O contínuo caminhar de um povo.

Para os índios guarani, não há distinção entre vida natural e sobrenatural.
Por isso, explicam Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin, os
acontecimentos cotidianos têm, além de uma base objetiva, um viés subjetivo

O povo guarani se considera eleito, mas precisa viver em um mundo
imperfeito. Cada pessoa precisa aprender a conviver e a estabelecer um
equilíbrio entre duas naturezas que a constituem – a humana e a divina. É
esta ambivalência que constitui o desafio da vida humana, e que impele o
guarani a superar sua natureza finita e buscar a perfeição que lhe aproxima
da condição divina. Aprender a conviver e a conhecer os outros seres que
habitam os limites do seu território é uma das estratégias deste povo.
Talvez, por isso, suas atitudes não sejam propriamente de conflito e de
enfrentamento aberto, mesmo quando há invasões em suas terras”. É assim que
*Roberto Antonio Liebgott*, vice-presidente do Conselho Indigenista
Missionário – *Cimi/RS* e sua esposa, *Iara Tatiana Bonin*, doutora em
Educação e professora da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, definem o
povo guarani.

Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, para a *IHU On-Line*, eles
enfatizam que a marca distinta dos guarani “é a sua mobilidade”. Nesse
sentido, “a vida guarani pode ser pensada como um ‘contínuo caminhar’”.
Segundo eles, tal estilo de vida caracterizado pela mobilidade colabora para
“a produção de saberes, para a circulação maior de bens, de sementes, de
ervas medicinais, e ainda proporciona às pessoas o desenvolvimento de certas
capacidades que são consideradas importantes para assegurar o bem viver”.

Confira a entrevista:

IHU On-Line – Quem são os guarani? Quantos subgrupos fazem parte desta
etnia indígena e quais suas características?

O povo Guarani era, de
acordo com muitos relatos históricos, constituído por mais de quatro milhões
de pessoas. Ocupava especialmente a região de mata úmida dos Rios da Bacia
Platina, tendo chegado até a Bacia Amazônica.

Este povo, também denominado Awá (termo que, em português, significa
gente) é parte do grande tronco linguístico Tupi, e pertencente à família
Guarani. São hoje mais de 280 mil pessoas, subdivididas em grupos
(parcialidades), assim definidos: Kaiowá (também referidos na literatura
acadêmica como Kaiová, Kayová ou Paï-Tavyterã), Nhandeva (referidos ainda
como Xiripá e Ava Katu Ete), os Mbyá e ainda Guaraios (Bolívia). As
comunidades estão distribuídas em mais de 400 aldeias em quatro países da
América do Sul. Seu território tradicional atualmente se estende sobre
grande parte do Brasil, principalmente no sul, ao norte da Argentina, oeste
da Bolívia e em todo o Paraguai. Há mais de quatro milhões de falantes de
guarani e, no Paraguai, ela se tornou uma das línguas oficiais.

Entre as parcialidades do povo guarani, existem diferenças importantes,
relativas aos costumes, expressões linguísticas, rituais, estilos de pensar
e de viver. No entanto, pode-se dizer que existem unidades agregadoras, a
partir das quais eles se articulam (sem, contudo, se confundir) e mantém
intensa intercomunicação. Dentro de uma mesma parcialidade também há
distinções – que tem a ver com idade, gênero, lugar social, local de
moradia, entre outros aspectos.

Tudo isso nos leva a reconhecer, mais uma vez, a pluralidade de maneiras de
viver, que decorre das múltiplas histórias vividas por estes grupos e das
relações que vão estabelecendo entre si e com os demais. Não há, portanto,
um único e definitivo “jeito de ser guarani” e não seria possível “traduzir”
seu estilo de pensar e de viver em poucas palavras. É necessário considerar
as específicas e variadas situações em que eles vivem, as mudanças que se
processam em suas práticas cotidianas, como efeito de muitos fatores, as
alternativas que eles vão construindo para continuar vivendo em
coletividades, no dinamismo de suas experiências riquíssimas de vida.

