Começo por agradecer imensamente ao convite honroso da Tatiana, que me traz a oportunidade de expor meu pensamento por meio de uma coluna na Ciranda.
Penso ser importante, ao me apresentar aos leitores da Ciranda, citar alguns detalhes autobiográficos que ilustram o que provavelmente será uma linha constante, e, creio eu, muito polêmica.
Pretendo usar esta coluna para argumentar que a superação da atual tragédia brasileira só será possível através do desenvolvimento de formas de atuação política que possam ser praticadas no cotidiano pela base da sociedade, independentemente das preferências individuais por um ou outro grande líder, e jogando para segundo plano na atenção popular o eleitoralismo, e as disputas entre partidos e correntes partidárias tendo em vista candidaturas para as eleições.
Sem desmerecer a importância do voto e das eleições, considero extremamente anacrônica e dogmática a visão de democracia que privilegia apenas estes instrumentos de exercício democrático.
Atuei muito em campanhas eleitorais ao longo de quarenta anos e, mais tarde, em política não-partidária.
Acho importante citar dois episódios autobiográficos para ilustrar meu entendimento sobre a contradição entre lealdades partidárias e políticas e os imperativos das causas maiores.
Em 1985, estando na corrente do Partidão (então clandestino) que tinha permanecido no PMDB após uma parte ter ido para o PT, fui um dos coordenadores do Comitê de Profissionais Liberais da campanha para eleger Fernando Henrique à Prefeitura de São Paulo. Para derrotar a direita, representada por Jânio Quadros, as pesquisas mostravam o quanto seria importante unir forças com o PT, cujo candidato era o Eduardo Suplicy. Fiz parte da comitiva que foi à sua casa para propor-lhe uma negociação com a direção da campanha de FHC, para retirar a sua candidatura e apoiar o voto em FHC.
Cara de pau né? Ou quixotismo? Tenho a convicção de que a vitória de Jânio, evitável naquele momento, fortaleceu a hegemonia dos setores conservadores comandados pelo presidente Sarney, e que um gesto de generosidade do PT naquele momento teria tido impactos profundos sobre a composição do governo Sarney e sobre a Constituição de 1988.
Abandonei a militância partidária após o esvaziamento do espaço progressista no PMDB, que se deu com a vitória do quercismo e com a evasão de grandes quadros, como Mário Covas, para o PSDB, que já se esboçava no apoio de parte do PMDB (a ala de FHC) à candidatura conservadora de Antonio Ermírio contra Quércia, em 1986. Nunca me filiei a outro partido, embora de certa forma tenha me tornado petista, durante a gestão de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo. A partir daí participei em todas as campanhas petistas. Fui dos milhões que choraram de alegria com a vitória do Lula em 2002.
Mas tornei-me forte crítico de Lula – e mais tarde, da sua opção de inclusão pelo consumo – ao observar o sectarismo que fez o seu governo e o PT perderem lideranças e aliados que não poderiam ter perdido: o caso que mais me chocou foi a defenestração de Luiz Eduardo Soares, secretário nacional de Segurança Pública. Depois, entre muitos outros, Marina Silva, Cristovam Buarque, Roberto Freire (após tentativa lulista de implodir o PPS com Ciro Gomes), Marta Suplicy. Em 2010, já não votei PT/Dilma: votei Marina, da qual viria a me afastar completamente a partir de sua conversa mole num Roda Viva na questão esquerda-direita.
Não me julguem antipetista. Muito ao contrário. Mas o que marcou essa trajetória foi a repulsa ao divisionismo do campo progressista, em grande parte suscitado pelo hegemonismo do PT e de suas correntes dominantes. Que, entre outras coisas, pelas alianças que fizeram no Rio, abriram caminho para Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, Marcelo Crivella. Com todas essas críticas e reservas, vejo em Lula um papel histórico grandioso pela frente, e um patrimônio que precisamos cultivar.
O segundo episódio: entusiasta na campanha de Erundina para prefeita em 2016, fui herético ao propor, quando ainda havia tempo, com uma semana pela frente de programa eleitoral na TV, que Erundina fizesse o que havíamos proposto a Suplicy em 1985. Tenho convicção de que Dória teria sido derrotado pelo apoio na TV da Erundina a Haddad naquela última semana. E, se Dória fosse posto para fora do jogo, hoje não haveria Dória. E, sem Dória para governador em 2018, Bolsonaro teria perdido uma força fundamental. E a História seria outra.
Por que achei importante contar esses episódios neste artigo inaugural?
Porque a ideia da coluna é chamar atenção para os limites desse construto social da modernidade que são os partidos políticos, e para a necessidade (e oportunidades) de construtos adicionais que reforcem uma arquitetura para uma democracia efetiva que podemos conquistar no século 21. Aqui não promoveremos as falas e ações dos grandes personagens. Quanto aos personagens monstruosos, não terão uma palavra sequer. Sobre o fascismo na sociedade, sim, e principalmente sobre formas de reconquistarmos corações e mentes para a reflexão coletiva que possa vacinar e afastar as pessoas do ódio e da mentira.
E o caminho que proporemos é o das causas sociais vividas no cotidiano pelas pessoas, nos seus grupos sociais e nos seus territórios: o desenvolvimento da cidadania nas lutas por saúde, educação, teto, justiça, alimento; e no encadeamento com as forças progressistas que temos no Legislativo, nas universidades, no sistema de justiça etc. Uma cidadania que escape aos debates teóricos e doutrinários, e que seja capaz de unir pessoas em todos os estratos sociais, neutralizando a polarização artificialmente alimentada pela mídia comercial, entre “coxinhas” e “petralhas”, ou suas versões mais recentes de Fla-Flu.
Sem jamais desvalorizar a importância do sistema partidário e dos mecanismos da democracia convencional. Pelo contrário: buscando promover conexões fortes com nossos valorosos parlamentares progressistas no Legislativo, com nossos valorosos prefeitos e governadores, mas sem enveredar pelos debates fratricidas que decorrem do próprio DNA da instituição partido, e que muitas vezes até impedem que grandes políticos, como Suplicy e Erundina nas histórias que citei acima, possam ter a liberdade de fazerem escolhas que talvez gostariam.
Declaro acreditar em luzes no final do túnel, em possibilidades de resistência e vitória contra o fascismo e o neoliberalismo em momentos estratégicos, e/ou em políticas públicas em que nossos parlamentares, prefeitos e governadores possam se unir para sacramentar (e acredito especialmente no Consórcio Nordeste), em caminhos numa diplomacia internacional do nosso campo progressista para cooperação na Agenda 2030 apesar da barbárie do Governo Federal. Declaro acreditar especialmente na educação popular para desenvolvimento de uma consciência social norteada pelo bem comum e pelo repúdio aos venenos da ideologia meritocrática e fragilizadora das conexões sociais.
É nesses campos da política que pretendo me aventurar nessa coluna, provocando a reflexão sobre o tanto que há a fazer nos próximos anos, se, tomando emprestadas palavras de Paulo Freire, nos concentrarmos mais em anunciar do que em apenas denunciar.
Imagem: Paulo Pinto / Fotos Públicas