Por que é fundamental que os municípios desenvolvam Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis?

Informações da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF- IBGE), relativas a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) , noticiam que em 2017 havia cerca de 10 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave no Brasil. Projeções da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) indicam que até dezembro de 2020 haverá cerca de 20 milhões de pessoas passando fome, só no Brasil.

Esses números ilustram o tamanho do problema. A busca por caminhos que auxiliem no enfrentamento da questão tem sido pauta de estudiosos, movimentos, coletivos, organizações de norte a sul do país. Uma alternativa importante são os Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis. Eles são defendidos pelo coletivo que articula a Conferência Popular por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (CPSSAN).

No dia 08 de outubro, em Ato Público, o coletivo da CPSSAN apresentou à sociedade brasileira, partidos políticos, candidatxs nas eleições municipais de 2020 a Carta Aberta por Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis em nossas cidades. Na carta estão listadas algumas propostas para plataformas políticas municipais voltadas à produção, o abastecimento e o consumo de comida de verdade, livre de agrotóxicos e de transgênicos, produzida pela agricultura familiar, por povos e comunidades tradicionais, por comunidades negras rurais. Defende-se a comida caracterizada por alimentos in natura e minimamente processados em detrimento de produtos ultraprocessados, e que protegem e promovem as culturas alimentares e a sociobiodiversidade.

Em tempos de aumento expressivo do número de pessoas passado fome, políticas públicas, programas, projetos e ações de prevenção são fundamentais. Para entender melhor a importância dos Sistemas Alimentares Saudáveis e porque é fundamental que eles estejam na agenda necessária de prefeitxs e vereadorxs por todo o país, fomos conversar com André Luzzi (Coletivo Banquetaço, Fórum Paulista de SAN), Elisabetta Recine (Prof. UNB, Aliança Brasil) e Leomárcio Araújo (camponês, membro da Coordenação Nacional do MPA e coordenador do Coletivo Nacional de Soberania Alimentar).

Como você vê a situação nacional atual, com a pandemia do COVID 19 e as informações recentemente divulgadas da EBIA? Que impactos e problemas se apresentam? poderia comentar o cenário?
André Luzzi – A COVID ela traz uma urgência de mudança, de transformação do sistema agroalimentar e das políticas públicas de abastecimento popular nas cidades e nos municípios, pensando na região urbana e rural. A gente também percebe uma enorme desigualdade no acesso aos alimentos saudáveis e sustentáveis, fruto de muita especulação, de consideração do alimento como commodity que afasta a possibilidade das pessoas terem o alimento de uma forma digna, de uma forma na sua dimensão mais ampla. Nem só do direito, mas do alimento como axé, como sociabilidade, como vínculo, conexão entre si, com a comunidade e a natureza. Também a gente tem visto, pelos dados da EBIA, que tem um elemento que não pode passar despercebido, a instabilidade política e a baixa densidade democrática afeta diretamente a garantia do direito humano à alimentação e a nutrição adequada. Quer dizer, a gente viu na pesquisa, que desde 2013 vem caindo a possibilidade das pessoas terem acesso à alimentos. E isso demonstra que a governança, o ambiente político favorece mais ou menos o combate a fome. Dizia Betinho: “a alma da fome é política”.

