Publicado originalmente na Revista do Engenheiro, em agosto de 1998
Semanalmente, uma voz destoa do coro favorável ao atual governo que se instalou na quase totalidade da imprensa brasileira. Após a posse de Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Biondi tornou-se uma espécie de outsider e, nos seus artigos publicados às quintas-feiras, no caderno de economia da Folha de S.Paulo, dedica-se a desmentir versões oficiais e manchetes otimistas. Com 42 anos de profissão, ele passou por praticamente todos os grandes veículos nacionais, sempre na área econômica, e leva um Prêmio Esso de Jornalismo Econômico na bagagem. Mais que isso, há quatro décadas observa e analisa a política econômica brasileira. Biondi falou à Revista do Engenheiro sobre o trabalho dos colegas jornalistas e o buraco nacional. “O país está caminhando para a grande crise do Real e eu não sei se o governo conseguirá segurá-la até as eleições.”
Nos seus artigos, reqüentemente você se refere aos “(de) formadores de opinião”. Que avaliação você faz da imprensa?
Desde que o Fernando Henrique assumiu, a imprensa vem submetendo a sociedade a uma lavagem cerebral. Isso em duas linhas: no que diz respeito à conjuntura, esconde tudo; quanto à política neoliberal, aderiu incondicionalmente. Por exemplo, as privatizações são feitas com aberrações terríveis, incluindo prazos, financiamentos do BNDES ao comprador e preços ridículos. E a imprensa tem um grande papel na passividade da sociedade.
A imprensa mente deliberadamente?
A imprensa usa dois artifícios, que são esconder a notícia ou, o que é pior, simplesmente invertê-la. Por exemplo, a queda na venda de televisores foi uma notícia devidamente escondida na última edição página do caderno de economia de um jornal e dada ao contrário no outro jornal, esse de economia. Apesar da Copa do Mundo, a venda de televisores caiu 25% em relação ao ano passado. No jornal de economia saiu que a venda em maio cresceu 8% em relação a abril, o que não quer dizer nada. O fato importante é que caiu em relação ao ano passado, não havendo reação coisíssima nenhuma, assim como o Dia das Mães deste ano e do ano passado foram terríveis para o comércio.
O que mais, por exemplo, tem saído assim na imprensa?
A imprensa publicou que o número de cheques sem fundos para cada mil caiu de 10,5 para 9,78. Esqueceu-se de dizer que há três anos, eram 1,9 por mil. No final do ano passado, estava em 8 por mil, no início do ano chegou a 11 por mil. Há aí um aumento de 500% a 600%, levando em conta que a consulta ao telecheque cresceu consideravelmente, já evitando um número significativo de devoluções. Como é que uma economia pode ir para frente com essa inadimplência? Em fins de abril, o Estadão deu em manchete indícios de retomada na economia. Para isso, publicou o crescimento, observado em março em relação a fevereiro, na venda de eletroeletrônicos e de carros. Dias depois, saiu o resultado das vendas de abril, registrando queda em relação a março e ao mesmo período em 1997. Essa notícia foi publicada em uma coluna, no pé da página 8 do caderno de economia. Eu acho que está havendo um descolamento entre a imprensa e o que a sociedade está vivendo. Os jornais continuam cor-de-rosa.
Estamos vivendo momentos muito graves do que publicam os jornais?
Biondi: O País está quebrado e a imprensa esconde. Até outubro, o Brasil tem que pagar entre U$ 100 e 125 bilhões. Um banqueiro norte-americano disse que são 100, mas os dados do Banco de Boston mostram que o Brasil deve a curto prazo US$ 175 bilhões, 70% disso até outubro. O Brasil quebrou no início de junho, e os jornais não noticiaram. O governo estava querendo comprar os títulos e os bancos queriam 27% de juros. Ele não aceitou essa taxa, mas terá de pagar no vencimento pelos juros que vigorarem no dia-a-dia, que é a volta do pós-fixado. O governo não estava mais conseguindo vender os seus títulos e não tinha dinheiro para pagar os que estavam vencendo, com isso chegou ao encilhamento que é a forma clássica do País quebrar: Para se ter uma idéia da manipulação, o próprio governo disse que em outubro o Banco Central chegou a vender US$ 20 bilhões no mercado futuro para segurar a cotação.
Qual o tamanho do rombo?
O Brasil teve um déficit no ano passado de US$ 8 bilhões; com turismo, gastamos cerca de US$ 4 bilhões por ano; com fretes são mais de US$ 4 bilhões; a remessa de dólares das empresas estrangeiras em 1997 chegou a US$ 6 bilhões. Com isso, você tem, por ano, um buraco de US$ 22 bilhões, além dos US$ 13 a 15 bilhões de juros. Esses US$ 35 bilhões representam o déficit em contas correntes, ou seja, o que gastamos por ano a mais do que temos a receber. Isso pode ser coberto com empréstimos e investimentos estrangeiros no País, mas à medida que a economia piora, não existem mais empresas que interesse comprar e as bolsas não atraem mais o investidor. A dificuldade do governo para conseguir empréstimos reflete-se no mercado futuro. No início de junho, a Bolsa despencou por falta de comprador e o mercado de dólares começou a subir: O governo jogou dinheiro do BNDES e dos fundos de pensão no mercado para segurar o dólar; a bolsa e os juros. Sua outra saída é vender títulos com correção cambial mais juros de 14% a 16%. Assim, o investidor está garantido contra uma maxidesvalorização da moeda.
Então o mercado já trabalha com a idéia de maxidesvalorização?
