Contra quem luta, a política é a mesma: mobilização é caso de polícia. O MST, que representa uma força organizada dos pobres do campo, sofre com essa lógica desde sua fundação, ou mesmo antes. Foi a mesma política que massacrou as Ligas Camponesas. Para a resistência, cabe aos oprimidos não esquecer e seguir em mobilização permanente. Leia entrevista.
JST – De onde vem o conceito de “criminalização”?
GA – Criminalizar, como a própria expressão indica, é dizer que uma ação, individual ou coletiva, configura um crime. No caso dos movimentos sociais, significa dizer que há uma tentativa de fazer com que no Poder Judiciário, no Legislativo e na sociedade se entenda que a luta por direitos – no caso do MST, a ocupação de terras, as marchas e outras formas de luta – não é um direito constitucional e sim um crime. Esse é o conceito mais adequado de criminalização e dele decorrem as investigações policiais, as prisões e os processos criminais. A compreensão política por parte dos trabalhadores e trabalhadoras sobre esse processo de criminalização das mobilizações sociais vem sendo delineada no curso das lutas em que se vê a articulação de setores diversos da sociedade e do Estado, não somente com a abertura de procedimentos judiciais criminais e repressão massiva às ocupações de terra, mas também pelas campanhas midiáticas. Diante dessas circunstâncias, tem havido um aprofundamento do debate por parte dos movimentos, com o consequente adensamento da compreensão do problema e absorção de seu conteúdo, inclusive nas jornadas de lutas.
JST – Qual o objetivo de criminalizar as lutas sociais?
GA – Em linhas gerais, buscam a estigmatização, ou seja, tentam imprimir aos movimentos sociais e sindicais características negativas, antipopulares. A mídia tem papel fundamental nesse processo de estigmatização. No caso do MST, a grande mídia invariavelmente trata de forma extremamente negativa as lutas realizadas, criando também interpretações absurdas sobre fatos que, olhados com atenção, representam o contrário do que dizem. Recentemente, a campanha dos grandes meios de comunicação procura acabar com políticas de educação, produção e saúde desenvolvidas pelo MST, repetindo sem nenhuma prova que entidades ligadas à Reforma Agrária desviam recursos públicos. Um carimbo negativo que buscam colocar é que toda organização que luta por direitos deveria ser considerada terrorista. Basta lembrar o relatório alternativo produzido pelo deputado Alberto Lupion, do DEM/PR, na CPMI da Terra, em que pediu ao Congresso Nacional a produção de uma lei que transformasse a ocupação de terras em crime de terrorismo. Esse entendimento, absurdo dos pontos de vista político e jurídico, foi na época amplamente difundido pela imprensa, mas por sua inconsistência não teve repercussão no Congresso.
JST – O processo de criminalização das lutas sociais pode ser identificado como um dos elementos do neoliberalismo? Podemos dizer que hoje está em curso ainda uma “criminalização da pobreza”?
GA- As classes dominantes sempre se utilizaram do aparato repressivo do Estado e também de seu aparato particular para conter os avanços sociais produzidos pela luta existente entre as classes. Com o advento do neoliberalismo e a consequente redução da participação do Estado nas demandas populares, observa-se uma maior articulação no sentido de reprimir as lutas. Se, de um lado, se verifica que no curso da implementação das políticas neoliberais e do aumento das taxas de emprego no Brasil houve um descenso das lutas sociais, especialmente no
espaço urbano, é inegável que a luta levada a cabo pelos trabalhadores rurais, com grande capacidade de organização e conscientização, obteve êxitos e repercussão positiva na sociedade. Sob esse aspecto, é inegável que há, portanto, uma iniciativa de criminalizar estas ações, não apenas com o objetivo de barrar aquela ação específica, mas de dar exemplo e conter as lutas de outras organizações. Por outro lado, o que se chama de criminalização da pobreza tem seu conteúdo ligado também ao recrudescimento da exclusão social causada pela implementação do neoliberalismo. A desigualdade social Raul Spinassé aliada ao ideário de uma sociedade de consumo e à ausência de políticas públicas de acesso a direitos, por certo são elementos incentivadores do aumento da criminalidade, de crimes como o tráfico de drogas ou os crimes contra o patrimônio. Mas é importante observar que o tratamento dado pelo Estado é absurdo porque as ações por ele realizadas, apenas no campo da segurança pública – em total desrespeito aos mais básicos direitos – tratam as comunidades pobres como um grupamento total de criminosos. Mas com essa pequena porcentagem de participação criminosa dos pobres, para além das ações estatais que violam direitos (direito à vida, à inviolabilidade do domicílio etc), o Legislativo vem gradativamente aumentando não apenas o rol de ações tidas por crimes, mas também a quantidade de pena atribuída a esses delitos. Esse processo de criminalização da pobreza por meio de um direito penal máximo foi o marco institucional necessário para a existência de um Estado mínimo. Suas vítimas principais são os pobres, jovens, negros, de baixa escolaridade, a quem o processo de exclusão leva à morte ou à prisão, sem meios de defesa.
JST – O que mudou na forma de as elites perseguirem os militantes? Como a repressão se articula com as tentativas de desmoralização? Isso vem piorando ou é o mesmo processo desde a ditadura?