Guarani na América Latina

Em termos de localização, de modo geral, os *Kaiowá* vivem hoje em pequenas
parcelas de seu território tradicional, em *Mato Grosso do Sul*, com uma
população (no Brasil) superior a 40 mil pessoas. Os *Nhandeva* vivem no Sul
do Brasil, Paraguai e Argentina, enquanto que os *Mbya*, que são em maior
número, vivem na Argentina, Paraguai e Brasil, concentrando-se, de modo
especial, no Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul (há um grupo familiar que vive hoje no estado
do Pará). Os *Mbya* são conhecidos pela grande mobilidade, que corresponde a
uma forma de percepção e de ocupação do território, mas também representa um
estilo de relação constituído entre as pessoas que habitam esses lugares.

IHU On-Line – Que aspectos culturais são próprios da tradição guarani? O
que vocês destacam na história deste povo, desde a sua origem?

Podemos destacar dois
aspectos importantes da cultura guarani. O primeiro diz respeito à dimensão
sagrada, que está presente no cotidiano da vida destes grupos. Esta é uma
questão complexa, não sendo possível resumir sua cosmologia (amplamente
descrita por *Curt Nimuendajú*, *Bartomeu Meliá*, *Peirre Clastres*, *Graciela
Chamorro*, entre outros pesquisadores) em poucas palavras. No entanto, uma
consideração importante pode ser feita nesta direção: para os guarani, não
há uma distinção absoluta, ou uma linha divisória que separa aspectos da
vida natural e sobrenatural. Assim, as ações cotidianas são marcadas por
certa ritualidade, as explicações para os acontecimentos têm uma base
objetiva e também subjetiva, as razões para algumas práticas e condutas são
de ordem material e também espiritual.

De acordo com muitos pesquisadores, que tem realizado estudos acadêmicos em
diferentes épocas, o povo guarani se considera eleito, mas precisa viver em
um mundo imperfeito. Cada pessoa precisa aprender a conviver e a estabelecer
um equilíbrio entre duas naturezas que a constituem – a humana e a divina. É
esta ambivalência que constitui o desafio da vida humana, e que impele o
guarani a superar sua natureza finita e buscar a perfeição que lhe aproxima
da condição divina. Aprender a conviver e a conhecer os outros seres que
habitam os limites do seu território é uma das estratégias deste povo.
Talvez, por isso, suas atitudes não sejam propriamente de conflito e de
enfrentamento aberto, mesmo quando há invasões em suas terras.

Em uma comunidade guarani é indispensável à existência de uma casa de reza,
a Opy. Nela se estreitam os vínculos com o Sagrado, se realizam os rituais
mais importantes, se estabelecem as condições para se ter saúde, se realizam
os processos de nomeação e de cura. E nos rituais sempre está presente o
cachimbo – petynguá, com o qual fazem uma espécie de defumação, que
possibilita a purificação, em alguns casos, e permite a transformação de um
certo objeto comum, em objeto guarani. Também nos rituais se observa o uso
do bastão de taquara – o taquapy – da flauta, do violão, da rabeca, do
maracá, que são alguns dos instrumentos que elevam o canto e dão força
comunicativa aos rituais. Tudo isso é parte indispensável para o bem viver,
na concepção Guarani.

O valor da palavra

Um segundo aspecto diz respeito à palavra, que para os guarani é um
importante elemento de constituição da pessoa e de elaboração contínua de
seu modo de viver. Estudiosos como Curt Nimuendajú e Bartomeu
Meliá afirmam que os guarani são “o povo da palavra”, e a prática de
escutar e de
falar configura sua organização social, política, religiosa. Graciela
Chamorro afirma, ainda, que a espiritualidade guarani é uma “experiência da
palavra” ancorada em uma complexa teologia que só se pode observar frente a
um estudo profundo e prolongado.