Elisabetta Recine – Os dados da EBIA infelizmente eles vêm confirmar algo que já se antevia a partir das informações que estavam sendo recolhidas, a partir dos dados de aumento da pobreza, da extrema pobreza, do trabalho formal, do retrocesso em programas como o Programa Bolsa Família, a redução do orçamento para a saúde, os ataques recorrentes ao sistema de assistência social, etc, que estavam colocando um cenário, não só de empobrecimento econômico de grande parte da nossa população, mas também na redução de acesso à políticas públicas que são fundamentais para constituírem elementos para que as populações e grupos em situação de maior vulnerabilidade tenham um apoio para poder reestruturar sua vida e ter condições dignas de vida. Então a POF vem confirmar isso. Nós retrocedemos muitos anos, nós voltamos a níveis anteriores à 2004 – quando foi feita a primeira EBIA. Ela também dá destaque às profundas desigualdades que nós vivemos, tanto as regionais, como os dados de insegurança alimentar grave – que são muito piores no Norte e no Nordeste. No Brasil como um todo nós temos praticamente dez milhões de pessoas que estão nessa faixa de que a gente chama insegurança alimentar grave, que as pessoas realmente passam por períodos que elas não têm comida. E mais do que isso, essa redução já atinge as crianças. É quando a família como um todo está numa situação de pauperização e de escassez. Durante a pandemia, considerando que essa população também ela sobrevivia, dependia do trabalho informal, do trabalho precarizado, tudo isso constituiu um agravamento da situação dessas famílias. Então, se nós fizéssemos a EBIA agora, infelizmente os dados seriam ainda piores, por conta da redução, da diminuição das oportunidades de geração de renda dessa população, da demora que o governo teve de estruturar ações como o auxílio emergencial, a insuficiência do auxílio emergencial numa situação de precarização como essa e também o problema do aumento dos alimentos. Os dados atuais que fazem a medição da inflação mostram que no aumento da inflação o componente que está pesando é o componente da alimentação. Nas famílias de situação de vulnerabilidade, a alimentação tem um peso importante no orçamento familiar. Então, as famílias que já tinham estratégias de sobrevivência reduzindo a variedade dos alimentos, reduzindo a quantidade, etc , agora elas certamente elas estão passando por uma situação muito pior.

Leomárcio Araújo – Estamos vivendo uma situação no Brasil, um dos piores momentos da história. Quando temos a frente do governo federal uma família que usa o nome de Deus e da própria família para agir na contramão e jogando na lata do lixo conquistas importantes para renda, para educação, para alimentação saudável, inclusive, do povo brasileiro. A exemplo mais recente dos vetos do PL 735 que tira qualquer apoio ao povo do campo para seguir produzindo esse alimento, para se auto alimentar e alimentar também o povo brasileiro. E se em 2018 a gente tinha um quadro de 25, 3% segundo dados do IBGE em famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza. A chegada da Covid 19 agrava por demais a questão da insegurança alimentar, pelo isolamento social, a redução da renda que é uma consequência. Automaticamente o acesso ao alimento também é dificultado. E dificultado mais ainda quando há contraditoriamente um movimento extremamente perverso, onde as pessoas têm a sua renda reduzida e o preço do alimento subindo de modo muito acelerado. Então diríamos, enquanto o alimento sobe, o auxílio desce. E isso, com certeza, agrava a situação. Então não há dúvidas que se espere reações sociais no próximo período. Resposta ao descaso. As pessoas precisam comer, as pessoas precisam se alimentar. E não tem condição de comprar. O que fazer numa situação como essa? De outro lado, são muitas as reações de solidariedade que estão acontecendo em nosso país. Esse valor humano, muito presente em todas as partes do Brasil, tem sido muito expressado com maior força ainda quando juntas em ações organizadas, como tem feito o MPA, o MST, dentre outros movimentos. Então nós temos um contexto onde há uma contradição grande e não se segurança de quais resultados iremos colher. Só temos aqui a perspectiva de que teremos tempos bastante difíceis nesse próximo período

O que são “Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis em nossas cidades”?
Elisabetta Recine – Sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis nas cidades é uma agenda importante, que cada vez fica mais importante. Acho que existia uma falsa impressão primeiro de que cidade campo tinham papeis muito específicos: a cidade consumia, o campo produzia. Hoje se tem inúmeras experiências e a realidade mostra, primeiro que essa fronteira que era tão, pelo menos na mente das pessoas era tão delimitada, ela precisa ser mais suave. E o campo também estava lá distante. Existia o campo distante, e os centros consumidores. Isso tudo implica, por exemplo em gastos importantes de transporte, de armazenamento, etc. Isso tem um impacto ambiental. Provoca no cotidiano um distanciamento importante das pessoas a respeito da origem dos seus alimentos. Isso gera uma fragilidade. A inconsciência das pessoas a respeito da origem dos seus alimentos faz com que elas tenham muito pouca atenção em relação a qualidade desses alimentos, as consequências de produção desses alimentos. Então quanto mais próxima todas as etapas do sistema alimentar tiverem em dialogo, vamos dizer assim, mais o controle sobre as condições, as consequências do sistema alimentar, são controladas pela própria sociedade. Então, se um produto, um alimento, que eu consumo, ele gera, por exemplo, poluição das águas, pauperização dos solos, etc, e eu simplesmente pego esse produto numa prateleira de supermercado, eu não tenho a mínima ideia disso. Essa conformação de processos mais locais, processos mais curtos, o contato das pessoas da cidade com os produtores, os mercados de produtores, as feiras, etc, a medida que isso vai ampliando, causa um diálogo entre essas partes. Então essas partes trocam conhecimento, geram compromissos mútuos, etc. Quem produz olha para quem está comprando, quem está consumindo aquela comida de uma maneira que ela também perceba a importância da qualidade do alimento. E vice-versa, as pessoas que compram querem saber e querem contribuir para aquelas pessoas que estão produzindo que elas tenham condições dignas de trabalho, elas não adoeçam nesse processo, elas sejam remuneradas de maneira justa, etc. Esse é um dos fatores que a agenda das cidades é importante.