GA – O objetivo sempre foi o mesmo: impedir o avanço das lutas sociais. Na ditadura militar, as Ligas Camponesas foram massacradas e contra aqueles que lutaram contra o sistema houve não apenas processos judiciais de criminalização (enquadramento na Lei de Segurança Nacional daqueles que realizaram a luta social), mas agentes do Estado promoveram – muitas vezes com subsídio capitalista – tortura, assassinato e desaparecimento de militantes. Com a redemocratização do país e com os direitos e garantias individuais introduzidos na Constituição Federal de 1988, abriu-se um amplo campo de reivindicações e espaço para a organização popular. Obviamente a classe dominante, por meio do Estado ou de ações privadas, buscou se organizar para reprimir a concretização desses avanços.
JST – Nosso país possui uma Constituição avançada e um Poder Judiciário geralmente identificado com as elites. Atualmente, o presidente do STF é tido como um porta-voz da burguesia. Como fazer valer a lei nesse contexto?
GA – O atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, chefe do Poder Judiciário brasileiro, é identificado com o projeto das elites. Ele reiteradamente tem extrapolado em suas manifestações públicas as atribuições de presidente do Tribunal, tentando passar a idéia de que suas opiniões representam todos os juízes. O Judiciário brasileiro é composto de juízes com as mais variadas opiniões, e as teses do ministro Gilmar têm sido reiteradamente derrotadas nos tribunais. Apesar de o Judiciário poder ser identificado em sua maioria como conservador, existem muitos juízes cuja atuação se pauta pelas normas constitucionais.
JST- Em relação ao julgamento dos crimes contra os camponeses, por que há tanta impunidade? Há novidades em algum dos casos emblemáticos, como Carajás e Felisburgo?
GA – A impunidade é um marco dos crimes cometidos contra os pobres no Brasil, especialmente no campo. Dados da CPT indicam que dentre 1237 assassinatos cometidos contra trabalhadores rurais entre os anos de 1985 e 2001, apenas 102 foram levados a julgamento. Dos mandantes, 14 foram julgados e apenas 7 condenados. A impunidade reside na capacidade de barrar as investigações, influenciando atores políticos, testemunhas e o Judiciário para que os processos andem mais devagar ou mesmo fiquem parados. Não faltam exemplos de fatos que chocaram o mundo, como os massacres do Carandiru, de Eldorado dos Carajás e o assassinato da Irmã Dorothy Stang. No caso de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 1996, até hoje ninguém foi punido, mas as pressões realizadas pela sociedade brasileira e internacional contribuíram para que, no ano passado, o Superior Tribunal de Justiça tenha mantido a condenação dos comandantes da operação, o Coronel Mario Pantoja e o Major José Maria Pereira de Oliveira. Resta ainda o julgamento de um recurso do Supremo Tribunal Federal. No caso do Massacre de Felisburgo – ocorrido no Vale do Jequitinhonha em novembro de 2004, ocasião em que cinco trabalhadores foram assassinados e 13 ficaram feridos pela ação de 18
jagunços, comandados pessoalmente pelo fazendeiro Adriano Chafik – o processo contra os assassinos vem se arrastando lentamente. Nesse momento, a luta é para que o júri seja realizado na cidade de Belo Horizonte. É preciso que estes fatos permaneçam vivos na memória das organizações populares e da sociedade. A mobilização pela punição desses crimes deve ser permanente.
JST – Por que essa ofensiva agora, como nos casos de São Paulo e do Pará?
GA – Como dito, onde houver luta social haverá tentativa de criminalização. No caso de São Paulo, com a ocupação realizada na fazenda da Cutrale, empresa que se apropriou de terras públicas na região de Iaras, houve uma espetacularização do caso pela mídia. No mês de fevereiro deste ano houve decreto de prisão ilegal de 19 trabalhadores e trabalhadoras. Porém, quando esse decreto de prisão foi levado para apreciação do Tribunal de Justiça de São Paulo, este prontamente corrigiu a ilegalidade e revogou os decretos de prisão. No entanto, os trabalhadores e trabalhadoras continuam respondendo a processo judicial no qual são acusados,
de forma totalmente descabida do ponto de vista jurídico, pela prática dos crimes de furto e de formação de quadrilha. No caso do Pará, a situação é semelhante. Integrantes do MST tiveram prisões preventivas decretadas, sem que houvesse qualquer apoio legal para essa medida extremada, que servia apenas aos interessantes das elites. Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça corrigiu a ilegalidade, revogando o decreto de prisão contra dois desses militantes. Há ainda no Pará outros dois decretos de prisão em discussão no Tribunal de Justiça local.
JST – Quais as alternativas para enfrentar a criminalização? Como é a experiência da Renap?
GA – A Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) é uma experiência surgida em meados nos anos de 1990 que teve como marco a percepção da necessidade de os movimentos sociais, especialmente do campo, organizarem sua defesa e assessoria jurídica. A Renap cresceu no decorrer dos anos e hoje está organizada em todos os estados. Foram realizados diversos cursos de formação jurídica e encontros voltados para as demandas populares. Hoje temos a participação de cerca de 800 advogados e advogadas. Para enfrentar a criminalização, além da defesa jurídica de qualidade, é necessária a discussão, organização e ação política dos trabalhadores. Com a compreensão do problema a estratégia de defesa fica mais clara. É importante também que os militantes dos movimentos sociais tenham em mente que realizam uma tarefa importante para a História: a luta pela efetivação e garantia dos direitos humanos, apenas possível com a transformação profunda da sociedade.