É pela palavra que a pessoa guarani vai sendo constituída, e essa produção
se inicia antes mesmo do nascimento de um novo ser, ou de sua concepção
propriamente dita. Para eles a vida se inicia quando um componente divino é
enviado e se coloca a caminho, até chagar e fazer morada em um corpo
guarani. Essa porção divina é enviada em forma de palavra-alma e se torna
pessoa à medida que vai sendo pronunciada, lida, inventada, através de
palavras que são proferidas pelos pais, pelos líderes religiosos, pela
comunidade, em diferentes momentos cotidianos e rituais. Observa-se, assim,
que a palavra é um componente central no dia-a-dia dos guarani e ela se
converte em conselhos e ensinamentos (dos pais para os filhos, dos anciãos – karaí – para os jovens, e assim por diante). Uma das maiores preocupações
dos pais é assegurar o desenvolvimento da criança e faz necessário dizer que
eles são extremamente afetivos e cuidadosos com ela, tratando-a como se
fosse um hóspede querido, para que, então, se acostume com a vida, condição
finita e humana. Ao longo da vida, uma pessoa guarani precisa aprender
certas condutas que lhe permitam aproximar-se cada vez mais de sua porção
divina, e, portanto da palavra que expressa a sua alma. Assim, o respeito a
várias regras, no dia-a- dia, assegura que nela se mantenha e se aprimore as
características divinas – ser generoso, escutar a palavra dos outros,
compartilhar, ser leve, manter-se alegre, são manifestações de divindade. O
contrário pode também ocorrer quando, por exemplo, as pessoas desrespeitam
as regras sociais e, neste caso, a porção humana prevalecerá e elas estarão
cada vez mais próximas dos animais.

O significado central da palavra na vida dos guarani pode ser pensado,
ainda, pelas formas como eles definem e organizam a chefia: pode-se dizer
que o poder de alguém nestas sociedades não se estabelece pela coerção de um
chefe que possui o direito de ser ouvido, e sim pela capacidade oratória
desse chefe, que tem o dever de falar, de ser convincente naquilo que diz,
utilizando, para isso, as palavras com sinceridade e falando com o coração.
Os guarani nos falam continuamente que a palavra deve expressar a verdade, o
bom sentimento, e deixar ver aquilo que somos. E, por acreditar nisso, eles
são notáveis no exercício da tolerância, na diplomacia e do respeito pelos
outros. Eles acreditam que a palavra tem o poder de construir o
entendimento, quando proferida com sinceridade, por isso a principal forma
de luta política desse povo se dá por meio do discurso – sempre que
convidados a falar, eles elaboram sua intervenção de modo a estabelecer o
entendimento e o respeito (partem, quase sempre de uma fala mais elogiosa,
que valoriza o interlocutor), e só então apresentam sua reivindicação, para
que esta possa ser efetivamente ouvida e compreendida. Ocorre que, na
dinâmica das relações políticas da sociedade ocidental contemporânea, a
palavra não funciona, necessariamente, como expressão da verdade e da mútua
compreensão e, talvez, por isso, muitas vezes os discursos guarani não são
vistos como formas de luta e nem como expressões de um firme posicionamento.

É importante destacar, ainda como aspecto relevante, a dinamicidade da
língua: os guarani mantém, de um modo geral, a comunicação cotidiana em sua
própria língua, sendo o português e o espanhol línguas utilizadas para
estabelecer relações com os outros. Em cada uma das parcialidades da etnia
guarani, a língua falada apresenta diferenças importantes, de pronúncia, de
estilo, de expressões, em função da realidade cultural, social e política
nas regiões onde vivem.

IHU On-Line – Que vínculo os índios guarani mantêm com a terra?

Embora este povo possua
vínculos ancestrais com um amplo território, eles vivem, em grande maioria,
em pequenas porções de terra, com áreas que variam entre 5 a 500 hectares.
No Brasil, a situação mais complexa é a de *Mato Grosso do Sul*, onde poucas
áreas estão efetivamente demarcadas, sendo que uma grande parcela da
população *Kaiowá* vive confinada em pequenas reservas e ou em acampamentos
de beira de estradas. No *Rio Grande do Sul*, também existem diversas
comunidades *Mbyá* vivendo às margens das rodovias. É preciso dizer, antes
de mais nada, que esta não é uma opção dos guarani e, sim, uma condição que
a eles foi imposta em função do modelo de ocupação e de desenvolvimento
regional e nacional.

Viver em pequenas porções de terra não é adequado a um povo para quem a
terra é fonte de vida, é lugar onde se restabelecem elos entre eles e seus
ancestrais, onde se celebra a vida, onde se cultiva a porção divina que vive
em cada pessoa, e onde se organiza o viver. Sobre ela se estrutura o nhande
rekó – o modo de ser guarani.

