Arlene Elizabeth Clemesha*
O problema dos refugiados palestinos, cuja natureza é eminentemente política, deteriorou-se em uma das mais agudas tragédias humanas do mundo contemporâneo. Sua origem remete à partilha do país pela ONU em 1947 e a subseqüente expulsão de aproximadamente 800.000 árabes palestinos do território palestino onde foi criado o Estado de Israel. Mas não parou por aí. Em 1967, 240.000 palestinos se viram forçados a deixar suas casas na Margem Ocidental e Faixa de Gaza, ocupadas por Israel na Guerra de Junho desse ano. Nesse momento, alguns se tornaram refugiados pela segunda vez e passaram a ser denominados, junto com seus descendentes, de “deslocados de 1967”.
O reconhecimento internacional de que uma injustiça fora cometida contra o povo palestino veio logo em 11 de dezembro de 1948, data em que a Assembléia Geral da ONU aprovou a resolução 194 determinando o direito de retorno dos palestinos e a restituição das propriedades perdidas no momento de sua fuga. Desde então, a resolução ONU/AG 194 foi reiterada pelo menos 130 vezes. Em 1974, a resolução ONU/AG 3236 estabeleceria os direitos inalienáveis do povo palestino, incluindo o direito à autodeterminação nacional sem interferência externa, e, no parágrafo 2, “o direito inalienável dos palestinos retornarem a suas casas e propriedades de onde foram desenraizados e deslocados”. De fato, na lei internacional chega a ser irrelevante a questão de como ou porque os palestinos deixaram suas terras para se tornarem refugiados. O que importa nesse caso é que “todos têm o direito de deixar qualquer país, incluindo o seu próprio, e retornar ao seu país” (Artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948). Em suma, o direito de retorno não é privilégio, com o qual se poderia negociar, ou cuja implementação pudesse significar uma concessão por uma das partes.
Mas nem os refugiados de 1948 nem os deslocados de 1967 jamais tiveram permissão do Estado de Israel para voltar a suas casas em Israel ou nos denominados territórios palestinos ocupados (TPO) de Cisjordânia e Faixa de Gaza. Desde 1967 até os dias de hoje, outros 400.000 palestinos foram desenraizados dos TPO devido a políticas israelenses, incluindo a demolição de casas, construção de assentamentos, do Muro, bem como a revogação do direito de moradia e a deportação de palestinos. Com a ocupação e anexação ilegal de Jerusalém oriental pelo Estado de Israel em 1967, seus habitantes palestinos, há séculos enraizados na cidade santa, passaram da noite para o dia a terem o status de “moradores temporários”. A limpeza étnica, como parte da política de judaização da cidade, já atingiu 60.000 palestinos, forçados a buscar moradia em outras partes da Cisjordânia depois de terem suas casas confiscadas, demolidas, ou permissões de moradia, revogadas. O número exato das denominadas “Pessoas Internamente Deslocadas” (PID), como são chamados os desenraizados de dentro das fronteiras dos territórios ocupados, é desconhecido devido à ausência de um sistema centralizado de registros, mas calcula-se que sejam ao todo cerca de 450.000.
Hoje, os refugiados Palestinos de 1948 e seus descendentes são estimados em aproximadamente 8 milhões de pessoas, constituindo a maior e mais antiga população de refugiados do planeta. Dentre eles incluem-se: 4.5 milhões de refugiados de 1948 registrados na UNRWA (2007); 1.5 milhão de refugiados de 1948 que não estão registrados na UNRWA seja porque não precisaram de assistência quando se tornaram refugiados, não conheciam a agência ou não quiseram depender dela, como no caso da população de Bersheeba; 950.000 pessoas deslocadas em 1967; 350.000 internamente deslocados em Israel.
