Era junho, inverno rigoroso. Mas, dentro da universidade, a vida pulsava em labaredas. Os estudantes discutiam, conspiravam, desenhavam uma rebelião. Eles nem sabiam, mas o movimento desencadeado por aquela juventude insurgente iria incendiar toda a América Latina, rompendo barreiras da língua, do espaço e do tempo. Era o ano de 1918, uma hora americana, e a universidade era a de Córdoba, Argentina.
Naqueles dias, os estudantes reivindicavam uma nova universidade, diferente dos moldes europeus e estadunidenses que eram copiados por toda a parte, uma instituição latino-americana, capaz de pensar a realidade deste lugar, desde este espaço. Uma universidade democrática, com a participação dos alunos e trabalhadores, em que a base da pedagogia fosse o amor. Palavra estranha num mundo tão árido. “A autoridade, na casa dos estudantes, que é a universidade, não se exercita mandando, mas sugerindo, amando, ensinando. Se não existe uma vinculação espiritual entre o que ensina e o que aprende, todo o ensino é hostil e, portanto, infecundo”, alertava o manifesto que entrou para a história.
Pois as barricadas erguidas pelos estudantes da USP dizem respeito a esse sentimento: o amor. O mesmo amor que levou os jovens de Córdoba a mudar o rumo da vida universitária em todo o continente. Mas, apesar disso, há quem diga que a ocupação da reitoria da Universidade de São Paulo é coisa de baderneiros. Nenhuma novidade num país em que políticos corruptos são imunes a tudo, enquanto os que lutam são sempre os “fora da ordem”.
Pois, abençoados sejam sempre esses fora da ordem, se a ordem em vigor significar o que se vê: corrupção, sujeira, roubo do patrimônio público, servilismo colonial, incapacidade administrativa, autoritarismo, subserviência às multinacionais. Abençoados sejam os que ousam erguer as vozes e seus frágeis corpos diante da injustiça e da opressão. Os que lutam contra o sistema estabelecido sempre serão os “fora da ordem”, mas nunca baderneiros, marginais, bagunceiros. Porque tudo o que querem, agora, é manter a universidade pública, transparente. E o que é mais bonito. Esse sonho não é para eles, são para as gerações vindouras.
Nos jornais e televisões que cortejam o capital e a lógica privatista do estado tem sido comum a crítica aos estudantes, e não poderia ser diferente. Trata-se da velha luta de classes. De um lado, os que defendem os privilégios para a classe dominante e de outro os que defendem interesses coletivos, da maior parte da população. Os estudantes não estão em luta por interesses difusos ou desconexos, como anunciam os jornalistas sem profundidade. Cada reivindicação singular está articulada com a universalidade da idéia de uma universidade livre, soberana, sob o controle da sociedade e não do estado.
Os estudantes de São Paulo, diante das leis arbitrárias de José Serra gritam o grito de rebeldia, tal qual seus companheiros de Córdoba no longínquo 1918 que diziam: “Nos acusam de insurretos em nome de uma ordem que não discutimos e que nada tem a ver conosco. Se em nome desta ordem querem seguir nos enganando e embrutecendo, proclamamos bem alto o direito a insurreição. Então, a única porta que aparece aberta à esperança é o destino heróico da juventude. O sacrifício é nosso melhor estímulo; a redenção espiritual das juventudes latino-americanas é nossa única recompensa, pois sabemos que nossas verdades são – dolorosamente – de todo o continente. Se em nosso país há uma lei que se opõe aos nossos sonhos, vamos reformar esta lei. É nossa saúde moral que está exigindo”.
Assim também gritam os estudantes que ocupam a reitoria da universidade de Alagoas, e os que saíram às ruas em Florianópolis na luta pelo passe livre e contra o aumento abusivo das passagens dos coletivos urbanos. Essa sanha insurreta não pode parar diante de uma lei que é injusta. Daí a disposição em enfrentar todas as dores.
Nesta segunda-feira, dia 29 de maio, enquanto os estudantes universitários da USP resistiam nas barricadas rebeldes, em Florianópolis os estudantes secundaristas e universitários enfrentavam a força policial bem dentro do campus da UFSC. Até bombas de gás foram jogadas para dispersar os manifestantes. Em frente à Biblioteca Central, lugar do saber, eles receberam o chicote da ordem que não criaram, e que apenas defende os interesses de meia dúzia de empresários. Uma racionalidade que só não entende quem não quer.
As gentes que olham de revés os estudantes alçados em rebelião, contaminadas pelo discurso da ordem dos poderosos, se indignam com os que lutam e não com os opressores. São aqueles pelos quais também lutam os estudantes os que os rechaçam e condenam. Mas, afinal, esta é uma luta que só vai ter fim numa sociedade verdadeiramente justa, em que a lei não seja letra morta para os poderosos e só usada contra os que exigem direitos e defendem sonhos coletivos.
Naqueles dias em Córdoba, quando criaram um movimento que criou asas por toda a América Latina, os estudantes argentinos mudaram a face do mundo. Exigiam liberdade de cátedra, o direito de eleger seus reitores, de rechaçar professores incompetentes e incapazes de ver a educação como um ato de amor. Hoje, muitas dessas conquistas ainda estão por se cumprir e outras ameaçadas, daí os movimentos em todo o Brasil e em muitos outros países latino-americanos. E, não é à toa que parta da juventude porque, ela, por si só, encarna a possibilidade da revolução.
Assim termina o manifesto de Córdoba: “A juventude já não pede. Exige que se reconheça o direito de exteriorizar um pensamento próprio na vida universitária por meio de seus representantes. Está cansada de suportar os tiranos. Se já mostrou capacidade de realizar uma revolução nas consciências, não podem desconhecer a capacidade que esta mesma juventude tem de intervir no governo de sua própria casa”. Quanta validade ainda existe neste grito, seja nas barricadas de São Paulo ou nas caminhadas de Florianópolis.
Por isso, podem até acontecer derrotas, mas esse sonho coletivo de vida boa para todos e não só para alguns, permanece vivo no tempo e no espaço e explodirá hoje e amanhã. Daí toda a solidariedade aos estudantes da USP, de Alagoas, de Floripa e de canto deste país onde uma voz se levantar em rebelião. Porque, como já ensinou o filósofo da esperança Ernst Bloch, “aquilo que é, não pode ser verdade”. E na senda de Simón Rodríguez dizemos: ou inventamos, ou morremos! Na busca de uma outra ordem, de justiça, liberdade e comunhão.