Outro aspecto importante são os processos de comercialização. É importante que a cidade como um todo, e os diferentes espaços da cidade, diferentes comunidades, elas tenham acesso a alimentos adequados e saudáveis a preço justo. Então nós precisamos ter uma rede de abastecimento alimentar que seja uma rede capilarizada e que ela ofereça alimentos adequados, saudáveis, com acesso financeiro, etc, a todas as pessoas. Então, que a gente não tenha vazios dentro da cidade aonde ou é praticamente inexistente, ou quando há disponibilidade os preços são altos, ou até a variedade é baixa, etc. Então é importante a questão do abastecimento.

Um outro aspecto é a implantação de políticas públicas. Por exemplo, o Programa de Alimentação Escolar (PNAE), os Restaurantes Populares, os Bancos de Alimentos. Esses programas e esses equipamentos eles precisam seguir a mesma lógica, em termos de qualidade, sustentabilidade, acesso, etc, que eu já mencionei. Então as prefeituras têm papel importante de se organizarem, primeiro atingir e na sequência ampliar aqueles 30% da compra da Agricultura Familiar para o Programa de Alimentação Escolar. Isso demanda que a Prefeitura organize os seus processos administrativos, faça com que as escolas sejam equipadas de maneira adequada para que elas possam preparar refeições com alimentos frescos, in natura, etc. E a mesma coisa para bancos de alimentos e restaurantes populares. Então, essa estratégia que tem uma força muito grande na alimentação escolar, que é fazer com que esse mercado institucional seja um mercado que a agricultura familiar tem acesso, isso precisa acontecer também nos demais equipamentos públicos, não só restaurantes, mas os hospitais, todos os lugares que a alimentação é uma realidade. As cidades também têm um espaço importante de regulação e legislação para que ela fortaleça, promova e dê condições para a ampliação de alimentos com base agroecológica. A cidade pode a partir de legislação e regulamentação de zoneamento, de controle de uso de produtos químicos, etc, incentivar e garantir a ampliação da produção de alimentos saudáveis.

“A saúde das pessoas entra pela boca, pelo que comem”

Leomárcio Araújo – Minha avó dizia, ainda diz hoje, que a saúde das pessoas entra pela boca, pelo que comem. Não há como produzir alimentos saudáveis se não há relação saudável com a terra, com as águas, etc. Isso significa dizer explicitamente que o agronegócio jamais terá capacidade de fazer isso, pois seu foco é o lucro e não as vidas, humana e da natureza. Então, está cada vez mais evidente, e neste contexto de crise revelou muito bem isso, que para superarmos uma série de limitações com ameaças que se agravam a cada dia, se faz urgente reconhecer o papel do campesinato. O papel dos povos do campo, das águas, das florestas que têm prestado um serviço gratuito historicamente de serem cuidadores, guardiões, desses bens essenciais, mas do que isso, de produzir também o alimento saudável. Temos um desafio crescente de construir uma aproximação entre quem produz e quem consome. Uma relação direta entre a roça e o prato, como costumávamos dizer. Temos feito esforços gigantescos aqui, construindo mecanismos para fazer chegar uma produção agroecológica nas grandes cidades. Mas temos dois grandes desafios e o primeiro deles está na logística: trajeto, estoque, etc. E o segundo, fazer chegar nas comunidades e bairros populares. Porque os experimentos e as ações feitas mostram que ainda há um grupo seleto que tem conseguido acessar esses alimentos que têm sido produzidos de modo agroecológico desde o espaço camponês. Pelas experiências que temos feito, a organização social, tanto no campo quanto na cidade e o apoio da política pública se colocam como duas dimensões basilares para que a gente avance nesta prática de construir esses sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis nas cidades.

