Iniciada no dia 3 de janeiro, polêmica desde o início, a tal “operação” na Cracolândia, como chamam a região, foi rejeitada por todos os estudiosos da questão das drogas, e também por todas as pessoas que defendem a igualdade entre os seres humanos. A indignação vem mobilizando movimentos e ativistas sociais, pois visivelmente a ação desencadeada pelos poderes constituídos consiste em vencer pessoas fragilizadas pela “tortura”, sem ter locais suficientes para recebê-las em tratamento.
Considerada pelos principais analistas políticos como peça de propaganda e de antecipação ao programa que vem sendo divulgado pelo governo federal, não é assumida por Governador e Prefeito da maior cidade do Brasil, que responsabilizam o “segundo escalão”, auxiliados pelas notícias parciais da mídia monopolizada.
Pelas mídias livres e, portanto, pelas redes sociais, tem circulado reportagens, análises, comentários de especialistas, unânimes em considerar “impressionantemente desastrada” a tal operação, que procura vencer “pela dor e sofrimento”, ou seja, tortura, prática considerada crime hediondo pela Constituição. Até as organizações que costumam dar comida as pessoas em situação de rua estão proibidas de entrar na região! Enquanto isso, a grande imprensa, esconde a omissão dos governantes, “acredita” e difunde o processo de “fases” na operação, sem datas para acontecer, entrevista passantes aliviados com a distância daquelas pessoas “perigosas”, omitindo informações fundamentais, e outras visões, além da policial.
Na verdade, a mídia da elite procura ganhar a parcela reacionária da sociedade, banalizando a questão, e cunhando termos como “procissão do crack”, “invasão”, mostrando como aquelas ruas agora estão seguras, tratando como criminosas pessoas doentes. O verdadeiro objetivo é desenvolver o Projeto Nova Luz (que já consumiu 14,6 milhões), desalojando todos os pobres, implodindo a memória da cidade e o exercício coletivo desenvolvido nos processos de organização e ocupação de imóveis abandonados.
A mídia não mostra a violência com que agem os policiais, obrigados a não deixar ninguém repousar sequer naquele espaço público, nem conversar em grupo. A governança desta metrópole, sempre voltada aos mais ricos, resolveu exterminar mesmo os mais fragilizados, como se não bastasse a criminalização de lideranças e movimentos. É a volta dos tempos da ditadura!
Indignados, unindo-se
Convocada às pressas, na última segunda feira aconteceu a primeira reunião dos movimentos sociais, “para tomar uma atitude coletiva de repudio aos atos de desrespeito aos Direitos Humanos, Direitos Civis e contra a População Excluída da cidade de São Paulo”, como relata Tarcisio Faria. Frentes e organizações, que atuam no centro da cidade há muito tempo, vem denunciando a higienização levada como política pelo atual prefeito, Gilberto Kassab,e pelo governador, Geraldo Alckmin.
A especulação imobiliária crescente, os incêndios em favelas, a falta de políticas públicas de saúde e educação, o não respeito à população organizada, a violência exercida pela polícia militar e guarda civil metropolitana, a privatização dos espaços públicos (até na USP isso acontece agora) com violência, tem sido a tônica da presença do Estado entre os segmentos mais pobres e vulneráveis da população.
Por isso, as organizações reunidas decidiram manifestar-se conjunta e publicamente pelo fim imediato dessa operação policial, e pela imputação do crime de tortura aos responsáveis por ela – documento será fechado hoje, quando haverá nova reunião –, realizar um novo “Churrasco da Gente Diferenciada” no próximo sábado no local tomado pela polícia, e preparar grande ato para o dia 25 de janeiro, aniversário da cidade.
Câmara municipal realiza ato
Em caráter emergencial, também a Câmara Municipal e a Assembléia Legislativa de São Paulo, por iniciativa de suas Comissões de Defesa dos Direitos Humanos, convocaram reunião, que aconteceu nesta quarta-feira, 11 de janeiro. A mobilização foi inesperada, perto de duzentos ativistas, bastante representativa da diversidade e dos principais movimentos sociais da cidade.
“Como é possível uma ação sem porta-voz??!”, indignou-se o deputado estadual Adriano Diogo, depois de informar dados recentes sobre o ridículo número de vagas disponíveis na saúde municipal para o atendimento de centenas de necessitados. “Nada justifica essa ação tresloucada, fora de padrão; a não ser como ação teatral, televisiva, para repercutir na mídia”, opina Diogo. “Todas as forças da sociedade devem se juntar para parar a covardia que é esse cerco a pessoas doentes. Estamos diante da total ausência de Estado, ausência do poder público!”
Tortura é crime hediondo
Pelos vereadores, conduziram a sessão o presidente da Comissão, Jamil Murad, e o vice-presidente, Ítalo Cardoso. “Operação fracassada não tem pai”, disse Murad. Ele lembrou várias atividades realizadas na Câmara, durante o ano passado, voltadas a discutir o grave problema dos dependentes de crack. O presidente da comissão de direitos humanos contou ter participado, junto com outros ali presentes, de exercícios para operações integradas da justiça com saúde, assistência social, em busca da solução. “Foi idéia de algum trapalhão, pensou-se em solução mágica”, analisou o vereador, que é médico. “São múltiplos aspectos, que vinham sendo trabalhados. Há necessidade de visão avançada para o problema, para o qual não há resultado imediato e ninguém resolve sozinho”.
