Tudo dominado? nem tudo…
Com a Usina Termo Elétrica (UTE) de Barcarena a Vale pretende gerar 600 megawatts (MW) de energia por ano. A metade seria utilizada pela empresa e o restante disponibilizado pelo sistema de distribuição interligado da região Norte, com investimento total estimado em US$ 800 milhões e emprego do combustível carvão mineral que seria trazido ainda nem se sabe bem de onde, se da Colômbia ou Moçambique, para diversificar a matriz energética, em razão da necessidade de garantir ‘segurança no fornecimento de energia’.
Em que pesem as recomendações no Parecer do Ministério Público do Estado do Pará (MPE), assinado pelos Promotores Raimundo de Jesus Coelho de Moraes e Nilton Gurjão das Chagas, a licença prévia (LP) foi aprovada pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente (Coema), no último dia 22 de outubro, por 11 votos a favor e 2 contrários, sob protestos apenas dos representantes do MPE e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri).
O MPE votou pelo indeferimento da licença prévia, com Parecer fundamentado em 44 páginas, pois o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) apresentado pela Vale à Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema/Pa) não apresentou fontes alternativas para se contrapor ao carvão mineral (como o carvão vegetal, por exemplo), bem como, não contemplou todas as medidas sociais, ambientais e de segurança que um projeto da complexidade da UTE de Barcarena exige restando não comprovada a sua viabilidade ambiental’.
Haveria ainda a necessidade de revisão da lista de impactos sócio-ambientais, incluindo impactos sobre as contas públicas, as comunidades diretamente atingidas e o patrimônio arqueológico.
Na reunião do Coema, anterior à aprovação da LP, enquanto o MPE requeria vistas do processo, os representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PA) e da Federação da Agricultura do Estado do Pará (Faepa) antecipavam seus votos a favor da concessão da licença, por entenderem que os aspectos socioambientais estivessem ‘dentro dos padrões exigidos na legislação brasileira e até internacional’.
O Secretário de Meio Ambiente do Estado, Walmir Ortega, afirmou estar absolutamente seguro quanto à viabilidade ambiental do empreendimento, pois ‘entre os critérios de padrões adotados nas análises estão referências de níveis de emissões atmosféricas do Banco Mundial e do Conama’.
Uma das preocupações da Sema e dos Conselheiros do Coema seria o destino das cinzas resultantes da operação da usina, que aumentam as chances de poluição do ar. Segundo divulgado na imprensa, a Sema não teria aceitado a instalação de um pátio de cinzas na planta do empreendimento, como previa o projeto original da Vale, e, após longas negociações ficou decidido que o carvão e o gesso seriam aproveitados por uma fábrica de cimento com filial no Estado.
De acordo com a Vale, a tecnologia limpa seria um dos fortes diferenciais do projeto. A UTE utilizaria alta tecnologia, com destaque para dois equipamentos: o precipitador eletrostático e o dessulfurizador, que reduzem as emissões com eficiência de 99,3% e 90%, respectivamente. Mas dizendo de outro modo, o nível de contaminação real seria na faixa de 0,7% a 10,0% do volume total de poluentes, e isso não representaria pouca coisa.
O impacto radiológico resultante da queima do carvão mineral para gerar energia elétrica é velha preocupação na Europa, e é séria a avaliação feita no Reino Unido, pelo National Radiological Protection Board (NRPB), considerando a liberação de cinzas e radônio para a atmosfera, o descarte de cinzas e o uso desse material como subproduto industrial entre outros.
Os resultados indicam que as exposições mais elevadas resultam exatamente do emprego das cinzas na construção civil e a liberação na atmosfera contamina a vegetação local.
Pesquisas demonstram que entre as indústrias em que os problemas de exposição à radiação podem ser mais significativos, destacam-se as do ciclo de lavra e beneficiamento de minerais, como o carvão mineral, que ao se formarem, incorporaram urânio e tório em proporções superiores à média da crosta terrestre.
A extração e o processamento industrial, através de combustão, alteram as condições físico-químicas que esses materiais apresentam na natureza, o que pode levar ao lançamento de parcelas significativas dos isótopos radioativos no meio ambiente, os quais reagem com outros elementos da natureza causando a radiação artificial.
De acordo com o NRPB, o aumento da radioatividade natural em resíduos sólidos da mineração, efluentes líquidos e emissões gasosas, e também em produtos e subprodutos que venham a ser usados por outros setores industriais, a título de tratamento de resíduos sólidos importantes, como as cinzas na construção civil no caso da fabricação de cimento, pode resultar em maior exposição de trabalhadores e da população em geral.
É surpreendente a opção energética da Vale pelo carvão mineral. Mais surpreendente é a aprovação disso pelo Coema, especialmente em uma sociedade cada vez mais consciente do seu próprio impacto negativo sobre o meio ambiente e em um momento em que o próprio poder público e muitas empresas disputam aprovação promovendo-se como ambientalmente corretas, indo do simples uso de embalagens com logos ecológicos à publicidade de investimentos em novas tecnologias ou em ações sociais.
