O alerta vermelho foi dado por especialistas e movimentos sociais: embora vivamos no belo planeta azul, se providências quanto a consumo e poluição não forem tomadas urgentemente, a escassez de água no mundo alcançará níveis intoleráveis. Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), atualmente 31 países no mundo já enfrentam o problema. Mais de 1 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável e cerca de 3 bilhões carecem de serviços de saneamento. Até o ano 2025, a população mundial terá chegado aos 8,7 bilhões, dos quais 2/3 sofrerão com a falta do bem vital.
Assustadora para muitos, a perspectiva representa uma tremenda oportunidade a grandes corporações multinacionais de olho num negócio que já chega a US$ 400 bilhões por ano. De acordo com os canadenses Maude Barlow e Tony Clark, autores do livro “Ouro Azul”, as duas gigantes do setor, as francesas Suez (antiga Suez-Lyonnayse des Eaux), que opera em 130 países, atingindo aproximadamente 110 milhões de pessoas, e Vivendi Universal, detém 70% do mercado mundial. Menos poderosas, mas igualmente vorazes, outras companhias disputam esse filão ao redor do globo. Entre as principais estão Bouygues-SAUR, RWE-Thames Water, Bechtel-United Utilities, Severn Trent, Anglian Water, Kelda Group e American Works Company.
Ladainha privatizante
A participação dessas empresas no mercado conta com uma mãozinha do tradicionais anjos da guarda do capital, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. Recusam financiamentos a investimentos públicos, mas apóiam a privatização dos serviços municipais de abastecimento de água – considerada a solução para a falta do recurso natural e, principalmente, para o endividamento dos Estados, segundo a surrada cartilha do Consenso de Washington. Nada mais equivocado, na opinião da ativista canadense Janet Eaton, que veio ao Brasil para o Fórum Social das Águas, realizado na cidade de Cotia, entre os dias 17 e 23 de março, “A água é um direito humano e um bem comum e sua gestão é incompatível com o modelo das corporações privadas. Certas funções devem ser exclusivas dos governos, é assim desde a Roma Ântiga. Não podemos privatizar coisas como água e energia e esperar que cada cidadão receba sua cota justa”.
Mais que a tradição romana, Janet tem casos concretos na Índia, em Gana, na Argentina, na Bolívia e mesmo no Brasil, para corroborar sua opinião sobre o assunto. “Em vários países onde foi privatizada, especialmente naqueles em desenvolvimento, muitos cidadãos tiveram a água cortada porque não podem arcar com as tarifas que foram elevadas excessivamente.” O problema com a entrada do capital privado nos serviços de saneamento básico é que esses devem ter por objetivo a universalização, independentemente do poder aquisitivo do cliente. Além disso, se a água é finita, é preciso conservá-la e não estimular o consumo, o que contradiz os interesses de quem quer vender a sua mercadoria. “Se isso fosse levado ao pé da letra, nenhuma empresa iria querer. O resultado é que elas tentam manipular as legislações e vira a casa da mãe Joana; criam mecanismos que impedem o controle social e se apropriam do patrimônio público”, dispara Leonardo Morelli, da International Global Water Coalition.
Brasil: na mira do mercado
Se a água representará para o século XXI o que o petróleo foi para o século XX, como prevêem os analistas, o Brasil será uma espécie de Arábia Saudita deste início de milênio. O país concentra 12% da água doce do planeta e despertou a cobiça dos grupos que operam pelo mundo. Hoje, aproximadamente 50 municípios têm o saneamento básico a cargo da iniciativa privada. A cidade de Limeira, no interior de São Paulo, foi a pioneira e desde 1995 a Lyonnaise des Eaux opera o serviço local. O processo se notabilizou por aumento de tarifas e baixa qualidade dos serviços prestados, além de denúncia de corrupção levadas ao Ministério Público. O fracasso não impediu que a mesma companhia arrematasse, em junho de 2000, a Manaus Saneamento por U$ 106 milhões.
Essa segunda transação fez parte das desencadeadas pelo convênio entre a Caixa Econômica Federal e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para a desestatização do setor de saneamento, “visando a melhoria dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário”, conforme documento oficial do banco. Segundo os críticos, no entanto, o objetivo era atender às exigências do FMI, que desde os anos 80 apregoa a idéia do “Estado mínimo”. “Fez-se o contingenciamento total dos recursos de saneamento, só havia dinheiro para a privatização”, critica o engenheiro Cid Barbosa Lima Júnior, diretor do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo e membro da FNSA (Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental).
Tiro pela culatra
O movimento nasceu para defender o serviço público e universal de saneamento e combater o Projeto de Lei 4.147/01 – e depois o substitutivo a ele –, proposto pelo Governo Federal. Um dos pontos polêmicos da proposição era o fato de não deixar claro quem seria o poder concedente. A atribuição, segundo a Constituição Federal, é dos municípios, mas existem dúvidas quando se trata das regiões metropolitanas, onde geralmente o serviço é prestado há décadas por companhias estaduais. “Nesses casos, defendemos que a concessão seja do município, mas operada pelo estado sob gestão de um consórcios de cidades”, afirma Lima. De acordo ele, essa é a forma de se garantir o atendimento com subsídio cruzado, ou seja os locais mais rentáveis financiam investimento nos deficitários, onde a população não pode arcar com custos de tarifa, mas precisam dos serviços como garantia de saúde pública.
Se atraiu a reação da oposição, a confusão em torno do assunto acabou atrapalhando os planos privatizantes do próprio Governo e exclui justamente as áreas mais rentáveis, como a Região Metropolitana de São Paulo. A Sabesp, que atende 24,8 milhões de pessoas em 366 municípios paulistas, é o filé mignon do ramo, mesmo registrando prejuízo de R$ 650 milhões em 2002, devido ao endividamento em dólar. É a maior empresa pública de água do mundo e no ano passado faturou xxxxx.
