Durante mais de 10 horas, há poucos dias, dezenas de pessoas ficaram reféns dentro de um ônibus, na cidade do Rio de Janeiro, pela ação criminosa de um dos passageiros que com um revolver apontado para a cabeça de sua ex-mulher ameaçava matá-la. Esse episódio, transmitido ao vivo pela TV, trouxe para o espaço público a violência doméstica e familiar contra a mulher, que muitos ainda fingem não ver. Soube-se, depois, que Cristina, esse o nome da vitima, já registrara na policia duas queixas contra o agressor por cárcere privado e por ameaça de morte, mas essa busca por justiça não foi atendida.
No ônibus, oculto atrás das cortinas, o agressor parecia pedir ou desafiar – prendam-me se forem capazes! Felizmente, seu show terminou sem sangue e nos possibilitou avaliar o quão urgente torna-se a aplicabilidade da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha, nome dado em homenagem à cearense Maria da Penha, tornada paraplégica pela ação criminosa de seu marido.A história da homenageada é paradigmática como exemplo da incidência dessa forma de violência no Brasil e como testemunho da impunidade dos agressores. De fato, somente 19 anos após o crime, por força da ação de grupos de defesa dos direitos humanos e feministas junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estado Americanos – OEA, finalmente o agressor foi punido.
Tendo entrado em vigor no dia 22 de setembro deste ano, a Lei Maria da Penha foi elaborada especificamente para enfrentar o grave e epidêmico problema da violência doméstica e familiar contra a mulher através da criação de mecanismos específicos. Define o que é essa criminalidade, prevê a obrigação do Estado de atuar preventivamente contra essa violência através da inclusão das agredidas em programas sociais, reconhecendo as distintas vulnerabilidades existentes. Facilita o seu acesso à justiça e às necessárias medidas protetivas de urgência, muitas delas no campo do direito de família, para deter a escalada de violência.
Assim, o Juiz pode determinar a retirada de arma do agressor, o seu afastamento do domicílio familiar, a fixação de pensão alimentícia para os filhos menores. A Lei 11.340/2006 impede, nos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra as mulheres, a aplicação dos artigos da parte criminal da Lei 9.099/95 que considera os crimes punidos com pena de até dois anos como “crimes de menor potencial ofensivo”, dentre os quais as lesões corporais, as ameaças e o cárcere privado, modalidades costumeiras de violência doméstica contra as mulheres. Nesse sentido, agora esperamos que os agressores não mais se beneficiem da impunidade ou do simples pagamento das famosas “cestas básicas”.
A Lei Maria da Penha resgata, ainda, o entendimento do Código Penal brasileiro que, em seu artigo 61, incluiu dentre as circunstâncias que tornam o crime mais grave, o fato do agressor ter cometido o crime prevalecendo-se de relações afetivas e domésticas.
O velho e nefasto argumento de se considerar a violência doméstica como assunto da vida privada tem sido utilizado para manter as mulheres exiladas do seu direito à segurança, sob o domínio do medo, abdicando do seu direito à autodeterminação em prol de uma ordem ilegal que pretende tornar aceitáveis e naturais os atos violentos, criminosos e, portanto, atentatórios à dignidade da pessoa humana.
Essa ordem ilegal não necessariamente passa pela violência explícita sob a forma de agressões físicas, tentativas de assassinatos ou mesmo assassinatos. Manifesta-se muitas vezes através da violência simbólica, sem palavras, que se estabelece pelas vias do sentimento e da dependência, pela geração de um medo difuso – medo da vida, medo da solidão, medo de denunciar, medo de ter medo, medo de ser morta.
Viva a Lei Maria da Penha que, finalmente, faz com que o Brasil cumpra a Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, aprovada pela OEA e ratificada, desde 1995, pelo nosso País. Vamos defendê-la, vamos exigir a sua efetiva aplicabilidade!
* Advogada, coordenadora executiva da organização não-governamental CEPIA e coordenadora do Comitê de Especialistas da OEA para o monitoramento da Convenção de Belém do Pará
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