Biondi: Esse é o remédio clássico, que encareceria as importações e aumentaria as exportações. Se há uma máxi de 20%, por exemplo, R$ 100 só vão para comprar US$ 80. Nessa situação, o investidor pega o dinheiro e vai embora assim que puder. Aí entram os mercados futuros. Eu tenho R$ 100 milhões e tenho medo de uma máxi, tento vender acima. Com a taxa de juros, acontece o mesmo, os contratos já começam a ser feitos com juros maiores. O fato é que geraria um quadro inflacionário, além da desmoralização de tudo que se fez ao longo dos quatro anos.
Como chegamos a essa situação?
Biondi: Esse volume de importações destruiu o emprego no Brasil. Sempre se diz que a abertura foi feita para preparar a economia para a globalização e o governo não tinha outra saída. Para as pessoas entenderem que tudo isso é mentira, basta ter um número em mente: a tarifa modal brasileira, que é zero. Isso significa que essa é a tarifa cobrada sobre a maioria dos produtos importados. No Japão, é 16% e na Coréia, 23%. A opinião pública brasileira foi convencida de que o empresário nacional é ineficiente, inescrupuloso, ganancioso, atrasado… O imposto de importação é fixado pelos governos exatamente para compensar vantagens que um concorrente tenha. O Brasil tem muitas terras para plantar: Então, o Japão tarifa o arroz brasileiro para proteger sua agricultura. Uma coisa é dizer: “Não, nós temos uma economia fechada, superprotegida, vamos mudar.” Para isso, criam-se os mecanismos que existem no mundo, agora, escancarar o mercado só vai dizimar a indústria e a agricultura.
Também há ausência de política industrial no País.
O grande programa de investimentos do governo está no setor de telecomunicações. Nele, foram aplicados US$ 8,5 bilhões no ano passado. As indústrias nacionais de peças e componentes estão pedindo que seja fixado um mínimo de 20% de peças nacionais nos equipamentos fabricados aqui. Inicialmente, o governo tinha oferecido 10% e acabou liberando totalmente. A Ericsson, por exemplo, usa até 97% de peças importadas os seus equipamentos. Quando há um programa de investimentos em determinado setor, esse deveria gerar crescimento. Só que nesse caso não funciona, porque as empresas podem importar o quanto quiserem. Um artigo do Luciano Coutinho, de 7 de junho, mostra que mesmo nos Estados Unidos a participação estrangeira é de no máximo 20% e, em matéria de uso de peça local, a exigência é de 80%; na Suécia chega a mais de 90%; a própria Argentina tem limite de 30% para controle estrangeiro. Todo mundo se defende.
E quanto à agricultura?
Há uma política de massacre da agricultura. Excetuando a soja, que estava com preço internacional muito bom no ano passado, houve uma queda de plantio de todo o resto. Faltou crédito e o governo não comprou o que deveria. O Brasil era o maior exportador mundial de algodão. A nossa produção caiu 75%, agora está subindo 30%, com o desemprego só no Ceará de 200 mil famílias. Você está destruindo renda. Outro absurdo é a política de juros para a agricultura. Este ano, o produtor nacional não conseguiu vender seu algodão, porque a indústria está importando da Argentina para pagar em 400 dias a 8% ao ano. E, se a fábrica daqui for comprar do produtor, terá de tomar um empréstimo para pagar juros de 4% ou 5% ao mês. Com o trigo, é a mesma coisa. Chegamos a produzir 6 milhões de toneladas, no ano passado a produção foi de 2,8 milhões de toneladas e, na época do plantio deste ano, ainda tínhamos 1 milhão de toneladas encalhadas devido à importação da Argentina. Em 1995, foi um terror para a agricultura, o preço mínimo foi reajustado só para o feijão e amendoim, ainda assim abaixo da inflação; para os demais produtos foram reduzidos inclusive os preços nominais. Isso tudo sob o pretexto de forçar a modernização. A economia vai afundando porque houve queda na produção, na renda, no consumo do emprego, um afetando o outro. Até boi caiu, houve uma grande matança de vacas. Tanto que hoje a arroba está a R$ 27,00, quando tradicionalmente custa R$ 18 a 20,00 nesta época do ano, começando a subir a partir de agosto, mas o preço não caiu porque houve matança. O preço do milho também está disparando.
O que faz um governo ter uma política sistemática de destruição da economia interna?
É evidente que esse modelo foi implantado nos países em desenvolvimento por pressão dos EUA, que forçaram a abertura nos outros países gerando emprego internamente. Agora, o grau dessa abertura forçada variou de acordo com a postura do governo de cada país. Nós é que fomos muito além daquilo que as pressões externas pediam. Para entender essa equipe, a gente entra no terreno da psicologia, existe um deslumbramento do poder que desgraçadamente nós vimos em todas as equipes que passaram pelo governo.
E há chances de mudar esse quadro?
Há totais condições de reverter a situação do País. O Brasil tinha um superávit comercial de US$ 13 a 15 bilhões, porque tem condições de produzir tudo, possui terra, mão-de-obra, mercado interno, recursos naturais. Política econômica tem que levar geração de emprego, renda e consumo. Só um programa para o agricultor geraria emprego e renda no campo, dano condições de mudar esse quadro em um ano. Com as importações, basta seguir os outros países, não é para fechar de novo, mas criar tarifas e fixar financiamentos. Na área do déficit fiscal, basta combater a sonegação, que está no próprio receituário do FMI e do Banco Mundial.