Crueldade em nome da vida, ainda que, de fato, vida não haja. Essa foi a bandeira deflagrada pelos bispos católicos do Brasil em reação à decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que autoriza a interrupção da gravidez quando o feto tem anencefalia, ou seja, falta-lhe parte ou a totalidade do cérebro, o que impossibilita a sobrevivência fora do útero.
Anunciada em 1º de julho, a liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio de Mello à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde significa alívio a um sofrimento extremo imposto às gestantes que tinham de buscar junto à Justiça permissão para a antecipação do parto. Muitas vezes, a resposta era demasiado tardia, como o caso submetido ao STF cinco dias após uma mulher dar à luz um bebê que sobreviveu sete minutos. Com a mudança, basta a comprovação clínica para que o procedimento seja feito.
Recebida com aplausos por médicos e juristas, a medida ainda é provisória e precisa ser confirmada em votação do mérito da causa pelo plenário do STF. E nesse front já se entrincheirou a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) para alterar a decisão. Lançando mão do mesmo velho e surrado discurso em defesa da vida, divulgou em nota oficial sua esperança de interferir no julgamento do Supremo: “A CNBB confia que o senso de Direito e de Justiça dos membros do Supremo Tribunal Federal fará reverter a decisão ora tomada. De fato, a vida humana, que se forma no seio da mãe, já é um novo sujeito de direitos e, por isso, tal vida deve ser respeitada sempre, não importando o estágio ou a condição em que ela se encontre.” O próximo alvo é o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, a quem deve pressionar para que se posicione contra o STF.
Sem piedade
Aliada dos movimentos sociais em diversas batalhas populares, quando o assunto são direitos reprodutivos, a CNBB não economiza conservadorismo e está habituada a vencer as disputas nesse campo. Porém, tem agora um embate mais árduo pela frente. Religiosa e patriarcal, a sociedade brasileira ainda não conseguiu assimilar a idéia de que, em última instância, cabe apenas à mulher decidir se leva ou não adiante uma gravidez, independentemente dos motivos que tenha. No entanto, a idéia de obrigar alguém a carregar no ventre um feto sem a mínima chance de sobreviver após o parto é por demais desapiedada para que os bispos contem com a opinião pública. É provável que o senso comum esteja mais disposto a se alinhar à opinião “solitária”, como classificaram, do ministro Marco Aurélio, para quem “(…) Manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina.”
Na ausência de outra justificativa plausível, só se pode imaginar que tamanho sadismo resida no empenho de não se abrir qualquer precedente que libere o aborto — lembrando que sequer as exceções previstas no Código Penal, de risco de vida da mãe e gravidez provocada por estupro, são aceitas. Trata-se então de mera e terrena disputa política, num ponto que, sabe-se lá por que, os ditos homens de fé tomam como fundamental, mesmo sabendo que não é.
A proibição do aborto nunca fez parte do chamado magistério da Igreja, não sendo portando um dos assuntos nos quais é considerada a infalibilidade do papa em seu ensinamento. Trata-se sim de matéria de legislação eclesiástica sobre a penitência. O aborto só passou a ser considerado pecado grave e motivo de excomunhão a partir de 1869, por uma canetada do Papa Pio IX. Antes disso, não se pensava que a prática implicasse tirar a vida humana, estando ligada a um pecado sexual — supunha-se a tentativa de ocultar o adultério ou o ato sexual com outros fins que não a procriação.
De qualquer forma, será duro explicar mesmo aos fiéis mais obedientes tal falta de solidariedade e espírito cristão, que exige o desespero de mulheres, cuja culpa é ter sido vítima de um capricho da natureza. Numa passagem magnífica de “O evangelho segundo Jesus Cristo”, José Saramago narra um diálogo no qual o diabo tenta dissuadir Deus de seus planos grandiosos para a instituição da Igreja, recheados de guerras e mortes. Sem sucesso, o anjo caído, resignado, conclui: “É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue.” No caso em questão, talvez seja preciso ser um homem oficialmente a serviço de Deus para gostar tanto de sofrimento.