Após viajar 280 km de ônibus, depois de ter trabalhado 12h seguidas, cheguei para a Virada Cultural. Fui porque várias atrações prometiam, entre elas, grandes nomes no palco do hip hop, como os precursores Thaíde, Dj Hum e o pai de toda esta cultura, Afrika Bambaataa, como atração de encerramento.
Mesmo sem nunca ter ido a uma Virada Cultural, esperava um evento bem organizado e estruturado, com policiamento para garantir a segurança do público e não para constranger.
Ao chegar, me deparei com vários palcos, entre eles o principal, onde marcava atrações como Gal Costa, Zé Ramalho, Teatro Mágico e Marcelo D2, citando este último como rapper.
Agora eu questiono. Se ele é um rapper, o que estava fazendo no palco principal do evento? Por que não estava no palco do hip hop, ao lado de tantos outros nomes bons? E reafirmo questionamentos já feitos. Qual é a representatividade do Marcelo D2, dentro da cultura hip hop, para ocupar o palco principal? E o Afrika Bambaataa?
São indagações … longe ainda de serem o problema principal deste artigo.
Num mapa distribuído em vários pontos da Virada Cultural, os palcos de shows eram mostrados, qual não foi minha surpresa ao ver que o palco do hip hop ficava bastante longe dos demais, localizado na praça Cível Ulysses Guimarães, no Parque Dom Pedro. Pelas informações do mapa e de moradores de São Paulo, eu deveria pegar um metrô, do Vale do Anhangabaú até a Praça.
Contudo, pela inexperiência no evento e na maior cidade do país, somente ao descer do metrô, percebi que estava mais longe do local do que se tivesse ido a pé de onde eu estava anteriormente.
Um cidadão ainda me disse que eu deveria pegar um ônibus da estação do metrô até o Parque Dom Pedro, pois o caminho feito a pé poderia ser perigoso, ‘pelo povo que passava por ali’. Não questionei e fui. Seguindo um som distante, cheguei próxima a um local pouco iluminado, onde, para entrar, deveria passar por um corredor de grades.
Mais uma surpresa na noite e esta bastante desagradável, quando vi meus companheiros de cultural sendo revistados por policiais, aliás, um grande número de policiais, bem maior do que nas outras concentrações do evento.
Não contentes em efetuar a revista pessoa, expondo a cultura hip hop novamente à margem da sociedade, dizendo, nas entrelinhas, que somos todos bandidos e que expomos a sociedade à riscos, os policiais faziam com que colocássemos as mãos na cabeça, ou estendidas na grade e abríssemos as pernas, para a revista completa.
Sem estar satisfeitos, boa noite ou bom dia pra quê? A estupidez costumeira tomou o devido lugar, quando os policiais, cheios de abuso de autoridade, abordavam os manos e minas que chegavam ao local com o único intuito de curtir a virada cultural com o tipo de música preferido.
Fácil notar também que a cada árvore do parque havia três policiais, ou seja, mais policiamento do que público, sem falar na cavalaria também presente no maior evento cultural do país. Lamentável.
Já me sentindo um lixo, pela decepção do local do show, o pequeno público e a revista policial, tirei uma foto da revista e fui lesada nos meus direitos de jornalista formada por uma cabo, que não sabia nem falar, mas, abusando da autoridade, me fez apagar a imagem, me impedindo não apenas de curtir meu estilo musical preferido em paz, como de trabalhar e exercer minha profissão, com todos os direitos previstos pela lei.
Nos shows, meia dúzia de gatos pingados, isolados, discriminados e julgados tentavam curtir o rap, com uma aparelhagem de som desregulada, o que denota ainda mais o descaso da organização do evento e também da sociedade com a cultura hip hop.
Contudo, mesmo sofrendo com as mazelas impostas pela sociedade, o público do ‘Baile Chique’ comportou-se como deveria, ou seja, como sempre, civilizadamente, porém, com a dispersão deste, os policiais fizeram questão de aproximar-se do palco, num alvoroço, como se os negros e pobres ali presentes pudessem, a qualquer momento, atacar alguém, como animais mitológicos.