André Luzzi – Os sistemas alimentares, ou de uma forma mais ampla, os sistemas agroalimentares, eles são compostos de diferentes elementos. Eles envolvem os humanos, o ambiente, os recursos e também os impactos do ambiente econômico-político e das relações sociais. Isso no sentido de produzir alimentos, garantir acesso aos alimentos, transformação desses alimentos, a distribuição, comercialização, a logística. Então é todo o complexo que envolve a garantia da segurança alimentar e nutricional em sistemas curtos. O sistema que hoje a gente vivencia, ele tem um esgotamento. Ele está muito centrado no mercado, na comercialização em grande escala para mercado futuro. Também ele é pautado no uso de agrotóxicos, na concentração das terras, na dificuldade da população participar das decisões políticas e na construção de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional. Um sistema que está exaurido, que leva a exclusão, que leva a extinção de espécies alimentares, que leva também num contraditório à desertificação de áreas, a perda de recursos naturais, o bem comum. Então nós precisamos urgentemente transformar esse sistema alimentar para algo de proximidade. O que a gente chama de circuitos curtos de segurança alimentar e nutricional. Proximidade entre o consumidor e o produtor. Para a gente conhecer a origem dos alimentos, para a gente sustentar a produção de alimentos saudáveis de base orgânica, preferencialmente agroecológica. E aí nos perguntam: mas isso é viável na complexidade que vivemos em nossos países com tantas pessoas, com complexo sistema de acesso aos alimentos? Sim, é viável! Temos tido experiências concretas de políticas como o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos -, as compras públicas para programas públicos sociais, como alimentação escolar, como a destinação de alimentos para doação simultânea, para equipamentos da assistência social. Então só de olhar que há a possibilidade de criar uma dinamização da economia a partir desse circuito virtuoso. A gente percebe que é possível a gente transformar esse sistema que hoje nos vivenciamos, que basicamente, de uma forma paradoxal, está concentrado em 12, 13 grandes corporações, sendo que 70% da alimentação é produzida pela agricultura familiar. E também, nós temos na mão dos supermercados das grandes indústrias de produtos alimentícias, que não se chamam de comida, a força econômica desse mercado. Então a gente precisa deslocar isso. Colocar centralidade da alimentação da agricultura na mão dos produtores, dos consumidores e da dinamização que o Estado pode fazer para os programas de compras públicas.

Como esses “Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis” impactam na nossa forma de conviver, interagir e na nossa qualidade de vida?

Leomárcio Araújo – Sistemas como esses, quando se estabelece uma relação literalmente sistêmica, nos conectamos em rede, em articulação, em movimento. De modo que as relações dos sujeitos envolvidos são parte, com autonomia, com capacidade de construir, de escolher o que eu quero comer na condição de consumidor. O que eu preciso comer e sei de onde vêm este produto, sei para o bolso de quem vai e o retorno econômico com esse meu consumo. Eu sei que com isto estou fortalecendo uma prática de cultivo que cuida, que zela da saúde tanto da terra quanto dos animais e das pessoas que estão ali envolvidas. Especialmente estou cuidando da minha saúde. Então, construir sistemas como esses trazem retorno na economia de quem produz, de quem consome, traz retorno para a saúde, traz retorno para um diálogo entre campo e cidade. E traz também um retorno numa dimensão educativa, por uma perspectiva de futura que se apoie por meio destas relações.

