“O que se segue não é imparcial. Escrevo de uma posição particular no espaço e no tempo que compartilho com outras pessoas. Nem é desinteressado. Não finjo avaliar com justiça tudo. Meu projeto é pessoal, a saber, cogitar até resolver um problema concreto imediato. A questão não é fazer um catálogo de erros, mas aprender a possuir o passado, lembrar como pensávamos de determinado modo pela primeira vez, e continuamos pensando, e a dificuldade que tínhamos em agir pensando daquele modo. Essa é, parece-me, a unica maneira de aprender a ser o passado e ao mesmo tempo não o ser, pois cada novo esforço em compreender o que foi pensado e feito cria um novo passado e um novo futuro.”
(Andréa Nye)
As sociedades humanas são complexas e os seus membros se atraem ou se repelem em função de sua pertinência. A pessoa humana só, não existe, mesmo quando solitária. Para se construir e entender-se, a pessoa humana precisa pertencer. Essa pertinência vai desde a linguagem, passa pelos grupos e classes sociais e invade as culturas, os saberes, e até mesmo as idiossincrasias. As sociedades não são essencialmente harmônicas. Elas estão sempre se transformando a partir dos conflitos e das contradições que a fazem mover e se transformar. Assim, as sociedades funcionam, muito mais, pela lógica das contradições do que pela lógica da identidade.
À luz desse primeiro entendimento é que os direitos devem ser vistos. Não mais direitos que apenas se cristalizam em leis ou códigos, mas que se constituem a partir de conflitos, que traduzem as transformações e avanços históricos da humanidade. Não podemos mais entendê-lo como fruto de uma sociedade abstrata de sujeitos individuais, mas como a expressão coativa de tensões e contradições engendradas pelos embates de interesses e projetos de grupos sociais. O direito, para ser entendido em sua concretude, necessita de ser visto sob o ângulo do contexto que lhe deu origem, dos processos que o constituíram, das formas como foi normatizado e dos efeitos que gera nas sociedades.
Em acordo com os ensinamentos jurídicos do Prof. Warat(1): ” A lei do gênero faz referência às tipificações(e/ou esteriotipações) que normatizam formas diferentes de subjetividade conforme o sexo que se possua. É uma lei que organiza de um modo maniqueísta as condições existenciais de ambos os sexos, assim como regula os comportamentos socialmente requeridos para ser hetero e auto reconhecido como homem ou mulher. Uma lei que naturalizando as diferenças nega a produção da subjetividade.
A lei do gênero, pouco tematizada com homens, determina – de um modo silencioso – atributos de masculinidade que asseguram para os machos de nossa espécie, lugares de domínio(sobre si mesmo, sobre a natureza, sobre as mulheres e sobre as crianças), valores(liberdade, sabedoria, justiça, coragem e ambição) e atributos(sangue-frio, racionalidade, serenidade, fortaleza, segurança – em si mesmo e frente ao mundo) e poderes (políticos e sobre os outros) e o ideal de masculinidade(políticos e sobre os outros), a auto-satisfação irá aumentando à medida em que cada indivíduo se aproxime destes requisitos ideais. Altos preços sociais e psicológicos serão pagos pela inadequação.
Os homens não se perguntam o que é ser homem. Eles se perguntam (dando por descontada a resposta, pela lei da masculinidade) se são suficientemente homens.
A identidade feminina não depende de nenhum excesso (muitos deles, inclusive, são censurados). Não existe a preocupação por ser toda mulher. Elas se perguntam sobre o que é ser mulher. No lugar do excesso há um enigma. As mulheres não assumem nenhum ideal valorizado para elas mesmas. Não pretendem ajustar-se à nenhuma norma normativa. Principalmente porque as normas de feminilidade são estabelecidas pelos homens que se reservaram o direito de julgá-las e reconhecê-las em sua condição feminina. Não há lei do gênero para a mulher, existem devires. No devir-mulher não existe nenhuma busca de essências, nenhum ajuste à uma normativa ideal. Existe a fragmentação, o rizoma.”
“A partir da década de 80, ordenamentos jurídicos do mundo todo, inclusive do nosso Brasil, sofreram forte influências com a existência dos chamados movimentos críticos, dentre os quais merece especial destaque o FEMINISMO.
O feminismo promoveu a maior revolução que a humanidade já viveu e está a viver, a revolução sexual.
Com a revolução sexual, o feminismo mudou radicalmente a vida da humanidade, questionando comportamentos, padrões, convenções e convivências, ao ponto de ter elaborado a Feminsit Legal Theory – Teoria Feminista do Direito.
No seio da Teoria Feminista do Direito, as várias correntes feministas que se apresentam são geralmente agrupadas como:
a) FEMINISMO LIBERAL, que defende a superação das desigualdades experimentadas pelas mulheres mediante igualdade de tratamento, relutando admitir medidas diferenciadas por nelas vislumbrar a presença de uma ideologia de superioridade masculina que se traduz, por exemplo, em atitudes paternalistas, reforçadoras dos papéis tradicionais que inferiorizam mulheres diante de homens. Trata-se de uma postura tipicamente antidiferenciadora entre os gêneros, tanto que algumas feministas liberais são chamadas de “feministas simétricas”, numa referência ao modo de aplicação da igualdade entre homens e mulheres. Daí a crítica a suas posturas, comumente tachadas de “assimilacionistas”, por implicar a aceitação do modelo masculino como norma universal em face da qual a igualdade de tratamento será verificada e à qual as mulheres devem se conformar.