Não agüentei e fui embora logo. Decepcionada por ter viajado e investido num evento cujo o meu estilo estava sendo desprezado no último grau.
Em outras partes da Virada Cultural, num público estimado de quatro mil pessoas. No palco da dança, no Vale do Anhangabaú, onde público tinha até cadeiras, um garoto de uns 12 anos cheirava cola livremente em frente aos policiais que faziam a ‘ronda’ por ali e não satisfeitos pela ronda, faziam também vista grossa a isso.
Um pouco mais adiante, um grupo fumava maconha livremente na cara dos policiais, coisa natural e ninguém tomou geral por isso, foi impedido de fotografar, ou ficou isolado em suas comemorações, num parque ‘enjaulado’ e a parte do evento.
No outro dia, voltei para o show do Afrika Bambaataa e fiquei num evento, onde não havia constatado na noite anterior, não havia barracas vendendo comes e bebes e para tomar uma água, tínhamos que sair do pátio feito pela organização da Virada Cultural.
O pai do hip hop chegou para tocar para o maior público daquele palco, algo em torno de seis mil pessoas, contra as 50 mil que foram aos shows do palco principal, na avenida São João.
Quando o criador de toda a cultura subiu no palco, ficou por mais de meia hora regulando o som, que estava mal sintonizado, ou seja, outra vergonha para o público do hip hop.
Em entrevista ao Jornal da Tarde, o secretário de Cultural, Carlos Augusto Calil justificou o local escolhido. “Houve uma certa inocência em colocar, no ano passado, o palco de hip hop na Praça da Sé, que passa por um processo de urbanização.”Segundo o secretário, para evitar novos incidentes, os espaços forma melhor distribuídos e adequados ao público.” Criamos condições para que o público de hip hop, por exemplo, que tem um comportamento diferenciado, possa curtir a festa deles.”
Eu pergunto, que condições? Que público? O que este secretário entende de hip hop para fazer isso? Não subestimando, mas creio que não entenda mais do que o preconceito criado acerca da nossa cultura, pois referir-se ao ‘comportamento diferenciado’ como se fôssemos bichos agindo por instinto foi demais.
Durante a semana que se seguiu a Virada Cultural, minha caixa de e-mails fervilhou de mensagens debatendo o assunto. Vários sites também publicaram artigos, matérias e indignações.
Cada um mantém a sua opinião acerca dos fatos acontecidos.
Na minha? Culpa dos dois lados. O primeiro, da falta de comprometimento do hip hop com ele mesmo. Cadê as lutas? A prática da pregação de Bambaataa por ‘paz, amor, diversão e união?’, quem é que luta por isso? Quem tenta mudar nossa situação de escravidão moderna? O que o hip hop, ou seja, nós mesmos fazemos por isso?
Só escrever um texto adianta? Publicar várias opiniões dispersas resolvem?
É, eu também estou publicando a minha, e como todos, acredito que o desabafo e o compartilhamento dos pensamentos possa nos levar a algum lugar.
Jogo o desafio aos manos e minas, que queiram reunir-se, na representatividade da nossa cultura, mostrando ao secretário de Cultura, aos novos eleitos neste ano eleitoral e a população que não podemos mais ser tratados como escravos e que a nossa inteligência não pode mais ser subestimada em revistas policiais. Que temos sim, direito de trabalhar e exercer nossas profissões e ainda mais, de termos o que os outros estilos musicais tem.
No mais, acho que todos queremos é a Paz.
Salve. Paz.
Jéssica Balbino – mineira, 22 anos, moradora da periferia de Poços de Caldas, jornalista formada, autora do livro Hip Hop – A Cultura Marginal, integrante do livro Suburbano Convicto – Pelas periferias do Brasil, colunista do site Leia Livro e do Ciranda Internacional de Informação Independente, defendendo as causas da cultura hip hop.
Voluntária de trabalhos com hip hop na periferia, atualmente atuando como repórter no Jornal de Poços, idealizadora da série de reportagens Margens da Sociedade, com pessoas de muito conteúdo e excluídas do restante da população.
Mantém o blog Cultura Marginal – http://jessicabalbino.blogspot.com