“Incomodado” com o rumo que tem sido dado à questão, Ítalo Cardoso não acredita nas versões oficiais divulgadas. “Se tem alguém que sabe exercer hierarquia é o governador Alckmin, a PM vive de hierarquia, não dá para acreditarmos nisso!” Para o parlamentar dos direitos humanos, a instituição se colocou no “limbo” com esta ação, pois decidiram resolver com a polícia, depois de “terem vindo há pouco nesta Câmara debater o problema”.
Trabalho desenvolvido no local entre os doentes pela Igreja Batista, denominado “Cristolândia”, foi saudado pelas pessoas da mesa como exemplar. Padre Julio Lancellotti, conhecido pela defesa dos moradores de rua, tem estado lá todos os dias, desde o dia 3, e conta ter sido enquadrado pela polícia já duas vezes. O religioso apresentou Wagner e seu violão, tirado há 26 dias da “Cracolândia” e recuperado. “As pessoas estão sendo sitiadas, feridas com balas de borracha, cacetadas”, denunciou o padre, “é um política de extermínio, o Estado não pode assumir a tortura como política”.
Anderson, do movimento dos moradores de rua, fez a necessária ligação entre os despejos, o não desenvolvimento das políticas de saúde, principalmente as antimanicomiais, com o tratamento violento dado às pessoas em situação de rua, “ações de Estado que ferem a constituição brasileira”. Desembargador e Coordenador da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, Antonio Carlos Malheiros classificou a operação como “o maior equívoco”.Aparentando caçar traficantes, “foi uma caçada a viciados e furando um plano que há cinco meses estamos desenvolvendo”, diz o desembargador, que defende a presença dos juízes no meio do povo.
Carlos Weis falou pela Defensoria Pública, dr. Vidal pela Associação dos Juízes pela democracia, Nazareth Cupertino, pelo Fórum de Assistência Social, Dom Nilton, bispo da Brazilandia, dr. Ariel de Castro, pela OAB, Aristeu Bertelli, pelo Condepe – Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Falaram ainda o presidente da casa, vereador Police Neto e o deputado Major Olímpio.
Pela liberdade de expressão
Muitas informações foram dadas. Ficamos sabendo que a operação é chamada de “sufoco” pelas autoridades, que os policiais, inclusive a GCM, têm seu trabalho vigiado por câmeras e são punidos se não apresentam os resultados exigidos. A “ordem de serviço”, dentro da corporação, vale mais que a Constituição, dizem eles, também presentes ao ato. “Ela manda utilizar os meios necessários para não deixar pessoas paradas nos espaços públicos, mas não diz para onde encaminhar”, denunciam. Gabriel Medina falou pelo Conselho Nacional de Juventude, lembrando o fracasso da política da ONU de guerra às drogas, e do plano do governo federal, que destina a maior parte dos 5 milhões para a campanha contra o crack ao Ministério da Justiça.
Protestos não faltaram durante as longas falas, pois os militantes presentes também queriam se pronunciar. Como sempre, quando chega a hora da “sociedade civil”, só temos 15 minutos, como disse Raul, do Coletivo DAR (Desentorpecendo a Razão). O ativista defendeu, e foi aplaudido, que esta ação faz parte de uma série de perseguições a “determinados grupos sociais” e serve como “cortina de fumaça para os empreendedores imobiliários da Nova Luz”.
Denúncias e histórias da vida real se sucederam, exemplos de longas resistências, e de muitas tentativas de conquistar políticas públicas decentes, que só retrocedem. Algumas mulheres, daquelas que sempre são chamadas de “loucas”, devido o seu radicalismo, colocaram o dedo em feridas profundas, e cobraram mais ação dos parlamentares. Ao fim e ao cabo, são elas que sustentam em larga maioria as bases dos movimentos, são elas que sabem cotidianamente como a realidade acontece. Ainda são as mulheres, quase sempre, as responsáveis pela saúde, educação e cuidado das crianças, dos velhos e, claro, dos doentes. É bom prestar atenção nas mulheres que tentam exercer a cidadania e buscar seus direitos nesta cidade, ainda que se mostrem um tanto exacerbadas, quando utilizam o pouco espaço que lhes é reservado na política.
Plenário bastante esvaziado depois de mais de quatro horas de debates, ficou constituído na Câmara um Fórum Permanente para acompanhar a questão. Suas reuniões serão sempre as quartas-feiras, à tarde. Foi solicitado que os parlamentares das duas Casas legislativas enviem ofícios ao Prefeito e ao Governador, exigindo o fim da Operação policial, e encaminhem denúncia aos organismos e fóruns internacionais de Direitos Humanos. E todos defenderam a mobilização popular, claro. Por isso, hoje haverá nova reunião dos movimentos sociais de São Paulo, às 19h30, na Igreja de Santa Cecília – Largo Santa Cecília, 202.