Elisabetta Recine: Acho que já falei um pouco na pergunta anterior. Mas de qualquer maneira, reforçar isso. Há muitos aspectos que geram uma alimentação que não seja saudável e que tenha impacto na saúde. E, normalmente, esses produtos impactam não só na saúde. Mas também na saúde do planeta, na saúde dos trabalhadores envolvidos nessa produção e nesse processamento, etc. Então esse é um aspecto, quer dizer, você pensar que você precisa reorganizar a produção de alimentos numa perspectiva em que a produção, ou todas as etapas do sistema alimentar, elas tenham características que elas gerem saúde interna e externamente e que elas sejam sustentáveis do ponto de vista do uso dos bens naturais, na preservação das sementes, na qualidade dos produtos, etc. Tenha também, por exemplo, cuidados muito importantes em relação ao bem-estar animal. Por exemplo, Covid 19 mostrou que um dos fatores que levaram a origem desta pandemia tem a ver com produção animal intensiva, que avançou sobre ecossistemas, etc. Então, têm esses aspectos da história da qualidade de vida, tal, que é um aspecto que se dissemina para além do alimento em si. Outro aspecto tem a ver com a reconexão e a retomada das pessoas sobre a sua capacidade de decidir sobre a sua alimentação. Quando elas têm informações e conseguem compreender e ter uma análise crítica sobre a origem dos alimentos, o que está disponível para você consumir, quais são os fatores que levam você a fazer determinadas escolhas. Um aspecto importantíssimo é que todo esse sistema praticamente industrial de produção de alimentos, a industrialização do sistema alimentar também levou a uma importante homogeneização dos hábitos e das práticas alimentares. E isso gera uma perda de uma riqueza importantíssima das comunidades, dos povos, que é o seu patrimônio e a sua cultura alimentar, que é uma das dimensões que definem uma comunidade, um povo, com características que são muito específicas, que é como eles se definem como povo. O aspecto alimentar é uma dessas características. Há uma higienização da alimentação, das práticas alimentares, faz numa determinada dimensão que todos nós sejamos iguais. E isso é uma perda profunda da diversidade cultura, das expressões culturais dos povos. Então os sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, eles levam a que a diversidade, tanto do patrimônio genético, dos alimentos, consequentemente dos nutrientes disponíveis, dos tipos de preparação, das formas de comer sejam novamente valorizados. E isso não é um detalhe. Isso está ligado a sustentabilidade dos povos e do planeta.

André Luzzi – Atualmente nós temos é uma retirada das mãos da população, dos produtores e produtoras em pequena escala, do consumidor, a possibilidade decidir sobre os alimentos que produzimos e consumimos. Sim, nós podemos fazer escolhas, elas são diárias, está nas nossas cozinhas, está no nosso quintal, está na nossa horta, está transformação. Mas quando a gente olha desde o financiamento público, a forma como as corporações estão imbrincadas influenciando o Executivo, influenciando o Legislativo, a gente percebe que a população perde a possibilidade de exercer a sua participação na construção das políticas, na fiscalização, no monitoramento das políticas públicas. Então por isso que nós chamamos de Soberania Alimentar, que é a possibilidade dos povos definirem e participarem da construção das políticas de alimentação, agricultura, nutrição dos seus territórios, das suas comunidades, das suas nações. E aí, é um grande espaço de reflexão e de construção a partir do terreno, a partir das nossas relações comunitárias. E aí a gente pode influenciar nas políticas públicas com experiências concretas. Porque nós estamos impactados por esse sistema, em que nós não podemos fazer escolhas autônomas. Elas estão influenciadas pelo baixo valor de compra do salário. Nós estamos falando de uma perda enorme de renda de camadas gigantescas da sociedade. Grupos que são informais, que estão sem uma cobertura de cidadania e que são influenciados cotidianamente pela propaganda, pelo marketing, estimulando a compra de produtos alimentícios – uma palavra que não tem nem proximidade de um alimento saudável, uma comida de verdade – e que cria um imaginário coletivo, um imaginário de pertencimento que ele é muito impactante na vida da população, muito prejudicial para a saúde das pessoas e também para o ambiente. Porque não apenas o agrotóxico, mas essa lógica de produção de alimentos que retira a cobertura florestal de muitas áreas do país, tira a água que seria para consumo humano e para utilização em transformação, produção de diferentes itens, retira das comunidades indígenas, das comunidades tradicionais que tinham esse cuidado desses recursos naturais e vão levando ao esgotamento do nosso meio ambiente, e tirando também a possibilidade das pessoas também exerceram a cultura alimentar. Ou seja, sem memória alimentar, sem práticas alimentares referenciadas nas suas comunidades, um desequilíbrio ecológico enorme, o que nós temos depois são produtos hiperartificiais que induzem e transformam inclusive o nosso paladar, as nossas de manter práticas e dietas alimentares saudáveis.

