Quando a ditadura militar brasileira promoveu a migração de trabalhadores para a Amazônia nos anos 70, sob a bandeira “uma terra sem povo, para um povo sem terra”, não levou em conta as milhares de comunidades tradicionais que existiam ali. Entre elas, as comunidades negras rurais, os quilombolas, que hoje lutam pelo direito à posse de suas terras.
Em agosto passado, o governo federal prometeu lançar um Programa de Aceleração do Crescimento especifico para essas comunidades. O orçamento destinado ao novo programa ainda não foi oficialmente confirmado pelo ministério do Planejamento, mas a verba pode chegar a R$ 1 bilhão.
Não há um levantamento do número exato de comunidades remanescentes de quilombos. Segundo o Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da Universidade de Brasília (UnB), existem hoje registros de 2.842 comunidades quilombolas espalhadas por todas as regiões do país. Já a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) estima que haja cerca de cinco mil por todo o Brasil – dentre as quais mais de mil nos nove estados da Amazônia brasileira.
Formação dos quilombos
Apesar disso, a presença negra na floresta amazônica foi subestimada durante muito tempo pela historiografia. A introdução de escravos em larga escala na floresta começa desde a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, em 1755. Com a resistência indígena à escravidão e a proibição da Igreja, a mão-de-obra escrava negra foi a solução encontrada para as monoculturas de cana-de-açúcar e algodão, entre outras atividades extrativistas.
“A entrada de dezenas de milhares de negros na região se deu, sobretudo, no Maranhão e no Pará através dos portos de São Luís, Turiassú e Belém”, explica o antropólogo Alfredo Wagner Berno, coordenador do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas. Houve, ainda, escravos fugidos da Guiana Francesa.
Segundo Berno, a formação dos quilombos não se deu necessariamente através da fuga e da resistência dos negros à escravidão e ao sistema de plantation (monocultura para exportação). Com a decadência de ciclos econômicos, como o caso do mercado de algodão – dominado pelos Estados Unidos após sua independência em 1776 – muitos proprietários de terra e senhores de escravos abandonaram a região e deixaram as terras para os antigos escravos.
“É importante ressaltar que há muitos registros de que essas comunidades, ao contrário do que se pensa, produziam e estavam vinculadas ao sistema comercial, aos grandes comerciantes”, afirma o antropólogo. Ele cita o exemplo de Tavares Bascos, que registrou, em 1866, o comércio realizado pelos quilombolas em Oriximiná. “Se não fosse essa função econômica que eles exerciam, como abastecer a região de farinha e arroz, o quilombo de Palmares, por exemplo, não teria sobrevivido por mais de cem anos no período em que o preço do algodão cai”, diz Berno.
Direito à terra
A questão quilombola foi inserida no debate brasileiro com a inserção do artigo 68 no ato das disposições transitórias da Constituição de 1988: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
O artigo foi resultado de uma mobilização do movimento negro pela reparação histórica da escravidão no Brasil junto a essas comunidades, que viviam em condições precárias e não contavam com assistência do Estado.
Maurício Paixão, do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN), participou desse processo na década de 80 e conta que ausência de políticas públicas nessas comunidades negras rurais chamou a atenção do movimento. “Percebemos que essa situação não era exclusivamente no Maranhão, estava espalhada por todo o Brasil. A principal reivindicação das comunidades – que eles chamavam de Mocambos ou Terras de Preto – era a posse da terra que eles ocupavam, já que começaram a surgir problemas com grileiros ou invasores”.
Apesar da inserção do artigo em 1988, a titulação das terras quilombolas só foi regulamentada em 2003, com o decreto 4.887 do governo de Lula. “A regulamentação foi um avanço, mas ainda sofremos com a truculência de alguns partidos que o julgam inconstitucional e querem revogá-lo”, diz Maurício. Um dos avanços, segundo ele, é o orçamento específico com essas comunidades e a abertura de créditos. “Mas o governo dá com uma mão e tira com a outra. Se por um lado ele direciona essa verba, por outro os recursos não são executados, ficam inacessíveis”, lamenta.
Um dos pontos polêmicos do decreto 4.887 é a autodefinição. Segundo esse critério, a própria comunidade deve declarar-se quilombola. Mas conseguir a posse da terra não é tão fácil como possa parecer: a autodefinição é apenas o início de um processo complicado, que envolve identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e finalmente o registro, que deve ser coletivo (em nome de uma Associação de Moradores).
Relação com a natureza
A polêmica em torno da autodefinição se dá também pela confusão de termos, já que muitos vêem os quilombolas como originários diretos de quilombos. “A nossa constituição não fala de ’originários’. O tradicional não pode ser em relação ao tempo, mas à maneira como lidam com a terra”, diz Alfredo Wagner Berno.
O antropólogo explica, ainda, que o uso da terra nas comunidades quilombolas é semelhante a outros povos indígenas. “São também pescadores tradicionais, castanheiros, peconheiros, cipozeiros. É uma relação equilibrada com o ecossistema, por isso a área ocupada por eles são as mais verdes, as mais preservadas. São as comunidades tradicionais que mantêm a Amazônia, elas são um elemento preservador por excelência”, finaliza.
O projeto Nova Cartografia Social Brasileira mapeou mais de 750 comunidades no Maranhão, mais de 400 no Pará, quase 100 no Tocantins e dezenas no Amapá e no Amazonas, além de Rondônia. As próprias comunidades participam do processo de elaboração dos mapas em toda a Amazônia.