Ainda em relação aos vínculos dos guarani com a terra, é importante lembrar
que uma marca distintiva deste povo é sua mobilidade. Neste sentido, a vida
guarani pode ser pensada como um “contínuo caminhar”. Eles se movimentam num
amplo território, hoje compartilhado com muitas outras pessoas (e
constituído também pela presença de cidades, de fazendas, de plantações, de
matas). No entender de muitos estudiosos que se dedicam à cultura guarani, a
mobilidade não se refere apenas a um modo de relacionamento com a terra, mas
constitui também o *nhande rekó*, que prevê a mobilidade das pessoas e das
famílias entre os grupos e a mobilidade dos grupos no interior do território
mais amplo. Como estilo de vida, a mobilidade colabora para a produção de
saberes, para a circulação maior de bens, de sementes, de ervas medicinais,
e ainda proporciona às pessoas o desenvolvimento de certas capacidades que
são consideradas importantes para assegurar o bem viver. Neste perambular
constante, os guarani vão incorporando elementos de distintas regiões e
culturas aos seus modos de viver, e vão também restabelecendo laços de
parentesco, de colaboração, de partilha, aspectos fundamentais para a
cultura e para a tradição deste povo.

Os guarani possuem vínculos com um território geográfico amplo, não mais
contínuo como no passado, que é compartilhado por diferentes sociedades e no
qual eles se mantém perambulando, estabelecendo intercâmbios, formando
aldeias em locais estratégicos, constituindo referenciais simbólicos e
práticos. As formas de ocupação acontecem, portanto, através de
deslocamentos concretos desses grupos, mas também pressupõem uma dimensão
religiosa.

IHU On-Line – Por que alguns guarani vivem à beira das estradas, em
especial na região Sul do Rio Grande do Sul? Que aspectos antropológicos
explicam esse fato?

Os vínculos dos guarani
com seu território são profundos e envolvem elementos materiais e
espirituais, conforme assinalamos anteriormente. Para os guarani, a vida, em
toda a plenitude e potencialidade, só pode se concretizar em um *tekoha* –
um espaço específico onde se pode viver ao estilo guarani. De acordo
com Bartomeu
Melià, um tekoha não é um lugar qualquer, e sim um espaço assim
identificado com a intervenção dos espíritos, que orientam o olhar do xamã
(o *Karaí*). Neste lugar é que se dão as condições para que se realize o
modo de ser guarani, e ele deve apresentar uma série de características que
envolvem aspectos ambientais, sociais e sobrenaturais. É necessário que o *
Karaí sonhe com este local e, em geral, um tekoha deve ter água e matas,
campos, animais, ervas, espaço para plantar e cultivar alimentos (o milho, a
mandioca, batata doce, amendoim, feijão, melancia, abobora).

Neste sentido, quando os guarani ocupam um espaço ínfimo, à beira de uma
rodovia, o que estariam nos dizendo? Quase sempre essa ocupação é, na
verdade, o limite mais próximo que eles conseguem estar de uma área mais
ampla, identificada como um *tekohá*, e que quase sempre se situa “do lado
de dentro” das cercas que dividem certas propriedades.

Na atualidade, há uma intensa mobilização deste povo para que se realize a
demarcação de suas terras, embora eles não utilizem estratégias de impacto e
visibilidade, tal como fazem outros povos que ocasionalmente bloqueiam
estradas, ocupam sedes de órgãos de assistência, etc. Existem cerca de 150
terras guarani a serem demarcadas no Brasil, e esta é uma responsabilidade
do governo federal. No entanto, os poderes públicos têm agido de maneira
negligente, desrespeitando prazos para os procedimentos demarcatórios,
omitindo-se em conflitos que colocam em risco a vida de algumas destas
comunidades e deixando de cumprir os preceitos constitucionais que
estabelecem, clara e irrefutavelmente, o direito dos povos indígenas às
terras que tradicionalmente ocupam. Em todo o ano de 2009, o governo
Lula emitiu apenas um decreto de homologação de terra para o povo
guarani. O
decreto, assinado em 21/12/2009, homologa a demarcação da terra indígena
Arroio-Korá, no Mato Grosso do Sul, com 7.175 hectares. Infelizmente,
dois dias depois, na véspera do dia de Natal, o ministro Gilmar Mendes, do
STF, concedeu liminar aos fazendeiros e os indígenas não puderam comemorar
nem mesmo esta única homologação.

