“Prisão não pode ser cruel, desumana ou degradante”

Envolverde/IHU-OnLine

Um estado financeiramente promissor e pequeno como o Espírito Santo tem um dos piores modelos prisionais do país, principalmente depois que o atual governo resolveu colocar os presos em celas metálicas, ou seja, contêineres com pequenos respiradouros onde, no verão, a temperatura atinge 50 graus. A gravidade da situação foi tão grande que foi tema de painel da Comissão de Direitos Humanos da ONU. “O quadro que vivemos hoje, de generalizadas violações aos Direitos Humanos no sistema prisional capixaba, é fruto de anos de desgovernos e de não priorização da questão da segurança pública e do sistema prisional, não só por parte do executivo, mas também do judiciário e do Ministério Público”, responde o advogado e presidente da Comissão de Direitos Humanos do Espírito Santo, Bruno de Souza Toledo em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone.

Toledo denuncia o caos no modelo do sistema prisional capixaba, fala da decisão do STJ em determinar que o ES coloque em prisão domiciliar todas as pessoas que estão em presídios metálicos no estado e analisa as ações que precisam ser feitas para que a situação atual seja revertida. “O desafio exige de todos nós mudança de mentalidade e cultura”, aponta.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O sistema prisional do ES foi tema de um painel da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Qual a situação atual das cadeias deste estado?

Bruno Toledo – Na verdade, tudo que fomos denunciar no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, em Genebra, é um somatório histórico de violações aos Direitos Humanos no Espírito Santo. O quadro que vivemos hoje, de generalizadas violações aos Direitos Humanos no sistema prisional capixaba, é fruto de anos de desgovernos e de não priorização da questão da segurança pública e do sistema prisional, não só por parte do executivo, mas também do judiciário e do Ministério Público. Hoje, temos um déficit de quatro mil vagas no sistema prisional, temos presos espalhados pelas delegacias de polícia, algemados pelos pés e em celas metálicas. Temos presos em micro-ônibus, que deveriam servir para o transporte e estão se transformando em celas, ficando até 15 dias dentro dos veículos expostos ao sol. Temos presídios como a Casa de Custódia de Viana (Cascuv), que começa a ser desativada; o presídio de Colatina e o de Tucum, onde estão as mulheres, absolutamente superlotados.

Tudo isso é fruto de uma política de aprisionamento em massa e de não prevenção ao crime, à violência e de irresponsabilidade e de omissão do Judiciário e do Ministério Público. E sem o consequente investimento por parte do Executivo na construção de vagas suficientes para essa política de aprisionamento que deliberadamente o Estado adotou. Então, temos hoje um quadro de superlotação absurda no sistema prisional capixaba e de tortura institucionalizada de inúmeras operações de agentes penitenciários deliberadamente com o intuito de torturarem. E em presídios como o da Casa de Custódia de Viana (Cascuvi) que tinha uma capacidade para 360 homens e chegou a ter, no ano passado, 1213, e a situação dos esquartejamentos, que foi a questão mais grave denunciada por nós.

IHU On-Line – As cadeias brasileiras estão na mesma situação?

Bruno Toledo – A questão dos presos provisórios não é um problema só do Espírito Santo. É uma situação nacional. O sistema prisional do Brasil merece atenção dos Direitos Humanos por parte da ONU. Disso não tenho dúvida. O que nós ressaltamos no ES é que somos um estado pequeno, que está bem economicamente, é produtor de petróleo, exportador, é um estado que tem a 5º renda per capita do país e que, portanto, não pode justificar as condições a que os presos são submetidos. O estado tem cerca de 12 mil presos, isso é muito pouco para que a situação esteja do jeito que está.

Quando você analisa São Paulo, que tem quase 200 mil presos, o problema é diferente e a violação por conta da superlotação toma outra dimensão. No ES, parece que é uma opção política do governo em criar situações de violação dos direitos humanos, porque a decisão, por exemplo, de adotar celas metálicas, de colocar contêineres para presídio é uma decisão governamental e que, agora, com a decisão do STJ, corrobora tudo o que falamos. Ou seja, celas metálicas se consubstanciam como um tratamento cruel, desumano e degradante proibido pela Constituição, daí a decisão do STJ em determinar que o ES coloque em prisão domiciliar todas as pessoas que estão em presídios metálicos no estado.

IHU On-Line – Em função da violência, essa decisão é viável?

Bruno Toledo – Não sei se é viável, mas é justa. Se o estado não consegue minimamente garantir condições aos presos cumprindo a sua função legal, então nada mais justo que essas pessoas fiquem encarceradas em casa. Nenhum de nós, militantes de direitos humanos, prega a impunidade, pelo contrário, queremos que as pessoas sejam responsabilizadas e, sobretudo, sejam ressocializadas. Ninguém é ressocializado em celas metálicas com 50 graus de temperatura, sem colocar roupa de baixo por conta do calor. Isso é querer que o criminoso pague com o próprio corpo pelo crime que cometeu. Isso não pode ser admitido. Por isso, nossa satisfação quando o STJ corrobora aquilo que já vínhamos falando e a própria ONU assina embaixo. O que o estado vai fazer agora com essa decisão, nós não sabemos. Mas foi esse governo que causou esse problema, eles nem podem dizer que foi o governo anterior etc., e eu tendo a achar que, quando eles decidiram usar celas metálicas, estavam preparados para consequências como essa.