Após 60 anos de opressão e guerras, 88% dos palestinos ainda vivem na Palestina histórica ou dentro de um raio de 150 km ao seu redor. Apenas 6% da população palestina vive em outros países árabes mais distantes e 6% em países ao redor do mundo. As maiores comunidades de refugiados vivem na Jordânia (2.359.000), Síria (465.000) e Líbano (438.000). Cerca de 1.825.000 refugiados vivem dentro dos TPO, enquanto cerca de mais 335.000 internamente deslocados vivem dentro de Israel, privados das casas e terras que suas famílias possuíam antes de 1948. O restante vive espalhado ao redor do mundo, nos países árabes principalmente, mas também na Europa, EUA, Canadá e América Latina. Mais de 1.3 milhão de refugiados palestinos vive em 59 campos de refugiados administrados pela ONU nos TPO, Jordânia, Síria, Líbano, e em 12 campos não reconhecidos: 5 na Margem Ocidental ocupada, 3 na Jordânia e 4 na Síria, segundo as estatísticas da OLP de 2008 (veja http//www.nad-plo.org).
Os refugiados deixaram para trás casas, negócios vários, contas em bancos, igrejas e mesquitas, cemitérios, para não mencionar as fazendas e equipamentos agrícolas. Vastas quantidades de propriedade pessoal e terras foram confiscadas pelo governo israelense. A sociedade árabe palestina girava em torno da atividade agrícola. Cerca de 80% dos refugiados tinha os bens de família e economias de vida nesse setor: casas de campo, lavouras, rebanhos, ferramentas e capital em geral, ao qual hoje não têm nenhum acesso. Portanto, tornaram-se não apenas refugiados, mas refugiados destituídos de seus bens, incapacitados de restabelecer a vida inclusive no exílio.
Após a guerra de 1948, Israel usou as terras e casas palestinas confiscadas de mais de 400 vilarejos destruídos, além das cidades parcialmente esvaziadas, para assentar novos imigrantes judeus. Alguns vilarejos foram reconstruídos e receberam nomes hebraicos, na tentativa de apagar todo sinal da história e da realidade não-judaica da terra. Centenas de milhares de imigrantes judeus ingressaram em Israel a partir da proclamação do Estado em maio de 1948, incluindo judeus da Europa, sobreviventes do holocausto, e outros, vindos dos países árabes.
De 1948 a 1953, a Agência Judaica estabeleceu 345 novas cidades judaicas, a maioria das quais foi construída em propriedades confiscadas. Até 1954, um terço da população judaica de Israel vivia em propriedades confiscadas de refugiados. Quase todas as propriedades de refugiados palestinos permanecem hoje em posse do Estado de Israel e do Fundo Nacional Judeu (FNJ-KKL). Em meados da década de 1950, as terras, mas principalmente as casas e outras construções, deixadas para trás pelos palestinos expulsos, praticamente não seriam mais reconhecíveis para os mesmos. Em alguns lugares, mesquitas foram transformadas em galerias de arte e restaurantes. Terras aráveis também foram transformadas, re-registradas e usadas para construir novos assentamentos e fazendas israelenses. Mobílias e outros tipos de propriedades móveis foram confiscados e vendidos, incluindo máquinas agrícolas e industriais, animais, móveis domésticos e veículos. O chamado Gabinete da Propriedade Abandonada vendeu a maior parte desses bens nos anos imediatamente após 1948 (Veja FISCHBACH, M.).
De 1967 às vésperas da assinatura dos Acordos de Oslo, foram emitidas mais de 1800 leis militares nos TPO, limitando o uso da terra, água, e a movimentação de pessoas, na esfera social, econômica e política. Os palestinos, adultos e crianças, viram-se sujeitos a pressões psicológicas, depressão, perda de perspectiva de vida e estabilidade emotiva. O impedimento à movimentação das pessoas, além de reduzir drasticamente a sua atividade econômica e condições de vida (a renda média dos refugiados gira em torno de dois dólares por dia) determinou que 90% dos palestinos dos TPO jamais tivessem a possibilidade de visitar Al Quds (A Santa, em árabe), isto é, Jerusalém. Sendo que 60% da população palestina dos TPO jamais visitou nem o Mediterrâneo nem o Mar Morto.
Mais recentemente, as leis restritivas desembocaram no cerco, punição coletiva, assassinatos dirigidos, isolamento, segregação, prisões sem julgamento nem acusação formal, para não mencionar a tendência dos massacres dirigidos às concentrações civis de refugiados, como Jenin (2002) e Gaza (2009) para mencionar apenas alguns dos mais recentes. De fato, um dos exemplos mais drásticos das condições de vida dos refugiados palestinos se encontra na Faixa de Gaza: ali estão os antigos moradores de 247 vilarejos do sul da Palestina, expulsos em 1948, encerrados nessa pequena faixa com a maior densidade populacional do planeta. Com 1,5 milhão de pessoas, é como se a população de toda a Palestina de 1948 tivesse sido espremida para dentro de Gaza, encerrados, murados, isolados do mundo e sem direito a usufruir sequer dos recursos marítimos desse litoral rico em pesca.