A luta pela terra

Também devido à luta por suas terras e por serem obrigados a viverem
confinados em pequenos espaços territoriais, várias lideranças indígenas têm
sido vítimas de violências. O povo guarani é o que mais sofre violências no
Brasil. O estado de Mato Grosso do Sul, onde vive o maior contingente
populacional deste povo, continua sendo recordista violências e desrespeito
aos direitos indígenas. Em 2009, o estado continuou se destacando no número
de assassinatos de lideranças indígenas: foram 33 vítimas de assassinatos,
mais da metade dos casos de todo o país.

A prioridade do governo federal, evidenciada em diversas decisões tomadas
nestes últimos anos, tem sido a de incentivar grandes empreendimentos
econômicos, mesmo que estes possuam grandes impactos local, regional,
ecológico e social. Infelizmente, muitas das obras construídas ou projetadas
incidem sobre terras indígenas, e também os investimentos em monoculturas,
que exigem amplas áreas de terra, acabam por desrespeitar limites de terras
indígenas, dificultando as demarcações e gerando tensões e conflitos
expressivos em determinadas regiões. No governo do *presidente
Lula*registram-se os maiores índices de lucratividade de empresas, de
instituições bancárias, e os menores números de demarcações iniciadas e
finalizadas, e tais dados nos informam sobre o lugar que ocupa a temática
indígena neste contexto. Também nestes anos verifica-se um crescimento
assustador nos índices de violência praticada contra o povo guarani.

IHU On-Line – Que lições Sepé Tiaraju deixa para os guarani?

Uma consideração inicial
importante se faz necessária, quando abordamos essa questão: embora o povo
guarani, tal como a maioria dos povos indígenas que conhecemos, não vincule
sua história a certos nomes, a certos heróis, a feitos individuais
exemplares, como nós o fazemos, na atualidade pode-se dizer que *Sepé
Tiaraju* é um nome relevante para eles, e isso se explica por diferentes
razões. Possivelmente, por ter liderado um movimento de resistência
significativo na história desse povo, *Sepé* seria lembrado, juntamente com
outros tantos líderes. No entanto, na atualidade, o nome deste líder traz à
memória os acontecimentos de mais de 250 anos, que marcam um processo de
luta e de defesa das terras por eles ocupadas. *Sepé* é então um nome que
faz lembrar e celebrar, no canto, na dança, nas palavras dos homens e
mulheres de hoje, a histórica resistência de seus antepassados, em defesa da
terra e da liberdade.

Assim, quando os guarani dirigem-se para *São Gabriel*, a cada ano, na data
em que ocorreu o massacre de mais de 1500 guarani, no conflito que envolveu
os exércitos de Espanha e de Portugal, em disputa pela posse deste
território, eles não apenas o fazem para lembrar de *Sepé Tiaraju* como um
herói; eles seguem em caminhada, para lá realizar seus rituais, para
proferir suas palavras e aconselhar os jovens. Lá eles também celebram a
resistência, reativam o sonho e a esperança de ver garantidas as suas
terras. Esta é, portanto, uma ocasião de encontro, e serve para dar
materialidade à palavra, recontando acontecimentos marcantes, discutindo os
atuais problemas e especialmente, escutando os discursos proferidos pelos *
karaí*, que descrevem e, assim, antecipam o futuro desejado.


IHU On-Line – Qual a importância da cultura guarani na formação da
identidade do povo gaúcho?

A resistência do povo
guarani e os duros embates travados contra os exércitos da Espanha e
Portugal, em defesa da terra, são muito valorizados por alguns segmentos
sociais, intelectuais, militantes das causas populares e indígenas. Em
livros de história são escassas as informações sobre estes enfrentamentos e
lutas e, portanto, o que se tem acesso são fragmentos e relatos de
histórias. Essas histórias são transmitidas a algumas parcelas da população
através da tradição oral e do imaginário mítico, que vem sendo produzido a
partir dos simbolismos em torno das representações de Sepé Tiaraju.