Por que é importante pautar “Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis em nossas cidades” junto aos partidos políticos, candidatas/os às eleições municipais 2020?
Elisabetta Recine – A importância de pautar sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis nas cidades para os partidos, candidatas e candidatos, já mencionei nas perguntas anteriores, tem a ver que as cidades têm potencial muito grande de incidir sobre essa agenda e muitas vezes elas ficam acobertadas pela dependência de políticas federais. As cidades são responsáveis por implementar o Programa de Alimentação Escolar. Ela tem uma rede de educação, ela tem uma rede de saúde, ela tem uma rede de assistência social. Ela pode incentivar a diversificação e a capilarização dos sistemas de abastecimento alimentar, das estruturas de abastecimento alimentar. Ela também tem a capacidade de controlar ambientes, no sentido de regular que ambientes institucionais como escolas, hospitais, centros de assistência social, enfim, espaços onde a política pública se realiza, sejam ambientes saudáveis. Então, controlar tanto a publicidade quanto a comercialização de alimentos saudáveis. Ela tem a capacidade de fazer com que o ambiente da cidade seja um ambiente saudável. Então, diversificando o abastecimento alimentar, incentivando a produção agroecológica, fazendo um zoneamento territorial para que a produção de alimentos fique perto das pessoas, ampliar mercados; enfim, há um conjunto de iniciativas em que a sustentabilidade do sistema e a sua característica de promoção a saúde sejam retomadas, isso acontece no nível local. Então, prefeitas e prefeitos, vereadoras e vereadores precisam identificar essa agenda como uma agenda municipal. E agir em toda essa potencialidade para criar legislação, programas, ações, etc, para viabilizar isso no nível local.

André Luzzi – Aqui nós temos dois elementos muito importantes. A Conferência Popular por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional sensibilizando o conjunto da sociedade sobre a importância de sistemas alimentares, ou agroalimentares, saudáveis e sustentáveis. O olhar do território para a construção dessas políticas. Como dizia o Betinho, mais uma vez, um grande mobilizador da Ação da Cidadania na década de 90, a política acontece no nível do município e é o elo mais próximo do cidadão, da cidadã. Então é onde a comunidade pode diretamente disputar, fazer uma discussão na sua comunidade sobre o combate à fome, sobre a realização do Direito Humano à Alimentação (DHANA). Por outro lado, também estamos vivendo um período também muito interessante, o segundo aspecto, que é em nível internacional a construção de diretrizes – está bem nesse momento a negociação no Comitê de Segurança Alimentar da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) – das diretrizes para sistemas alimentares e nutrição. Daí a gente vê que o local e o internacional, eles se articulam. Eles trazem elementos super necessários para no âmbito dos organismos internacionais discutirmos o referencial, uma recomendação política para os estados membros da Onu, assim como nós temos a aprender com as iniciativas locais para garantir sistemas alimentares mais equânimes, porque o que nós estamos vivendo hoje é uma desigualdade no acesso aos alimentos. A gente vê uma desigualdade na possibilidade de renda para a população poder ter acesso aos alimentos. E também ações no campo da saúde e da educação alimentar e nutricional para fazer as suas escolhas. E, um componente que nós não podemos esquecer, neste momento, que é a ameaça das corporações, das indústrias ao Guia Alimentar da População Brasileira. O Brasil conseguiu construir um guia que é uma grande inspiração para outros países, grande inspiração inclusive para a sociedade civil de outros países que desejam ter nas suas localidades, nos seus territórios, um instrumento que articula suas políticas, coordena a forma que deve ser assegurada a alimentação para a população nos diferentes ciclos de vida e também é um orientador para as políticas nos diferentes ministérios, secretárias e esferas de governo. O guia alimentar da população brasileira deve ser preservado como uma conquista civilizatória para as presentes e futuras gerações.

(Clique aqui para baixar o guia guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed )

Leomárcio Araújo – Fundamental e muito apropriado que este período de eleição trate este tema a altura, pois para além dos dados mostrarem, as pessoas também sentem os impactos da má alimentação na saúde do povo. Isso significa que os estados e municípios têm tido um gasto do recurso público para cuidar das doenças. E que a boa alimentação sem dúvida evitaria em grande medida. Por isso, pautar dos candidatos e candidatas programas e ações que fortaleçam a agricultura familiar e camponesa em seus munícipios, a criação de equipamentos públicos que oportunizem o acesso desses alimentos ao povo da cidade, como as feiras agroecológicas, as feiras de alimentos, os mercados populares de alimento, significa que ao invés de gastar nas doenças, está se investindo na saúde, na educação alimentar, na geração de novos circuitos de renda no nível local. Então esse tema é fundamental. E é super importante que os candidatos e candidatas possam estar atentos e abertos ao diálogo com as organizações e esse conjunto que faz o esforço de propor.

