A rua caminha se tu te moves
(grafite no muro)
Tudo começou a piorar depois da implantação do transporte integrado. Antes, já não era bom e havia lutas. Mas, depois que entrou em vigor a des-integração, a vida das gentes virou um caos em Florianópolis. Um trajeto de 40 minutos – como o que se fazia para chegar ao Campeche – passou a ser feito em duas horas ou mais. Intermináveis esperas nos terminais, filas gigantescas, desconforto, irritação. Para chegar a alguns bairros, o pobre usuário precisa pegar até três ônibus. Isso sem contar as altas tarifas que inviabilizam a vida de boa parte das pessoas. Se a criatura não tem o cartão de usuário, paga 2,40 por uma passagem, uma das mais altas tarifas do país. Não são poucos os casos das pessoas que precisam deixar os estudos por que não têm dinheiro para bancar o alto custo do transporte.
Tudo isso foi pano de fundo para grandes revoltas populares, conhecidas na ilha como “Revolta da Catraca”. Tão logo começou a funcionar o sistema desintegrado, o povo já se rebelou. Foi às ruas, construiu grandes atos e teve de enfrentar a polícia. Na primeira tentativa de aumento de passagem, com o sistema ineficiente, ainda no governo de Ângela Amin, as gentes explodiram. Tudo isso aliado ao trabalho dos estudantes que lutavam também pelo passe livre. Na primeira revolta, o povo conseguiu barrar o aumento. Na segunda, não. Mas, ainda assim, ficou a chaga aberta e a certeza de que o transporte coletivo é ruim, ineficiente e caro e de que o povo da cidade não tem o direito de ir e vir garantido.
Por conta disso, o Movimento Passe Livre, junto com Sintufsc, Apufsc e estudantes da UFSC em luta, promoveu um seminário para discutir a mobilidade urbana. Aproveitando um momento de luta na universidade, decidiu-se aprofundar a questão, entendendo que as pessoas de uma cidade têm o direito de se moverem nela e mais, que o transporte coletivo é um serviço público de primeira necessidade, tal qual a distribuição de água e luz, ou a coleta do lixo. Assim, vieram os trabalhadores do transporte, os movimentos sociais, os pesquisadores da universidade, as pessoas que tem direitos especiais e até mesmo os órgãos públicos que cuidam desta questão, como a Secretaria dos Transportes e o Instituto de Planejamento Urbano, IPUF.
A Tarifa Zero – uma proposta que muda tudo
Quem participou do seminário de três dias (11,12 e 13 de julho) conseguiu compreender que mobilidade urbana é muito mais do que deslocamento para o trabalho. É o direito que as gentes têm de viver a cidade, passear, ter lazer, criar cultura, visitar pessoas, circular com liberdade para cada lugar. Também percebeu que o sistema capitalista é quem joga os empobrecidos para cada vez mais longe dos seus lugares de trabalho ou diversão. Sem condição de alugar ou comprar moradia nos centros onde a vida do trabalho e da cultura pulsa, o povo vai fincando raízes cada vem mais nas periferias. Então, são os empobrecidos os que mais necessitam do transporte público e os que acabam pagando mais caro por isso.
É por ter clareza disso que o arquiteto paulista Lúcio Gregori – ex-secretário de transportes do governo de Luiza Erundina – vem trabalhando desde há anos com a idéia de tarifa zero para o transporte, o que na prática significa que, com ela, os usuários não precisariam mais pagar para andar de ônibus.
Essa idéia pode parecer espantosa num primeiro momento. Mas ele dá exemplos que fazem a gente pensar. Quem consegue se imaginar pagando, no ato, para tomar um copo de água na sua casa? Quem paga o seu consumo diário de luz, a cada dia, para algum funcionário da prefeitura? Quem tem o seu lixo diário pesado e cobrado pelo trabalhador que o recolhe? Ninguém! O que existe é uma taxa mensal que a pessoa paga depois do consumo. E mais. Para os mais empobrecidos existem tarifas mais baixas, subsidiadas. Pois bem, sendo o transporte coletivo um serviço público essencial, por que não pode ser subsidiado? Se, no mais das vezes, a maioria usa o ônibus justamente para ir trabalhar e fazer girar a roda do capital, por que não são os patrões que bancam esse trajeto? Por que não pode a administração pública subsidiar o transporte e garantir mobilidade a todos os habitantes da cidade?
