Charge: Latuff
No dia 29 de outubro, logo após a repercussão de uma mensagem do Papa Bento XVI, para que seus bispos orientassem fiéis a não votar em candidatos favoráveis ao aborto, a ativista Maíra Kubík Mano redigiu e remeteu ao Vaticano um pedido de excomunhão, publicou o texto em seu blog e o distribuiu a algumas listas em que atua: pelo direito à comunicação, pelos direitos das mulheres, entre outras. “Escrevi essa carta ao Papa Bento XVI. Acabei de enviá-la por email ao Vaticano (benedictxvi@vatican.va) e também vou colocá-la no Correio. Fiz em português e inglês, para que não restem dúvidas sobre meu pedido.”, explicou Maíra.
O tema do aborto entrou na campanha presidencial brasileira como arma de ataque do candidato da oposição, José Serra, contra aquela que seria eleita a primeira mulher presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Com uma propaganda voltada a ganhar simpatia do eleitorado mais reacionário, o candidato derrotado acabou provocando uma violenta pressão das igrejas contra Dilma, que se viu forçada a assumir compromissos escritos de que não enviaria propostas ao Congresso que ferissem interesses das religiões.
O mesmo espírito de fobia conservadora havia sido incitado pela oposição ao governo Lula quando este enviou ao Congresso, em maio de 2010, a 3ª versão do Plano Nacional de Direitos Humanos. Na época, oposição e setores religiosos fizeram tanto barulho que o governo retirou do plano o texto que defendia o direito de decisão da mulher sobre seu próprio corpo. Entre outros direitos renegados na versão final.
Depois da carta em que Dilma procurava acalmar os ânimos das igrejas surgiu, de um lado, no eleitorado progressista, a ideia de promover a celebração do “Orgulho Laico”, defendendo o princípio de que o Estado não deve subordinar-se às religiões. A proposta foi ganhando seus primeiros adeptos pela internet.
De outro lado, o próprio Papa Bento XVI surgiu, em pessoa, tentando orientar o voto do rebanho brasileiro. A menção à mensagem papal foi usada pelo adversário de Dilma para o encerramento de sua campanha na televisão.
Embora Dilma Roussef tenha se declarado contra o aborto, também manifestou-se a favor de sua descriminalização na prática, ao defender que é preciso “atender” e não “prender” milhões de mulheres que recorrem aos métodos clandestinos de interrupção da gravidez. A orientação papal teve endereço certo.
A carta de Maíra, escrita em São Paulo, recebeu manifestações de apoio de diversas regiões, entre elas, a de Elenara Vitória Iabel, de Porto Alegre, que decidiu enviar seu pedido de excomunhão também, adaptando o texto de Maíra.
Leia a seguir, a carta de Maíra.
À Sua Santidade Papa Bento XVI
00120 Via del Pellegrino
Citta del Vaticano
Pedido de excomunhão
Prezadas autoridades eclesiais,
Eu, Maíra Kubík Mano, cidadã brasileira, 28 anos, venho, por meio desta, solicitar à Igreja Católica Apostólica Romana minha excomunhão.
Fui batizada involuntariamente, quando tinha poucos meses de vida, pelos meus pais. Eles nada mais fizeram do que seguir a tradição de seus antepassados e não pretendo nem vou responsabilizá-los por isso.
Contudo, aos 9 anos, fui de livre e espontânea vontade tomar a comunhão (Eucaristia). Fiz o curso necessário para tanto na Igreja Nossa Senhora do Brasil, em São Paulo, SP, Brasil. Durante nove meses, aprendi os preceitos católicos e estudei passagens bíblicas. Em seguida, participei da cerimônia em que recebi, pela primeira vez, a hóstia, ou o corpo de Cristo.
Desde então, fui à missa poucas vezes e, com o passar do tempo, identifiquei-me cada vez menos com a doutrina católica. Ou, melhor dizendo, com aquela pregada diretamente pelo Vaticano.
É preciso aqui fazer uns parênteses para afirmar que tenho, isso sim, laços fortes com a chamada Teologia da Libertação, que inundou de solidariedade e compromissos sociais os rincões do Brasil na segunda metade do século XX. Mas com esse grupo, imagino, você não está preocupado. Conseguiu isolá-lo, desautorizá-lo, diminuí-lo. Porém, quero registrar aqui que não foi possível enterrá-lo. O exemplo de sua força segue vivo com D. Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno e tantos outros.
De qualquer forma, cheguei à conclusão de que tenho um desacordo absoluto e completo com Sua Santidade, sem possibilidade de repactuação. Entre os pontos mais prementes sobre os quais temos visões diametralmente opostas estão legalização do aborto, casamento gay e utilização de preservativos durante o ato sexual. Isso só para começar a conversa. Poderia discorrer páginas e mais páginas sobre o lugar subalterno e humilhante que vocês têm reservado às mulheres durante séculos a fio.
A gota d’água que me levou a redigir essa carta foi a orientação de Vossa Senhoria para que os pastores orientassem politicamente seus fiéis com base em preceitos morais, tendo em vista a eleição para a Presidência da República que ocorre no próximo domingo (31/10/2010). Bem, para mim o único preceito válido é o do Estado laico e considero um absurdo completo a Igreja se pronunciar sobre isso. Religião e governo misturados é uma fórmula maléfica, que prejudica as liberdades individuais e coletivas.
E, como se tudo isso não fosse suficiente, atualmente eu me defino como atéia.
Sendo assim, peço que Sua Santidade seja sensível o suficiente para compreender que eu não quero mais ser considerada uma parte deste rebanho. Nem oficialmente, nem extra-oficialmente, e me conceda a excomunhão.
Obrigada desde já,
Maíra Kubík Mano