Repúdio ao “Rodeio das Gordas”

Prezado Prof. Ivan Esperança,

Por uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo de hoje (27/10), acabo de tomar conhecimento – com horror! – do que ocorreu no evento esportivo que reúne todas unidades da UNESP, uma das mais conceituadas instituições de ensino superior do país. Vi na reportagem que alunos se divertiram às custas do excesso de peso das alunas, que certamente não se enquadram no padrão de beleza a que as mulheres se sentem compelidas a seguir devido à pressão social e reforçada fortemente pela mídia com o intuito de vender produtos de beleza e cirurgias estéticas, submentendo-se muitas vezes a dietas procedimentos horrorosos apenas para se sentirem atraentes para os homens.

Não sei se o senhor atentou para o fato de que este tipo de violência é cometida somente contra as mulheres – é o que chamamos de violência de gênero. Nenhum homem se sente tão desvalorizado – e muito menos tem sua auto-estima tão rebaixada – q uanto as mulheres por causa de seu peso, do formato de partes do seu corpo, cor do cabelo, roupas que veste etc. Então, professor, a pressão social por esta “ditadura da beleza” já se constitui por si uma violência de gênero, na medida em que submete, agride, violenta, espolia, maltrata e corrói a dignidade apenas das mulheres.

A promoção deste estúpido e abominável “Rodeio das gordas”, então, é simples e absolutamente inaceitável. Porque não apenas se utiliza – e leva a extremos insuportáveis – a violência de gênero, mas sobretudo porque o faz com requintes de crueldade, sem simpatia, sem empatia, sem nenhum cuidado com as mulheres que sofreram tamanha agressão. Tal “brincadeira” (termo totalmente inapropriado para designar o que aconteceu) reforça a idéia de que as mulheres são apenas objeto de consumo para os homens, que se sentem no direito de não apenas descartá-las quando não são interessantes esteticamente para eles, mas podem ser inclusive alvo de escárnio público, violência, crueldade, humilhação.

Episódios deste tipo – como também o acontecido na UNIBAN – preocupam-me principalmente por serem um sinal de alerta: que tipo de seres humanos estamos formando, se estas pessoas que pertencem a uma elite cultural e intelectual no país violam – por prazer! – os direitos humanos de suas colegas, inflingindo a elas um tipo de tortura que vai deixar marcas para sempre? Que tipo de gente estamos formando, que se dá o direito de “montar” sobre suas colegas para ridicularizá-las em público, coisa que parcela da sociedade não aceita mas que se faça nem com animais de carga ou de produção, por se configurar como crueldade contra os animais? Que tipo de sociedade, afinal, queremos construir, prof. Esperança? Uma sociedade que reforça os estigmas, os estereótipos, a discriminação, a violência, ou uma sociedade que pode respeitar e conviver com a diversidade, com as diferenç as? Devo dizer que estou em pânico, professor, e sem querer fazer trocadilho, estou sem nenhuma esperança. Não quero que as gerações futuras vivam num Brasil nazista, não quero o totalitarismo selvagem que tortura, fere e mata por diversão! Estou em pânico.

Escrevo-lhe agora movida pelo horror e pela indignação. Fiz um leve exercício de empatia – coloquei-me no lugar dessas meninas por alguns instantes e, mesmo em imaginação, senti-me completamente estraçalhada, violentada, destruída. E então, professor, escrevo-lhe também porque me preocupou muito sua declaração, publicada na mesma matériado jornal: “Vamos ouvir os envolvidos e estudar as medidas disciplinares, mas não queremos estabelecer um processo inquisitório”. Porque isso me cheirou a leniência, sabe? Me cheirou à uma compaixão meio deslocada pelos agressores. Porque não estamos falando em queimar na fogueira moral os que pensam diferentemente de nós, como ocorria na Inquisi ção. Nem pensamos que a UNESP deva queimar as bruxas, até porque a inquisição foi muito mais violenta com as mulheres do que com os homens.

Não, professor Esperança, não queremos inquisição, porque aceitamos e respeitamos a diversidade. O que nós queremos – e exigimos – é uma punição exemplar para todos os responsáveis pela tremenda violência cometida contra essas meninas, que agora devem estar encolhidas em suas casas, sofrendo porque foram submetidas à mais terrível das punições somente por não serem as gostosas disponíveis para serem desfrutadas por machos selvagens!

Professor Esperança, o senhor tem à sua frente uma oportunidade rara de fazer justiça, de não deixar que a impunidade continue movendo parcelas da elite de nosso país. O senhor tem uma oportunidade única de dar o exemplo, de mostrar que nem o senhor, nem a UNESP, nem a sociedade seremos coniventes com a violência bárbara e sem sentido cometida contra essas menin as. O senhor tem a chance de contribuir para que a violência contras as mulheres não seja reforçada em todo o país, mais uma vez, pela repercussão que este caso terá.

Professor, contamos com sua integridade ética e com o seu senso de justiça. Estaremos todos e todas olhando para a UNESP nos próximos dias, com esperança de que o senhor nos ajude a proteger milhares de meninas e mulheres que sofrem – e morrem – pela enorme e impune violência de gênero em nosso país.

Atenciosamente,

Valéria Melki Busin

Veja também: Nota da OAB-SP

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