“A idéia de tarifa zero muda tudo”, ensina Lúcio, entusiasmado. Porque se a população entende seu conceito – de serviço público essencial – vai perceber que aqueles que entopem as cidades com seus carros, geralmente carregando apenas a si mesmos, são os que precisam bancar a proposta. E, ao fazerem isso, também vão mudar de hábitos e ajudar a mudar a cidade. Menos carros nas ruas, menos poluição, menos trânsito, mais mobilidade para todos. “As autoridades dizem que isso só pode acontecer se começar em nível federal. Não é verdade. O município não pode criar taxas novas, mas pode aumentar as que já existem. Os empresários podem ter seus impostos aumentados, os bancos podem pagar mais impostos. São os que mais lucram. O que precisa é uma decisão política. É certo que isso vai desagradar a muita gente, mas aqueles que mais ganham podem muito bem bancar esse processo”.
Na grande mesa que juntou todas as forças da cidade ninguém se colocou contra a idéia de tarifa zero, nem mesmo o Secretário dos Transportes, Norberto Stroich. Mas, é claro, não faltaram desculpas esfarrapadas sobre as dificuldades de se fazer isso. “Precisamos criar uma política de geração de um fundo para bancar a tarifa zero, mas isso tem de ser resolvido em nível de país. Agora o melhor talvez fosse desonerar os empresários dos transportes de impostos. Quem sabe assim as tarifas ficam mais baratas”, defendeu Norberto, deixando claro que a idéia de tarifa zero, para ele, é uma utopia irrealizável. Melhor então defender os interesses empresariais. E o povo? Bom…o povo!…
Já os movimentos sociais, pesquisadores da universidade e portadores de necessidades especiais se mostraram completamente favoráveis à idéia. “Há que penalizar o automóvel, declarar guerra a eles”, insistiu Ricardo Freitas. No que foi acompanhado por Ildo Rosa, do Ipuf, que também defendeu a idéia das ciclovias e do transporte marítimo. Modesto Azevedo, da Ufeco, lembrou que o ônibus com tarifa zero seria a socialização da riqueza e Marcelo Pomar, do Movimento Passe Livre, insistiu na proposta de taxar os mais ricos.
O certo é que ao final de três dias de debates e discussões, todos os que participaram saíram com uma certeza. A tarifa zero no transporte público muda tudo mesmo. Ao garantir mobilidade e acesso à vida da cidade, ele abre o mundo para as pessoas. Ampliando os horizontes, as gentes passam a conhecer mais. Conhecendo, pensam. E, pensando sobre o sistema no qual estão inseridas, podem querer mudá-lo. O desejo de mudança pode trazer a revolução. Então, a vida assume toda a sua beleza e plenitude. Uma cidade de sujeitos pensantes e viventes plenos. Povo que se move. Não é à toa que empresários e toda a elite citadina têm medo. Povo que se move é perigoso demais!
Leia aqui a carta de Convergência tirada durante o encontro. A luta está apenas começando!
Carta de convergências do Seminário de Mobilidade Urbana.
Realizado nos dias 11, 12 e 13 de julho de 2007, nas dependências do auditório do Centro de Convivência da Universidade Federal de Santa Catarina, e organizado pelo Movimento Passe Livre em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores da UFSC (SINTUFSC), com a Associação dos Professores da universidade (APUFSC) e estudantes da UFSC em luta, o seminário inscreveu 103 pessoas e reuniu, num total de sete atividades dispostas ao longo dos três dias, bem mais de uma centena de interessadas/os em debater a mobilidade urbana e construir um outro projeto alternativo ao que hora vigora.
Pensado somente sobre a ótica dos números ele já seria um seminário vitorioso. Mas, muito mais importante do que os números é a qualidade dos debates ocorridos ao longo das atividades. Esses debates ajudaram a consolidar e a dar substância à idéia de que é absolutamente possível e, sobretudo, necessária e urgente a construção de um projeto de mobilidade urbana que seja pautado nos interesses sociais e coletivos, na defesa do meio ambiente e na garantia dos direitos elementares de acesso livre aos espaços da cidade, invertendo a matriz desigual, segregadora e periférica do modelo atual de urbanização, sem as barreiras do lucro que impedem o gozo pleno dos nossos direitos.
Como fruto desses debates, apresentamos aqui algumas das propostas convergentes que não representa a complexidade e a profundidade alcançada, mas que sintetiza um conjunto de bandeiras táticas e estratégicas que apontam para esse novo projeto.
I – Tarifa Zero nos transportes coletivos.
O transporte coletivo é um direito elementar, que entre outras coisas deveria garantir o acesso aos demais direitos elementares, como a saúde e a educação. Deveria, mas desgraçadamente não garante, porque o transporte coletivo é uma mercadoria, um grande negócio, que tem servido para enriquecer pequenos grupos empresariais, e reproduzir seus interesses políticos no nível da municipalidade.
