Cinco mil cruzes foram colocadas em frente ao Congresso na sexta-feira, em protesto que simboliza a morte dos índios.
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
A cerca de dez dias atrás os Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay tornaram pública a sua decisão de morrer coletivamente. A situação insustentável dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul, de confinamento e terror coletivo, explode enfim num episódio trágico.
O ultimato, tornado público no dia 08 de Outubro de 2012 pelo conselho Aty Guasu Guarani e Kaiowá do MS, é o último recurso de um povo que tem sido oprimido e sistematicamente expulso de suas terras. Em resposta à ordem de despejo decretada pela justiça do município de Naviraí, os indígenas declararam em carta que decidem morrer coletivamente e que desejam ser enterrados no local da terra em disputa.
Dizem eles: “Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui.”
Pyelito Kue/Mbaratay é um dos mais de 20 territórios tradicionais do povo Guarani-Kaiwoá no Mato Grosso do Sul. A etnia, extremamente numerosa para as pequenas áreas em que se instalam, sobrevivem em condições precárias. No meio de um conflito fundiário ferrenho que já dura décadas, as comunidades Guarani-Kaiowá vivem em territórios provisórios entre as fronteiras de enormes fazendas, cujos donos são bastante influentes na política local e nacional.
Esperando pela demarcação de suas terras, os indígenas têm vivido em um verdadeiro pesadelo. Nos acampamentos, a expectativa de vida é inferior à de países africanos em guerra¹. A mortalidade infantil anual, nos últimos cinco anos, passou de 48 casos para 1900. A taxa de suicídios dentre os Guarani-Kaiwoá é considerada uma das mais altas do mundo – enquanto à média do Brasil é de 5,7 a cada 100 mil habitantes, nesta comunidade indígena o contingente é maior que 100 a cada 100 mil habitantes.
Além disso, é frequente a invasão de pistoleiros nos acampamentos indígenas. Tornou-se comum a morte de lideranças e de cidadãos indígenas nas áreas de conflito. A imprensa local interpretou o fato como “a guerra que os produtores declararam aos indígenas”. E mesmo com os ataques continuando a crescer, os assassinatos, agressões e incêndios criminosos seguem impunes.
No ano de 2010, foram vários os relatórios de organismos internacionais falando sobre a gravidade da situação indígena no MS. Marina Silva, durante seu mandato de Senadora da República, enviou uma carta ao presidente Lula, na qual afirma que “não poderemos falar em crescimento ou em desenvolvimento decentes enquanto não dermos uma solução generosa para o atual confinamento desse povo e suas decorrências – o que, neste caso, não significa lhes dar o peixe, nem lhes ensinar a pescar, mas lhes devolver os rios.” Aliás, não faltam exemplos de brasileiros e brasileiras notáveis em seus campos de atuação demonstrando solidariedade para com a luta dos indígenas no Mato Grosso do Sul.
Apesar de tudo é um problema que segue se aprofundando e sendo retransmitido de governo a governo. Vivemos uma guerra civil no Brasil rural, onde os povos tradicionais vivem o extermínio lento e constante na luta àrdua por seus modos de vida. O questionamento que o povo Guarani-Kawioá levanta é: se o governo colabora nas violências que os indígenas sofrem, a quem mais se pode recorrer? Qual alternativa sobra?
O filósofo Michel Foucault afirma, acertadamente, que a essência das relações de poder é legislar sobre o jogo nu da vida e da morte. É a decisão acerca de qual vida zelar e de quem se deixa morrer. De qual realidade se quer dar manutenção. Um exercício justo de governo no Brasil tem por obrigação deixar viver o povo Guarani-Kaiowá.
E é revoltante ter não só ponderar, mas protestar sobre isso, nesta altura da História. Então derrubaram a ditadura para isso aí? É aceitável que um governo, ainda mais um governo que se diz “de esquerda” só se pronuncie frente o massacre, frente à brutalidade, quando a sociedade brasileira se solidariza com o perigo de um suicídio anunciado de Pyelito Kue/Mbarakay?
Escrevendo aqui eu lembrei desta foto. Uma velhinha, em uma manifestação pelos direitos das mulheres, segurando um cartaz que – em português polido – pode ser traduzido como “Eu não acredito que ainda preciso protestar por causa disso”. Compartilho o sentimento, mesmo aos meus vinte anos. Eu não acredito, ainda precisemos convencer os governos a não deixar que morram os Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay.
Eu não acredito, ainda precisamos convencer os poderosos e poderosas que um país rico é um país que não extermina os seus povos tradicionais. Eu não acredito, ainda precisamos dizer o óbvio, o bíblico, não matarás. E não acredito que alguém ainda analise a invisibilidade que as populações tradicionais como algo próximo da ingenuidade dos governantes. Porque, de fato, não o é. É parte de um projeto político que vê os indígenas e a natureza como obstáculos para o crescimento econômico. E o crescimento econômico, nessa visão, é o que mais importa.
Enfim, é com perplexidade mas com disposição que vozes de todo o país têm se juntado em solidariedade à luta deste povo. Se é preciso dizer o óbvio, exigir resposta às mais pungentes necessidades, vamos à elas.
Reconhecer o direito de um povo a existir é reconhecer o direito à moradia digna, à religiosidade indígena, o acesso à saúde. Então em consoância com a luta centenária de nossos irmãos e irmãs indígenas, eu rogo ao Estado Brasileiro, neste grito singelo, e de tão básico, brutal: deixa existir.
¹Dado da publicação Povos Indígenas do Brasil 2006/2010, do Instituto Socioambiental