Finalmente o cinema nacional realizou um louvável esforço de destrinchar complexas estruturas sociais que são responsáveis pela estagnação dos avanços da sociedade brasileira. Corajosamente, o cineasta José Padilha em seu filme Tropa de Elite 2, chama para a discussão o Estado enquanto responsável e legitimador de distintas formas de repressão (e opressão) social, calcados num discurso legitimado pelo combate a violência e ao tráfico de drogas.
O filme de Padilha nos mostra duas faces da mesma moeda. Uma delas, a ação do Bope, enquanto grupo de operações especiais, que desfruta de um prestígio conquistado por uma suposta integridade, no que se refere ao trabalho de manutenção da ordem pública, através de uma ação duramente repressora. Para caracterizar esta integridade nada mais fácil e plausível, para não dizer brasileiro, que a personificação do papel e de uma ideologia de Estado num determinado agente subordinado, no caso o agora Coronel Nascimento majestosamente interpretado por Wagner Moura.
Porém, na medida em que a ação de traficantes nos morros cariocas são atenuadas pela reação do Bope (ou das Unidades de Polícia Pacificadora), entram em cena outros agentes coercitivos representados por policiais corruptos, políticos vinculados ao alto escalão do governo, que, aproveitando de um clima de relativa estabilidade instaurada, se articulam em milícias para estorquir remanescentes traficantes e a população local por intermédio de monopólios diversos, gás, oferta de TV a cabo clandestina etc.
Padilha nos mostra um lado obscuro das relações sociais nas quais estão entrelaçados o poder midiático concentrado nas mãos de representantes políticos, que articulam um discurso hipócrita, criador de uma influente psicoesfera, que atua em prol da manutenção de um reacionarismo prontamente assimilado pela sociedade, que beira o totalitarismo.
Mas o ponto central a ser tratado é uma discussão a qual possui como pano de fundo o fator da segurança pública. Sob este viés, legitima-se o papel do Estado como agente legal para a utilização da força e da truculência, na medida em que a “ordem” social é ameaçada. Tendo como álibi desta missão uma sociedade que vive cercada pela cultura do medo, os aparelhos de repressão do Estado, corrompidos por sua má gestão e organização, se desviam de seus propósitos, voltando-se para uma ação coercitivas das classes mais baixas que são duplamente reféns. Ora do tráfico, ora da polícia corrupta.
Acompanho o trabalho de Padilha desde seu documentário de 2002, “Ônibus 174”, e desde então, o vejo como um cineasta de coragem para abordar temas espinhosos da sociedade brasileira, que nem sempre são debatidos de forma substancial.
O argumento favela desta vez não é posto comumente como épico, mas sim, como produto de relações sociais corrompidas e interesses individuais que engessam o avanço de questões cruciais em nosso país, como a vulnerabilidade dos pobres frente às desigualdades sociais instauradas.
As elites e a classe média que foram ou vão ao cinema na expectativa de alimentar o fascismo enrustido que se encontra dentro de si, através de uma identificação com um capitão Nascimento e sua caça aos marginalizados, foi e será surpreendida por um convite inesperado à reflexão de várias questões acerca da atuação do Estado e seu poder soberano, fato que nem mesmo o pleito eleitoral enquanto instrumento condutor dos novos rumos do país foi capaz de fazer.
Ao meu ver, Tropa 2 é muito mais elaborado e complexo que seu antecessor. Porém, tenho a leve impressão de que a maioria dos expectadores não darão conta disto, preferindo o fascínio e a facilidade de assimilação da violência e brutalidade presente no filme pela ação policial. Uma pena! Quando se pode perceber que a maior violência é aquela que é engendrada pelo Estado e por seus instrumentos legitimadores de ações repressoras.
Mas para isso é preciso ter lentes de aumento que permitam ver além do que a tela mostra objetivamente. No caso, uma tarefa muito difícil para uma população desinstrumentalizada de educ(ação) política, fator contribuinte para o processo de coerção por estes agentes.
É triste ver a mídia mostrando suas garras novamente. Numa das críticas que li a respeito do filme, um sujeito afirma que o filme não oferece elementos para a compreensão da problemática da segurança pública limitando-se apenas ao problema da corrupção. É mole? Talvez o problema de Padilha tenha sido a mensagem inicial de seu filme colocando como obra uma ficção. Quem sabe tratar o Brasil como um país fictício, não seja uma das formas de retomada das utopias progressistas que se perderam, pois no campo da ficção as ousadias e a criatividade e inovação são bem-vindas. Fato que nos falta no campo das políticas públicas.
Quem sabe não damos conta disso um dia?