Essa aberração social produziu números absolutamente intoleráveis, como os que demonstram que 37 milhões de brasileiros/as estão excluídos do direito de locomoção por conta das tarifas do transporte.
Esta claro para nós que os transportes coletivos urbanos são um serviço público essencial, e que nessa condição devem caminhar rumo à gratuidade total e universal, subsidiada pelo poder público, e não como subsídio aos empresários do transporte, mas como subsídio aos usuários dos transportes, a partir da inversão da lógica de pagamento dos seus custos. Que paguem pelo transporte coletivo, não os que o utilizam pela mais absoluta necessidade, mas justamente aqueles que se beneficiam do deslocamento diário das forças de trabalho, ou seja, os donos dos grandes meios de produção e comercialização das mercadorias.
II – Municipalização dos transportes.
Um passo fundamental e estratégico no sentido da promoção de um projeto de mobilidade urbana pautado nos interesses sociais e coletivos é a municipalização dos transportes. Ou seja, que o poder público assuma para si, retirando do âmbito privado dos empresários, o planejamento e a execução dos transportes coletivos. Não é possível permitir que os itinerários, os custos e os preços, a renovação das frotas, a adaptabilidade dos ônibus para pessoas com deficiência, enfim, que isso seja gerido pelos empresários, que operam, por razões óbvias, de acordo com os interesses de seus lucros.
III – Multimodalidade dos transportes.
É necessário quebrar o monopólio dos transportes rodoviários e trabalhar na lógica da complementação entre as várias modalidades de transporte. Os transportes marítimos e as ciclovias são exemplos concretos e viáveis. No caso das ciclovias, inclusive, já há legislação que prevê a necessidade da criação de bicicletários em espaços públicos, e nesse sentido é tarefa nossa pressionar para a construção de bicicletários em terminais urbanos, bem como a ampliação das ciclovias.
IV – Combate ao transporte individual.
A consolidação da hegemonia ideológica liberal, levada ao seu extremo nos dias atuais, combinada com o crescimento demográfico e a expansão continua e permanente da urbanização, está levando as cidades e a mobilidade urbana ao colapso, pela falta de um sistema integrado de mobilidade que inclua todas a modalidades. A procura permanente pelas saídas individuais, sintetizada na lógica do carro e da moto, é inviável do ponto de vista social, ambiental e espacial. É absolutamente necessária a difusão de uma cultura contrária à lógica do carro. Mas mais do que isso, é fundamental para combater essa lógica a taxação adequada do transporte individual, e a transformação do transporte coletivo num transporte atraente e eficiente, funcionando à Tarifa Zero.
V – Acessibilidade
Esse novo projeto de mobilidade tem que dar visibilidade e garantir a acessibilidade das pessoas com direitos especiais. Não são as pessoas que são deficientes, mas a cidade que não consegue incluí-las adequadamente. Nesse sentido é preciso pensar a cidade e os meios de transporte com desenho universal, uma cidade sem barreiras, que garanta o livre acesso a todas as pessoas.
VI – Difundir uma cultura e o papel da mídia.
Esse debate precisa ter voz para alcançar o público e explicar qual a relevância do movimento e das manifestações. Ocupar o espaço da grande mídia, abrindo brechas para inserir nossas informações dentro dos meios de massa, sem no entanto criar ilusões no seu conteúdo de classe. Construir uma ferramenta para que as pessoas que protagonizem as manifestações em favor da reorganização urbana expliquem seus pontos de vista, e o consigam levar para a população. Utilizar o site do centro de mídia independente e do sarcástico e criar outros espaços, levar as noticias para as ruas. Jornais poste, informativos gratuitos, rádios comunitárias, mostras populares de vídeos são formas de levar para as comunidades locais o debate. A construção de uma forma de mídia popular para contrapor a ideologia vigente, para que possamos construir a nossa própria história.
VII – Mobilização Popular.
A construção de um projeto de mobilidade urbana apenas no campo da política institucional é insuficiente, prova disso é a forma como os direitos à educação, à saúde e cultura não são garantidos pelo poder público como deveriam. É na necessidade da cidade ser pensada e construída por aqueles que nela vivem que está o papel dos movimentos sociais. É fundamental ressaltar que apenas uma forte iniciativa no campo institucional é incapaz de dar conta das batalhas duríssimas que esse conjunto de propostas suscita. O exemplo de São Paulo, na gestão Luiza Erundina, comprova isso. Apesar de todo o esforço institucional, do poder executivo, a falta de um debate aprofundado, necessário para a mobilização popular em torno da luta mostrou que não havia força necessária para a queda de braço política. Cabe a nós equilibrar essa balança, dando enfoque ao que é primordial, ou seja, aquilo sem a qual é impossível vencer: a organização da luta popular.