lei.

Ultraprocessados seguem sem regulação, uma década após lançamento do Guia Alimentar.

Lorena Tabosa – O joio e o Trigo – Normas coíbem esses produtos na alimentação escolar, mas, enquanto outros países avançam, por aqui faltam políticas públicas federais garantidas por lei

Uma década separa o Brasil de 2014 do país atual. Neste período, quatro presidentes passaram pelo Palácio do Planalto – cada um com políticas mais ou menos favoráveis à segurança alimentar e nutricional. Mas, apesar de as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado naquele ano pelo Ministério da Saúde, terem permanecido atuais, até agora elas não foram amplamente traduzidas em políticas públicas. A começar pela falta de regulação federal dos ultraprocessados.

“O Guia é um indutor de políticas para a segurança alimentar e nutricional, e outras que podem impactar direta ou indiretamente a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada”, defende a pesquisadora Patrícia Jaime, vice-diretora da Faculdade de Saúde Pública da USP e coordenadora científica do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens). Coautora do Guia Alimentar, ela coordenou o setor de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde entre 2011 e 2014.

Um dos principais avanços promovidos na esteira do Guia foi limitar a compra de ultraprocessados com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), banindo bebidas açucaradas e outros produtos do cardápio da rede pública de ensino. A diretriz consta de uma resolução de 2020 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

“A resolução é baseada no Guia Alimentar e ampliou a lista de alimentos restritos para aquisição com recursos federais, especialmente ultraprocessados, e permitiu a aquisição de produtos da agricultura familiar sem licitação. Só de ter o termo ‘ultraprocessado’ num processo legislativo, já é efeito direto do nosso Guia”, afirma Patrícia.

Outras ações recentes foram um decreto assinado pelo presidente Lula em dezembro de 2023, que traz diretrizes para a promoção da alimentação adequada e saudável no ambiente escolar, e o decreto que regulamenta a composição da nova cesta básica, agora sem ultraprocessados. Segundo a pesquisadora, a maioria dos avanços observados se deram quando havia um cenário mais progressista no governo federal.

“Em momentos de recrudescimento dos direitos, foram os servidores públicos ocupando espaços técnicos em alimentação e nutrição que desempenharam um importante papel de seguir com o desafio da implementação do Guia, mesmo com a perda de prioridade política”, destaca.

No entanto, os avanços não foram expressivos em políticas de regulação, como a reforma tributária. Até aqui, o texto que está sob análise do Senado prevê a tributação de bebidas açucaradas, mas deixou os outros ultraprocessados fora do imposto seletivo. Macarrão instantâneo, pão de forma, pizzas, salgadinhos e refeições congeladas, por exemplo, podem entrar na alíquota reduzida da cesta básica, o que deve facilitar sua permanência na dieta de famílias de baixa renda.

“Um grande desafio é o lobby da indústria de ultraprocessados e do agronegócio, nítido durante todo o processo de votação da reforma tributária. São multinacionais, que disputam narrativas e investem em marketing para induzir ao consumo de ultraprocessados”, aponta Patrícia. 

“É necessária a regulação do marketing de alimentos, com a ampliação de políticas de rotulagem, usando a classificação NOVA para alertar consumidores sobre os níveis de processamento e seus impactos à saúde, e a proibição de propagandas voltadas para o público infantil”, completa. 

Com a classificação NOVA, sai a pirâmide alimentar, que determinava quantidades de porções sem considerar o contexto ou os costumes alimentares locais, e entram quatro grupos classificatórios, divididos pelo grau de processamento: alimentos in natura e minimamente processados, ingredientes culinários processados, processados e ultraprocessados. 

Um dos entraves para fortalecer a proposta de tributação de ultraprocessados é a Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM). Trata-se de uma tabela que classifica os alimentos de acordo com a matéria-prima, para fins comerciais. O Brasil utiliza a NCM para determinar os impostos sobre cada produto, inclusive alimentos. 

O problema é que a tabela não segue a lógica do Guia Alimentar, classificando como produtos semelhantes, por exemplo, um pão francês e uma bisnaguinha ultraprocessada, apenas porque ambos são à base de farinha de trigo. “Fica muito difícil propor uma reforma tributária que incorpora ultraprocessados se a regra para fazer as alíquotas não está alinhada. É um problema anterior que a gente tem, na hora de pensar esse alinhamento com o Guia”, afirma Ana Paula Bortoletto, pesquisadora do Nupens.

Em relação à rotulagem frontal, que traz uma lupa indicando se o produto tem alto teor de açúcar, sal e gorduras saturadas, Ana Paula aponta que o Brasil precisa avançar na identificação dos alimentos que têm impacto negativo na saúde. “Com a lupa, ainda não consideramos aditivos alimentares e não temos um perfil de nutrientes que chegue a alcançar a quantidade de ultraprocessados que a gente gostaria”, avalia. 

Ao aprovar a regra, em 2020, a Anvisa adotou parâmetros tímidos para definir o que é excesso e ignorou a classificação NOVA. Uma pesquisa científica – da qual Ana Paula participou – mostra que, se fossem adotados os parâmetros sugeridos pela Organização Panamericana de Saúde (Opas) e o critério de presença de aditivos cosméticos (usados para conferir cor, cheiro e sabor), seria possível identificar com a lupa praticamente todos os ultraprocessados. 

Apesar disso, ela destaca que a lista de exclusões da Anvisa para a rotulagem frontal está alinhada com as recomendações do Guia. “A lista prevê que os alimentos in natura, os minimamente processados e os ingredientes culinários não podem receber a lupa. Até para lidar com possíveis distorções, como ter no pacote de açúcar ‘alto em açúcar’ ou no vidro do azeite ‘alto em gordura’”, explica Ana Paula.

Leia na íntegra:

O Joio e o Trigo, 07/11/2024

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