Percorri 40 kms no último domingo (14/11/2021), num Distrito Federal debaixo de chuva forte, pra fazer o ENADE, o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes.
É uma prova obrigatória pra quem está em vias de se formar e a pessoa só recebe o diploma se fizer o tal exame. Não consigo descrever a má vontade que me estrangulava enquanto dirigia até o local da prova.
Entre a abertura dos portões e a efetiva possibilidade de manusear o caderno de provas, passaram-se quase duas horas de tédio, sem poder conversar com ninguém e sem poder mexer no celular. Entre algumas tentativas de meditar e a onipresente mente tagarela pensando na chatice da situação, fiz um exercício de imaginação sobre quais poderiam ser os conteúdos cobrados sob a batuta desse governo anticiência, especialmente depois da notícia de que 37 servidores do órgão responsável pelo ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio, que é o mesmo que elabora as provas do ENADE, haviam pedido exoneração dos seus cargos.
Mas a vida é mesmo cheia de surpresas. Logo nas primeiras páginas pude ver que se tratava de uma prova de resistência! E a resistência a que me refiro não é por causa da sua extensão – que não foi desprezível – mas aquela que temos procurado fazer contra o negacionismo científico, econômico, sociológico e existencial. Foi uma prova que me deu esperança real de tempos melhores.
O meu curso de graduação, que estava sendo avaliado, é o de ciências sociais. A prova se dividiu em duas partes, sendo uma de conhecimentos gerais e outra específica dos campos da sociologia e da antropologia.
Já na primeira questão discursiva, meus olhos se encheram. Trouxeram um texto do Benjamim Seroussi que tratava de mostrar o papel da arte como agente transformador. Abaixo do texto foi transcrito o inciso IX do artigo 5º de nossa Constituição Federal, que diz ser livre a expressão da atividade artística, independentemente de censura ou licença.
A partir dessas duas balizas, solicitava-se que o aluno escrevesse sobre a relação da cultura com a arte e a censura, tendo em vista a liberdade artística garantida constitucionalmente. Solicitavam, ainda, que fossem dados exemplos de duas ações educativas que poderiam contribuir para minimizar a tensão e garantir essa liberdade. Que questão maravilhosa! 15 linhas eram muito pouco espaço para o tanto que tinha a dizer. Entusiasmei.
Mas não parou por aí. A prova tratou de riscos que correm os direitos humanos por programas de desregulamentação administrativa e de mercado; abordou direitos sociais, programas voltados para o direito das mulheres e questionou a reduzida confiança das pessoas nas instituições públicas.
Logo nas primeiras questões objetivas de conhecimentos gerais, essa prova de avaliação trouxe um poema sobre resistência negra, tirada de um livro de Hip Hop, com uma dessas questões que você tem que saber se uma assertiva é justificativa da outra – o que nos deixa muito tempo debruçada sobre os enunciados, fazendo exercícios de lógica que nos fazem mergulhar em cada palavra. O primeiro dos enunciados falava da ressignificação de experiências históricas, aplicadas a becos, vielas e favelas. O segundo chamava a atenção para a negligência do ensino curricular nacional em (não) abordar a história da África e a luta antirracista contemporânea. Um primor que foi complementado por uma questão sobre os quilombolas, mencionando um parecer sobre as diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola (eu nem sabia que existiam essas diretrizes, fiquei envergonhada).
Prosseguiu a prova cobrando reflexões sobre o sistema democrático, o respeito à opinião das minorias, sobre a maturidade das lideranças democráticas, sobre totalitarismo, sobre greves nos diversos setores profissionais, sobre suicídio de adolescentes indígenas, sobre intervenções urbanas capazes de gerar impacto social, sobre cidades inteligentes, coleta seletiva, desenvolvimento sustentável, sobre o sistema educacional como um meio de reprodução das desigualdades sociais, raciais e de gênero. Sério… Que reconfortante cada questão dessas.
E, para mim, a pérola da resistência: a quarta questão discursiva, trazia dois textos. O primeiro do Foucault, falando do racismo que a sociedade exerce sobre si própria, sobre seus próprios elementos, trazendo uma ideia de purificação que levava a uma normalização social do próprio racismo. E o segundo, um trechinho de um texto do Achille Mbembe, destacando o racismo como uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, para tornar possível as funções assassinas do estado. A partir desses dois textos, a prova do ENADE 2021 pedia que os alunos discorressem sobre uma das consequências da gestão estatal da epidemia da Covid-19 no Brasil sobre as populações negras e periféricas, tendo em vista os conceitos de necropolítica e biopoder. SENSACIONAL!
Fiz a prova com gosto, prova comprida, 5 questões discursivas, questões objetivas complexas, mas saí de alma lavada! Há resistência por todo lugar. Deu vontade de colocar uma cartinha pessoal de agradecimento no caderno de resposta às questões.
À noite, acompanhei uma matéria que passou no programa Fantástico, da rede Globo, falando sobre as pressões que os servidores do INEP sofreram para modificar as questões do ENEM. Pelo que entendi, foram feitas várias versões da prova, já que os funcionários do INEP, às custas de um dano psicológico considerável, conseguiram resistir, com poucas capitulações.
Não quero ser leviana na suposição, mas não pude deixar de pensar que enquanto esse governo exercia uma pressão sem precedentes contra professores e profissionais de excelência, conforme relatos trazidos pela reportagem, uma outra equipe preparava, com muita responsabilidade histórica e social, uma prova que era uma verdadeira lição de cidadania. Fui dormir feliz, feliz. E me lembrei do “nome completo” do INEP, que é Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. O homenageado, que consta do nome do instituto, um reformulador do sistema educacional que defendeu a capacidade de análise e julgamento em detrimento da técnica de “decoreba”, foi muito honrado. Que o diga Paulo Freire, também citado em uma das questões do exame.
Espero, meio cética, que esses servidores do INEP não sofram perseguições em razão dessa prova. Mas a eles quero dizer que a resistência dentro das estruturas é a nossa esperança. Muito obrigada!
Capa: montagem ciranda.net – foto: Valter Campanato – Agência Brasil
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