IHU On-Line – Se os presos custam tanto aos cofres públicos, por que a situação nos presídios é tão precária?

Bruno Toledo – A situação dos presídios do Brasil, e o ES é um retrato muito bem feito do país, só está assim porque aqui só são presos pobres, negros e miseráveis. Se no nosso país não reinasse a impunidade para os ricos, para os políticos corruptos e juízes que vendem sentenças, se essas pessoas fossem para o presídio, jamais existiria prisão metálica. Só é possível permitir essa situação porque achamos que os presos, negros e pobres são uma subcidadania. Então, a eles é permitido que fiquem durante três anos em celas metálicas no calor de 50 graus. Se lá estivessem os ricos e brancos de olhos claros endinheirados, certamente os presídios que temos hoje não seriam dessa maneira. Há um recorte classista e de prioridade governamental que corrobora que os presídios se transformem em verdadeiros caixões sociais.

IHU On-Line – Que medidas são mais urgentes para que se comece a mudar o sistema prisional brasileiro?

Bruno Toledo – Eu penso que não podemos ter, no horizonte, a questão de construção de presídios. No ES, o governo diz que a solução passa pela construção de presídios, que tudo será resolvido quando não houver mais déficit de vaga. Quero achar que nós todos juntos sejamos capazes de prevenir a violência e o crime. Precisamos pensar em garantir os direitos da cidadania para o todo da cidadania, porque ninguém nasce com vocação para ser criminoso. O primeiro ponto é pensar nos direitos de cidadania. Emergencialmente, precisamos efetivamente pensar que o modelo do sistema prisional brasileiro faliu.

Precisamos pensar no papel do Judiciário e do Ministério Público, que acham que a pena de prisão é generalizada e serve para todos os tipos de crime, inclusive para os jovens. O meu Estado, proporcionalmente, é o que mais interna adolescentes no Brasil; como se não existissem outras possibilidades, sem cortar o vínculo social e comunitário desses sujeitos. Precisamos pensar que a prisão deve ser a exceção para os crimes que realmente violem os direitos fundamentais, aí sim a prisão deveria ser aplicada. Ver adolescentes, como aconteceu aqui, que roubou um cavalo, porque seu sonho era ter um cavalo, ser condenado a cumprir penas de internação; em função disso, necessitamos de fato uma mudança de cultura para tentar novas formas de responsabilização.

O preso hoje, em sua grande maioria, é levado a um caixão social, porque ele morre socialmente, ele não consegue estudar, ter uma atividade laboral, não pode afirmar sua condição humana porque ele passa a ser completamente invisível para qualquer grupo social. Não ter programas de ressocialização acaba incidindo na reincidência do preso no Brasil. O desafio exige de todos nós mudanças de mentalidade e cultura. Assim, a decisão do STJ em relação ao ES é histórica porque coloca a dignidade humana no seu devido lugar e diz que prisão não deve ser de qualquer forma. Prisão não pode ser cruel, desumana ou degradante.

IHU On-Line – Quais as chances de um preso hoje mudar sua ideia de vida para quando sair do sistema carcerário?

Bruno Toledo – Depende do presídio. No ES, temos vários paradigmas. Temos o paradigma da violação dos direitos humanos, mas há presídios, que é o que o governo faz propaganda nos jornais, que têm ações sistemáticas de ressocialização e que consegue acompanhar o preso durante a pena, o problema é que ele não é regra, mas exceção. Nesses presídios, as chances são enormes. O preso precisa pensar no que fez e que o ato causou problema para a sociedade e para ele. Mas, se um preso fica três anos em celas metálicas, nu, porque não consegue colocar roupa no verão quando faz 50 graus, e passa um frio absurdo no inverno, sofrendo tortura, sem nenhuma atividade, não há chance alguma de ressocialização.

IHU On-Line – Qual é o papel dos Direitos Humanos na garantia mínima da dignidade do preso?

Bruno Toledo – Numa sociedade como a nossa, que distorce a luta pelos direitos humanos, nossa luta passa a ser muito maior porque precisamos conseguir legitimidade social para a causa dos direitos humanos. A população nos vê com olhos que não da lente que luta pela vida, pela dignidade humana de qualquer pessoa, seja negro, pobre, rico. Nossa bandeira principal é nossa marca. No estado do ES, denunciamos a situação do sistema prisional há uma década, e só agora conseguimos chegar até a ONU e, então, ser vistos de outra maneira, colocando o Conselho de Direitos Humanos no seu devido lugar. O papel que temos, portanto, na garantia mínima de direitos humanos num estado que não tem nem uma secretaria de direitos humanos, não tem políticas específicas para área, é de luta para conseguir legitimidade social.

IHU On-Line – Como compreender o poder das facções criminosas mesmo dentro das prisões?

Bruno Toledo – Essa é uma questão que, no ES, não conseguimos identificar ainda, ao contrário do trabalho que já foi desenvolvido no Rio de Janeiro e São Paulo. Claro que há ações cujas ordens vem de dentro das prisões, mas orquestras feitas por facções nós ainda não conseguimos pesquisar. Todavia, pela realidade de outros estados, essas facções se organizam a partir de uma própria posição do estado. De alguma forma, o estado dá condições para que essas facções se formem e se institucionalizem, seja por contatos via celular, advogados, familiares ou mesmo funcionários dos presídios. Há toda uma estrutura que facilita a organização desses grupos.