O poder da cultura

Por Arlene Clemesha

Na semana em que Shimon Peres visita o Brasil para fechar contrato de 350 milhões de dólares para a venda de equipamento militar ao governo federal – desenvolvido e testado às custas de muitas vidas palestinas e libanesas –, vale a pena parar um momento para lembrar a célebre frase de Edward Said: “Devemos reafirmar o poder da cultura sobre a cultura do poder.”

É o que tem feito o Festival Literário da Palestina, com muita criatividade para driblar os empecilhos impostos pelo regime israelense de ocupação. Primeiro, já que a população palestina dificilmente consegue viajar de uma cidade a outra dentro dos seus territórios sem ter que enfrentar barreiras militares, longas esperas, e humilhações, quem viaja é o festival. Tornou-se itinerante para que as oficinas e palestras dos escritores e poetas pudessem ser desfrutadas pela população palestina de norte a sul da Cisjordânia.

Esse ano, no mês de maio que é quando se realiza o festival, os participantes levaram cinco horas para ingressar nos territórios pela ponte Allenby. A fronteira fecha às 16h; às 16h os soldados israelenses os deixaram passar. Logo na abertura dos trabalhos, a primeira surpresa: Quando chegaram os participantes para a cerimônia de abertura no Teatro Nacional Palestino em Jerusalém oriental, encontraram a polícia a postos para dispersá-los, e a abertura teve que ser transferida para o dia seguinte, em outro local.

Os escritores viajaram de Jerusalém a Ramallah, de lá a Jenin, Belém, Al Khalil/Hebron e de volta a Jerusalém para o encerramento, enfrentando sempre muita chateação nos postos militares, mas também enorme interesse, entusiasmo e participação massiva da população dessas cidades. As oficinas lotavam e foram muitos os pedidos para que permanecessem mais tempo.

Na noite de encerramento, encontraram uma nova ordem militar na porta lacrada do Teatro Nacional. Cansado de tanta perseguição, possivelmente irritado pela leitura da cínica ordem, o Cônsul britânico levou os convidados ao Consulado, onde se realizou sem maiores distúrbios e com grande felicidade, o encerramento do festival literário, com muita dança, música e leitura de poesia.

Da cidade de Jenin, o escritor sueco Henin Mankell diria: “quando os talentosos jovens atores palestinos mostraram partes de sua nova peça sobre a vida no campo de refugiados, confirmaram o que eu já sabia”, referindo-se ao poder da resistência cultural.

“Foi tamanha a explosão de expressão intelectual e emocional. Em alguns momentos nos disseram mais sobre a situação palestina do que muitos artigos de jornal juntos. Isso vale para a Palestina, como valeu para a África do Sul. A importância da cultura para a queda final do regime feio e racista de apartheid, jamais poderá ser exagerado.

“O que vi no Teatro da Liberdade de Jenin me deu esperança. Devemos escutar as histórias palestinas para entender que algum dia a opressão do povo palestino tomará o mesmo rumo do Muro de Berlim ou do Apartheid na África do Sul.”

Para dizê-lo de forma resumida, o festival sofre, primeiro, as dificuldades gerais de todo cidadão palestino, de todo o sistema educacional, de toda expressão artística e reprodução das condições de vida e da cultura da população; segundo, os ataques dirigidos especificamente contra a realização do festival, sinal claro e inequívoco do incômodo que representa aos ocupantes a preservação da cultura de um povo.

Ghassan Kanafani, o importante escritor, pintor, intelectual e ativista palestino, foi perseguido e finalmente morto no Líbano, num atentado a bomba do serviço secreto israelense em 1972. O destacado intelectual palestino Edward Said, mesmo enquanto lutava contra uma leucemia, teve que enfrentar repetidos ataques verbais e físicos por parte dos sionistas de Nova Iorque, onde vivia e lecionava. Mahmud Darwich, poeta nacional, como era chamado, teve a saúde gravemente debilitada pelo exílio e a perseguição, vindo finalmente a falecer em agosto de 2008, três dias após uma operação do coração.

Para encerrar, as palavras de Mahmud Darwich:
Obrigado, queridos amigos, por sua nobre solidariedade, obrigado por sua coragem de quebrar o cerco moral infligido sobre nós, e obrigado porque estão resistindo ao convite de dançar sobre nossos túmulos. Ainda estamos aqui. Ainda estamos vivos. (Mahmud Darwich, maio de 2008).


Por Arlene Clemesha, historiadora, Professora do Curso de Língua, Literatura e Cultura Árabe do Departamento de Letras Orientais (DLO-USP) e conselheira do ICArabe.