O gauchismo tradicionalista acabou incorporando algumas representações de
Sepé nos seus contos, versos, prosas, músicas. Mas essa incorporação, de
fato, tende a acomodar os conflitos e tensões históricas e tudo ocorre como
se houvesse uma harmoniosa integração cultural. Além disso, em algumas
circunstâncias os sentidos são subvertidos – como, por exemplo, quando o
brado “Alto lá, esta terra tem dono”, atribuído a Sepé Tiaraju, é
incorporado a discursos de ruralistas, e passa a servir, então, como marca
de uma apropriação fundiária que gerou a expulsão e a situação de
vulnerabilidade que se encontram hoje os guarani. A expressão “Esta terra
tem dono”, no entender guarani e no entender capitalista tem significados
radicalmente distintos.


IHU On-Line – Como esses subgrupos (ou parcialidades) étnicos guarani se
modificaram ao longo do tempo? Que transformações sociais e culturais
marcaram a trajetória deles?

No Brasil, existem pelo
menos 240 povos indígenas diferentes, étnica e culturalmente falando. As
realidades também são distintas em função da geografia, das relações e
formas de contato, em função das perseguições, da discriminação, das
políticas de estado, das interferências dos grupos econômicos, políticos e
do Estado.

Os guarani, assim como os demais povos que convivem cotidianamente com a
sociedade envolvente, foram constituindo estratégias e mecanismos
necessários para compreender e saber conviver com as demais culturas. As
transformações ou modificações culturais são inevitáveis – aliás, não há
cultura no mundo que não seja continuamente reinventada, confrontada com
novas situações e com novas práticas. Exatamente porque são feitas de
práticas cotidianas, e não apenas de um conjunto de aspectos vinculados à
“tradição”, que as culturas – inclusive as nossas -, subsistem e se
movimentam.

Tal como as culturas ocidentais e nacionais, ao longo da história, as
culturas indígenas vão se adaptando, criando e recriando as maneiras e modos
de ser e de viver, reelaborando saberes, convenções, crenças, estruturas
políticas, econômicas, religiosas, etc. É uma pretensão um tanto
eurocêntrica a que nos leva a supor que ao incorporarmos, por exemplo, o
computador, as câmeras digitais, os celulares e tantos outros novos
artefatos, estaríamos aprimorando nossas culturas, e que as mudanças nas
culturas indígenas seriam signos de “perda cultural”.

Afirmar, no entanto que as culturas se transformam, não é o mesmo que dizer
que isso ocorre da mesma maneira em todos os cantos do mundo e para todos os
sujeitos. É importante ressaltar que as transformações são também
resultantes de relações de poder e de jogos de força que, em muitos casos,
resultam na submissão de alguns grupos ao estilo de vida ou aos padrões de
outros. É assim que precisamos entender as imposições feitas aos guarani,
quando estes são forçados, por exemplo, a viver em condições sub-humanas, e
a sobreviver de programas assistenciais e de distribuição de cestas básicas
para não morrer de fome, enquanto suas terras tradicionais continuam
ocupadas, loteadas, invadidas. É preciso considerar, portanto, que a maior
transformação nos modos de vida guarani decorre da não demarcação de suas
terras, e da omissão do Estado no que se refere à garantia de seus direitos.
Apesar de tantas adversidades e da opressão que lhes é imposta, os modos de
ser e de viver dos guarani nos mostram que é possível a existência de um
mundo onde sejam respeitadas as diferenças e a pluralidade de culturas e
povos. O modo de ser guarani – essa teimosia histórica em viver, em se
movimentar num amplo espaço territorial, em proferir sua palavra – nos
permite problematizar certas maneiras de pensar e de viver, nos questionando
a estrutura fundiária concentradora, injusta, violenta, as relações com o
meio ambiente que se baseiam na lucratividade e não no equilíbrio. Permite
também questionar as formas como se estabelecem as fronteiras nacionais, a
segregação e a exclusão geradas por elas, bem como o modelo de produção e as
formas de exercício de poder.

Para ler mais:

Essa terra tem dono, nós a recebemos de Deus e de São Miguel. Revista
IHU On-Line, no.
156

Guarani-Kaiowá. Truculência e omissão. Entrevista especial com Iara
Tatiana Bonin

Morro do Osso: A luta dos Caingangues na capital gaúcha. Entrevista
especial com Roberto Antonio Liebgott

Morro do Osso: uma luta dos povos indígenas do RS. Entrevista especial
com Roberto Antonio Liebgott
,

Os arrozeiros representam o enclave da violência. Entrevista
especial com Roberto Antonio Liebgott

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