b) FEMINISMO CULTURALISTA, também conhecido como relacional, tem como ponto de partida a postulação da existência de diferenças fundamentais entre homens e mulheres, os quais apresentam diferentes processos de desenvolvimento moral. Enquanto os homens, ao depararem-se com conflitos morais, frequentemente organizam-se por meio de idéias de justiça e formulam raciocínios lógicos baseados em direitos individuais abstratos, as mulheres são mais inclinadas a uma ética de cuidado, preocupada na preservação das relações e preferindo soluções contextuais e particularizadas. Segundo as feministas relacionais, a voz diferente resultante deste processo diferenciado de desenvolvimento moral possibilitaria às mulheres maior capacidade de solução dos problemas, dada a ênfase em valores como cuidado com o outro, abertura, simpatia, paciência e amor. A denominação culturalista deve-se ao fato de visualizar a libertação feminina através da afirmação de uma contra-cultura centrada na realidade das mulheres. A afirmação dessa contra-cultura faria a realidade feminina inassimilável à norma geral de igualdade de tratamento, daí enfantizando que o tratamento como igual destas duas realidades diversas só é possível através de medidas diferenciadas. Neste sentido, as feministas culturalistas divergem da argumentação geralmente aceita pelas feministas liberais.
c) FEMINISMO RADICAL, sustenta que a desigualdade sexual é resultado da sistemática subordinação social das mulheres, não simplesmente uma aplicação irracional e preconceituosa do princípio da igualdade. Denuncia a masculinidade como pano de fundo onde são forjadas as idéias de “neutralidade por motivo de gênero” ou “proteção jurídica especial a mulheres” – temas centrais, respectivamente, para feministas liberais e as feministas culturalistas. Em lugar das categorias igualdadeXdiferença, tensão sempre subjacente nos argumentos liberais ou culturalistas, as feministas radicais sugerem a abordagem da dominação, pois não aceitam de modo acritico a realidade da supremacia masculina entre os sexos que aceita o satus quo como standart.
d) FEMINISMO PÓS-MODERNO, entendido como crítica radical às formulações essencialistas e universalistas presentes nas demais correntes feministas. O feminismo pós-moderno enfatiza a inexistência de uma experiência feminina monolítica, salientando a diversidade racial, econômica, religiosa, étnica e cultural de cada mulher. A principal preocupação é a construção de respostas à discriminação sexual a partir da desvantagem estrutural experimentada pelas mulheres nas mais diversas posições, sugere uma abordagem diversa do ideal de “igualdade simétrica” das feministas liberais, da “desigualdade-essencial” das feministas culturalistas ou da “subordinação universal” das feministas radicais.”(2)
Cabe esclarecer, ate o escurecer, que não existem “facções feministas” e, mais do que oferecer pólvora prá chimango, importa colaborar para a consolidação de um outro olhar diante da discriminação e da violência que caracterizam as relações de gênero.
O feminismo não se inscreve no mundo dos números naturais. Ele é um acontecimento histórico inscrito nas configurações complexas e se move em escalas, sentidos, graus, dimensões, estruturas, conexões e códigos dispares e múltiplos que se conectam de forma quase aleatória.
Existem “n” feminismos, no tempo e no espaço e, dentre eles os que, a meu ver, são os mais consistentes, não são os feminismos partidários, isto é, ligados a fluxos de linhas de forças culturais de cada época; os mais consistentes são os mais mutantes e, dentre esses, destaco o feminismo vagabundo e o feminismo clandestino.
O feminismo vagabundo é o feminismo guerrilheiro e atua no sentido de liberar a produção desejante, ainda que possa ser frequentemente apedrejado, ele é heróico.
O feminismo clandestino, o que eu mais gosto, libera o afeto-erótico, vive abrindo roturas em direção ao paraíso e é exemplificado pela atitude terna de um amante que acorda de madrugada para fazer xixi e quando volta para a cama acaricia o dorso de sua pessoa amada e, então, trocam sussurros insinuantes e risonhos.
Esse agrupamento de reflexões e ensinamentos surgem por conta da troca de farpas e insultos que se deram dias atrás em blogs e twitter, o que me faz pensar que são sinais de que há ainda muito por dizer, fazer, pois muito pouco do que as mulheres pretenderam foi alcançado, no que diz respeito às mentalidades e representações
O feminismo ainda faz sentido, os espaços de liberdade não estão assegurados e nem ao menos sabemos como analisar esse fenômeno cíclico a que chamamos feminino, que vai e vem, que nos deu o voto e o direito à educação; a algumas deu o direito ao seu corpo, a outras a um pouco de dignidade ou à consciência de ser. E a todas talvez a unica satisfação de reconhecer-nos numa experiência ao mesmo tempo diferente e comum de viver no feminino.
A sociedade patriarcal agoniza mas não morre.
* título copyleft da letra música Teto Solar de Tonho Crocco
1. Luis Alberto Warat http://luisalbertowarat.blogspot.com/
2. algumas anotações de Roger Raupp Rios
elenara vitoria cariboni iabel é uma cidadã comum, feminista, produtora cultural, comunicóloga social, fundadora da Themis – assessoria juridica e estudos de genero, colaboradora do des).(centro – nó emergente de ações colaborativas , fundadora da G2G ; mãe do Cauã(21), da Inaê(15) e do Ariel(12) e conhecida pela quantidade de pessoas amigas que ama. Colabora no desenvolvimento da rede MetaReciclagem encontros deSubmidialogias e com aCiranda Internacional da Informação Independente ; é membro afetiva do conselho fiscal da Compas – Associação Internacional de Informação Compartilhada; presta consultoria em cultura digital para CEA – Centro de Educação Ambiental/Vila Pinto apoia e promove programas de cultura digital/pontos de cultura do Minc-governo federal. Não gosta do sistema operacional windows, de violência e de machismo.
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