A se julgar pelas declarações do ministro das Cidades, Olívio Dutra, e do secretário Nacional de Saneamento, Abelardo Oliveira filho, quem não aproveitou enquanto era tempo, não terá oportunidade de tirar a sua lasquinha desse mercado. Oliveira, que presidiu a FNSA, afirmou ainda em janeiro quando foi nomeado, que o polêmico projeto 4147 seria deixado de lado e que a saúde financeira das estatais seria priorizada. Segundo ele, também seriam destinados recursos federais à expansão do serviços visando mudar o quadro apontado pelo IBGE, cujo censo feito em 2000 mostra que 18,9% da população brasileira ainda não tem acesso à distribuição de água e 34,2% não tem coleta de esgoto.
A armadilha da Alca
Mais que lucrar com o serviço de abastecimento, as multinacionais estão de olho nas grandes reservas de recursos hídricos do planeta. “Existe um planejamento estratégico de domínio de fontes de água. A Lionnayse des Eaux opera o serviço em Manaus e tem nisso um pé para a Amazônia. Na cidade de Limeira, aproxima-se do aqüífero Guarani”, adverte Morelli.
O risco apontado por ele fica ainda mais patente sob a perspectiva de implantação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), prevista para entrar em vigor em 2005, a qual tende a fortalecer ainda mais as corporações privadas. Uma amostra do que pode acontecer está no Canadá, que, devido à regras previstas no Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) enfrenta um processo movido em 1998 por uma empresa estadunidense, que reivindica US$ 10 bilhões em perdas. Em parceria com uma companhia canadense, a Sun Belt pretendia levar água dos Grandes Lagos, em British Columbia, para a Califórnia. “A população se deu conta de isso seria ruim para o ambiente e o governo cancelou a permissão. A corporação canadense concordou, mas a Sun Belt, não. Então, está usando o capítulo 11 do Nafta, que permite que uma empresa privada acione judicialmente um governo. Eles são arrogantes e têm muito poder. Nós fomos ingênuos e deixamos que escrevessem essas regras”, lamente Janet Eaton.
A batalha agora, conta Janet, é para retirar do Nafta pontos como esses. “Há muita gente trabalhando nisso, mas é muito difícil quando você tem um dinossauro na porta ao lado que quer as coisas a seu modo.” Por isso mesmo, a canadense aconselha aos latino-americanos cuidado com a Alca. “Eu não sei para que a América do Sul precisaria disso, há muitas oportunidades no mercado interno e com outras nações além dos EUA.” Para ela, o momento requer pressão popular para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva resista a assinar o acordo. “Os líderes conseguem fazer melhores políticas quando sabem que há cidadãos protestando nas ruas”, pondera.
Água engarrafada
Enquanto não conseguem exportar grandes quantidades de água em aquedutos, petroleiros etc, as empresas têm uma outra alternativa bastante lucrativa. Segundo o livro “Ouro Azul”, de Barlow e Clark, em 2000 foram engarrafados e vendidos 84 bilhões de litros, 25% dos quais fora de seu país de origem. Ainda de acordo com os canadenses, a brincadeira rende US$ 22 bilhões por ano. A mágica foi explicada por um ex-executivo da Perrier: “Tudo o que você tem a fazer é retirar água do chão e vendê-la mais caro que vinho, leite ou até mesmo o petróleo”.
Nada impede, contudo, que estratégias criativas de marketing sejam adotadas. A Nestlé, líder absoluta nesse ramo, teve uma idéia genial e lançou a Pure Life, a mais vendida entre as suas 68 marcas. Trata-se de água retirada do solo e purificada com minerais acrescidos a ela – a mesma tática utiliza sua principal concorrente a Coca-Cola, com a Bonaqua. Ou seja, inventou-se a água artificial. Em outros, o consumidor, especialmente o do terceiro mundo, que acredita estar consumindo um produto mais confiável que o fornecido pelo sistema público, pode se ver em sérios apuros. Um estudo de março de 1999 realizado pelo Conselho de Defesa de Recursos Naturais dos Estados Unidos descobriu que um terço das 103 marcas analisadas continham níveis de contaminação, inclusive traços de arsênico. Uma dessa simplesmente vinha de um poço localizado no estacionamento de uma instalação industrial, próximo de um aterro sanitário.
No entanto, há aquelas que realmente vêm de fontes minerais consideradas medicinais. É o caso de várias marcas da Nestlé produzidas em São Lourenço, Minas Gerais. “A cidade vivia do turismo ligado a isso, a empresa tomou conta e secou as fontes. Nesse caso, a água não só vital, é geradora de desenvolvimento e renda. Onde um grande grupo se apropria do recurso, há mais conflito, miséria e desemprego”, aponta Leonardo Morelli.
De acordo com o “Dossiê Nestlé”, produzido pelo Movimento Cidadania pelas Águas, a companhia retirava do solo 500 mil litros de água por dia, utilizando bombas de sucção de grande potência.
As suspeitas de havia algo errado no Parque das Águas, onde está instalada a Nestlé, começou há alguns anos, quando os turistas passaram a se queixar do sabor da água. O Cidadania pelas Águas afirma que para acobertar a situação gerada pela exploração que excedia a capacidade das fontes, o que resultou na extinção da água magnesiana, a empresa fazia “manobras subterrâneas e a injeção artificial de gás”. Em 2001, a empresa também enfrentou denúncia pelo método de produção da Pure Life, em desacordo com o Código de Águas Minerais, que proíbe a alteração da composição química do produto retirado do solo.