Que repercussões espera com a carta “Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis em nossas cidades” aos candidatxs às eleições municipais?
Andre Luzzi – Acho que aqui eu vou destoar um pouco das grandes falas a respeito dessa pergunta. Eu não vou entrar neste debate no momento, sobre sistemas alimentares e as dietas saudáveis. Eu quero dizer da importância do poder popular. Nós estamos vivendo uma ameaça enorme à democracia. Nós estamos vivendo uma ameaça enorme às liberdades das pessoas se organizarem, das pessoas poderem se expressar, das pessoas poderem criar movimentos críticos, analíticos, de poder fazer ciência, veja só. Então esse momento, ele é no meu ponto de vista, a possibilidade maior de celebrarmos a democracia. Antigamente todas as matérias, quando chegávamos nos anos de eleições, elas falavam, os papéis de santinhos nas ruas, as bandeirolas. Os jornalistas sempre começavam os programas que as eleições eram a festa da democracia. É, é uma das festas. Nós temos tantos ambientes que nós temos que exercer a democracia: os conselhos, as conferências, as audiências públicas, as incidências no parlamento, os ambientes de controle social do Executivo, a construção de Programas e Metas, então, esse é um momento para a gente criar uma grande campanha, uma grande comoção nacional para a ocupação do espaço da política. Política é um espaço necessário das nossas vidas. É um espaço onde a gente pode criar encontros. Onde a gente pode compartilhar palavra. E nós precisamos resgatar isso nesse momento das eleições 2020. Para além das nossas pautas das lutas e bandeiras que temos, nós temos que, de novo, colocar na centralidade do debate o quanto é necessário uma estabilidade democrática para podermos assegurar direitos, transferir renda, criar políticas públicas que amplie a cobertura de cidadania para todo o conjunto da população, notadamente os grupos mais vulneráveis que estão sim sentindo na pele toda a carga que é essa política neoliberal e autoritária do governo golpista do Temer e agora do autoritário Bolsonaro.

Leomárcio Araújo – Acreditamos que mesmo para os candidatos que não tenham ainda tido a oportunidade de pensar sobre o tema, que terão abertura e se não agarrar como sua pauta principal, mas o mínimo ter o respeito e não se opor a construção de ações que qualifiquem e gerem resultados tão importantes para já, mas também para o futuro das nossas novas gerações. Os candidatos estão tendo a oportunidade de beber de uma fonte comprometida e muito engajada na construção da soberania alimentar desde o seu munícipio.

Elisabetta Recine – Primeiro que ela seja amplamente conhecida por candidatas e candidatos. E que eles identifiquem que eles têm algo a fazer, que eles precisam e devem fazer algo em relação a essa agenda. Então, quando um secretário de saúde, um prefeito, uma prefeita identifica o seu novo secretário ou secretária de saúde, ele vai definir por exemplo, pelo fortalecimento ou não da atenção primária à saúde, que tipo de ações vão acontecer nos serviços de saúde, etc. Se ele identificar, se ele souber que a questão da alimentação saudável é importante, ele certamente tem muito mais chance de definir a valorização dos profissionais que trabalham com alimentação e nutrição, identificar que nas diferentes ações do cuidado à saúde a alimentação precisa ser tema que se inicia, por exemplo, desde a gestação para orientação das mulheres que estão gestantes, promoção do aleitamento materno ou da alimentação complementar das crianças à ações de prevenção e controle do excesso de peso. Enfim, os candidatos e as candidatas, seja para o Executivo, seja para o Legislativo municipal, eles precisam conhecer as diferentes dimensões dessa agenda, o papel e a importância que esse tema tem para a saúde, para o bem viver, para a qualidade de vida dos moradores da cidade e tudo o que eles podem fazer em relação a isso, para que eles se comprometam, não só durante as eleições, mas principalmente, aqueles que forem eleitos e eleitas possam implementar isso. E também há uma expectativa que essa carta seja conhecida, não só por candidatos e candidatas, mas por eleitores e eleitores, para que quando essas pessoas forem analisar as propostas dessas candidatas e candidatos, eles possam ter como elemento de decisão do seu voto aqueles que falam desses temas.