É surpreendente a opção pelo carvão mineral no momento em que o reflorestamento de áreas degradadas é tema central de muitos seminários em várias esferas, inclusive na própria Fiepa, que também tem assento no Coema, mas votou favoravelmente pela usina a carvão mineral; e posteriormente é divulgado, no dito seminário, que uma das soluções mais práticas e eficientes para a produção de energia renovável e sustentável seria as chamadas ‘Florestas Energéticas’, plantadas com espécies de rápido crescimento. Essa prática visaria não só diminuir a pressão sobre as florestas nativas para a produção de energia, devido às nossas condições favoráveis de clima e solo, sem mencionar o seqüestro de carbono, que contribuiria na redução do aquecimento global.
É surpreendente que o reflorestamento seja considerado uma grande oportunidade de negócios, dada importância que a questão ecológica alcança em nível mundial. É surpreendente que o apelo ambiental tenha surgido para se contrapor às práticas culturalmente estabelecidas de degradação, sendo perfeitamente possível, ao mesmo tempo, recuperar áreas degradadas, gerar emprego e renda, aumentar a circulação de impostos e garantir o fornecimento de matéria-prima renovável, melhorando a qualidade de vida das populações e diminuindo as mazelas sociais nas áreas de influência dos projetos.
É surpreendente que muitas organizações continuem gastando bilhões de dólares, todos os anos, para convencer que suas operações têm um impacto mínimo no ambiente. Quem iria comprar ou utilizar, por exemplo, o cimento potencialmente radioativo, a ser produzido por uma empresa diferente da Vale, com os milhões de metros cúbicos de cinzas a serem produzidas na UTE de Barcarena? Haveria um selo de ‘produto ecológico ou ambientalmente correto da Amazônia’? Quem teria a responsabilidade pelos eventuais impactos radioativos e demais danos do uso desse produto na construção civil?
Não é mera coincidência que, em plena crise global, com governos e mercados preocupados com uma possível recessão mundial, cientistas defendam que a busca por crescimento econômico esteja matando o planeta e precise ser revista, e se for para levarmos a sério as tentativas de salvar o planeta, temos que remodelar nossa economia.
O grande problema na equação do crescimento econômico está no fato de que, enquanto a economia busca um crescimento infinito, os recursos naturais da Terra são limitados. A Terra não está conseguindo sustentar a economia existente, muito menos uma que continue crescendo. O fato de o nosso sistema econômico ser baseado na busca do crescimento acima de tudo faz com que o mundo esteja caminhando para um desastre ecológico e também econômico, dadas às limitações desses recursos. Para evitar este desastre precisamos mudar nosso foco do crescimento quantitativo para um desenvolvimento qualitativo e impor limites nas taxas de consumo dos recursos naturais da Terra.
Um levantamento feito pela Comissão Econômica Para a América Latina e Caribe constatou que 72,9% das exportações realizadas na América Latina, com exceção do México, envolvem produtos primários, como petróleo, minério de ferro etc. Com a queda das commodities o efeito entre países como Venezuela, Bolívia e Brasil, por exemplo, levaria estes países a uma crise de grandes proporções.
Em função da profunda adaptação aos especuladores financeiros, foi liquidada uma boa parte da indústria nacional, transformando a economia brasileira em muito mais dependente da exportação de commodities, em particular do minério de ferro extraído pela privatizada Vale do Rio Doce, ao mesmo tempo em que se buscava sustentação ao movimento geral da economia sobre o capital especulativo. Agora, o país enfrenta a perspectiva da fuga de capitais e queda nos preços de commodities, ameaçando com a falência do Estado e a falta de capitais.
Apesar da divulgação, nos jornais da semana passada, que a Vale pairava sobre a crise internacional, com lucros bilionários no último trimestre, e que os investimentos já anunciados no Brasil, particularmente no Pará, seriam mantidos, a empresa começa a anunciar medidas visando adequação ao cenário global de desaceleração, paralisando ou reduzindo alguns de seus sistemas de produção em todo o mundo, inclusive deixando de utilizar energia de geração termoelétrica de custo elevado na Indonésia, já admitindo que se encontre ‘no olho do furacão’.
Pode ser que a UTE de Barcarena espere além do programado para iniciar as operações, e possivelmente, contribuir para o aquecimento global, lançando abruptamente de volta na atmosfera tudo que a natureza levou milhares de anos para absorver e acumular no subsolo da Colômbia e Moçambique, na forma de carvão mineral. Mas não haveria demora naquilo que dependesse exclusivamente de conselheiros do Coema do Pará. Seja como for, o meio ambiente e as populações locais afetadas agradecem à crise financeira internacional, pelo menos, por enquanto, pois assim poderá haver tempo suficiente para reestruturar o projeto em bases renováveis.