Enquanto as autoridades israelenses declaravam que estavam dispostas a pagar compensações por determinadas categorias de terras de refugiados, insistiam que a terra havia sido permanentemente absorvida pelo Estado e o Fundo Nacional Judeu, e não seria restituída. A partir de 1960, esses dois tipos de terras (do Estado e do FNJ-KKL) foram chamados de Terras de Israel, e administrados conjuntamente pela nova Administração de Terras de Israel. Os dois argumentos básicos do sionismo para negar aos palestinos o seu internacionalmente garantido direito de retorno, seriam, primeiro, a falta de espaço dentro de Israel, segundo, que o retorno de milhões de palestinos destruiria o caráter judeu do Estado de Israel. Para os palestinos, não há argumento de tempo ou falta de espaço que justifique a negação do direito de retorno. Grande parte das terras das aldeias esvaziadas em 1947-9 continua vazia, sendo que, se Israel pode acolher imigrantes judeus de todo o mundo, porque não receber de volta os habitantes autóctones, diria um palestino. Quanto ao segundo argumento mencionado, deve-se dizer que não consta na lei internacional nem no plano de partilha da ONU (ONU/AG Res. 181, 29/11/1947) o conceito de Estado étnico puramente judeu. Trata-se de um argumento arraigado em pressupostos racistas, cujo objetivo seria não apenas negar aos palestinos o seu direito de retorno, mas justificar a paulatina ou abrupta expulsão dos moradores palestinos de dentro de Israel, que, somando hoje 20% da população de Israel, são referidos como “bomba demográfica” e quinta coluna.
Como nota Chiller-Glaus (veja a referência bibliográfica), os israelenses rejeitam toda e qualquer possibilidade de discutir as questões de princípio relacionadas ao problema dos refugiados. A maioria dos israelenses –quando se dispõem a abordar a questão altamente emotiva dos refugiados palestinos- prefere focar o mais rapidamente possível nos passos práticos para “remover o problema”: fechamento dos campos de refugiados, desmantelamento da UNRWA, criação de um fundo para compensar os refugiados, defesa da absorção dos refugiados pelo futuro Estado palestino ou pelos países árabes. Questões de princípio -como o reconhecimento da culpa do Estado de Israel pelos crimes cometidos em 1948 contra o povo palestino, sua responsabilidade pela criação do problema dos refugiados, e a possibilidade de formular um pedido de desculpas- são extremamente difíceis de abordar.
Os refugiados sempre se recusaram a aceitar qualquer tipo de compensação porque significaria abrir mão do direito à restituição, perder sua condição política de refugiados e aceitar o exílio permanente. Exigem, pelo contrário, o direito de retorno e restituição de suas propriedades, demonstrando para além de qualquer dúvida que a questão dos refugiados palestinos, que somam aproximadamente 80% da população palestina, é indissociável da questão palestina como um todo, cuja solução não será resultado senão condição para a paz na região.
* Arlene Elizabeth Clemesha é professora de história e cultura árabes da USP (Universidade de São Paulo)
Referências bibliográficas:
BADIL, 2007. Badil Resource Center for Palestinian Residency & Refugee Rights. Survey of Palestinian Refugees and Internally Displaced Persons. www.badil.org/refugees.htm
CHILLER-GLAUS, Michael. International and regional efforts to promote a solution of the Palestine refugee issue. United Nations International Conference on Palestine Refugees. UNESCO Headquarters, Paris, 29 e 30 de abril de 2008.
FISCHBACH, Michael R. Refugee properties and compensation. United Nations Special Meeting to Mark Sixty Years of Dispossession of Palestine Refugees. Nova Iorque: ONU, 2008, 20 de junho.
PLO NEGOTIATIONS AFFAIRS DEPARTMENT. Palestinian Refugees. http//www.nad-plo.org/images/maps/pdf/palreg.pdf