Que sugestões poderia oferecer aos candidatxs às eleições municipais?
Leomárcio Araújo – É importante sugerir para os companheiros e companheiras, para os candidatos e candidatas que se colocaram nessa disputa eleitoral como um espaço que é importante, que tem um fundamental na formulação, mas também na execução das políticas, que percebam qual perspectiva de futuro suas ações estão ou estarão fortalecendo. E aproveitar e convidar/sugerir que olhem para esse público camponês, para esse público na sua diversidade está desde seus territórios cuidando da natureza, cuidando da terra, mas produzindo esse alimento saudável. Cuidando, por consequência, da saúde também do nosso planeta e do nosso povo. Fortalecer esses modos de vida, isso é fundamental. E é também fundamental fortalecer espaços que oportunizem o acesso a esse alimento pela população urbana que se encontra em condição de vulnerabilidade, muitas vezes do não acesso aos alimentos. Então é fundamental que vocês consigam propor, agir, acolher essas ações sugeridas por essa carta que propõe a construção dos sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis.

Elisabetta Recine – A pergunta foi respondida nas anteriores.

André Luzzi – De uma forma coerente dos aspectos datados anteriormente nós temos que pensar formas de já de experimentar já uma reforma política que traga já no seu bojo o poder popular. Espaços coletivos. No caso da vereança, a possibilidade de envolver diferentes segmentos, incentivar as eleições de populações negras, LGBTQI+, povos originários, pessoas com deficiência. Criarmos uma grande possibilidade, uma onda de que todos os segmentos sejam representados no parlamento. Seja a cara do povo. Temos que fazer radicalização da democracia para que o povo esteja representado efetivamente nos parlamentos. E também de uma forma dinâmica, criativa, uma forma que possa ter esse espírito coletivo, colaborativo presente nas Câmaras. No campo do Executivo, que ele seja sensível à essa construção da participação social, que valorize muito a construção de programas de metas com a ampla participação social, que dê folego, que dê voz aos conselhos, que tenham consultas públicas, a ampla participação da sociedade nas conferências é um momento vibrante que a sociedade traz contribuições, propostas, demandas. Nesse ponto até parece também contraditório, porque a gente da sociedade civil está apresentando um conjunto de cartas políticas com recomendações, propostas, mas a gente acredita que nesse momento elas são uma grande convocatória, um grande chamamento. Mas de fato, a construção acontecerá no terreno, acontecerá nos bairros, nas periferias, acontecerá no campo desses municípios. Acontecerá nas áreas de florestas e nos rios, águas. Porque a gente de uma política pública que a centralidade seja a vida. E aí, a sociedade tem que participar. A gente tem que se ver como parte do ambiente e também assegurar uma política pública para os animais, para as florestas, para as águas. A gente está vendo o ataque a partir desses incêndios, a partir da derrubada das matas. E a gente tem que agora ter uma ampla voz dos diferentes atores e atrizes da sociedade. Então, mais uma vez como dizia Betinho, a alimentação, o combate à fome tem que estar em todos os palanques (nesse caso palanques virtuais), tem que estar em todos os programas de governos. E a alma de fome é política. E está no combate à fome o germe da mudança.

Quem é quem:
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ANDRÉ LUZZI

Formado em relações internacionais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), é mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Concluiu neste ano o doutorado em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP, membro do coletivo Banquetaço, Fórum Paulista de Segurança Alimentar, Comissão Organizadora da Conferência Popular de SSAN

foto: Ricardo Rocha/CMSP

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ELISABETTA RECINE

Docente Departamento Nutrição, Integrante do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional – Universidade de Brasília, Núcleo Gestor Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, Núcleo Coordenador do Grupo de Trabalho de Alimentação e Nutrição da Abrasco, Comissão Organizadora da Conferência Popular de SSAN

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LEOMARCIO ARAÚJO

Camponês, assentado no PA Pajeú, município de Ponto Novo/BA, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), membro da Coordenação Nacional do MPA e coordenador do Coletivo Nacional de Soberania Alimentar. Licenciado em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com especialização em Processos Históricos e Inovações Tecnológicas no Semiárido pela UFPB/Instituto Nacional do Semiárido (INSA)/PRONERA. Mestrando em Educação do Campo pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).

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