Em face do gigantismo do território e da situação real em que se encontram os seus macrobiomas – Amazônia Brasileira, Brasil Tropical Atlântico, Cerrados do Brasil Central, Planalto das Araucárias e Pradarias Mistas do Brasil Subtropical – e de seus numerosos mini-biomas, faixas de transição e relictos de ecossistemas, qualquer tentativa de mudança no “Código Florestal” tem de ser conduzida por pessoas competentes e bioeticamente sensíveis.
Pressionar por uma liberação ampla dos processos de desmatamento significa desconhecer a progressividade de cenários bióticos, a diferentes espaços de tempo futuro. Favorecendo de modo simplório e ignorante os desejos patrimoniais de classes sociais que só pensam em seus interesses pessoais, no contexto de um país dotado de grandes desigualdades sociais.
Cidadãos de classe social privilegiada, que nada entendem de previsão de impactos. Não têm qualquer ética com a natureza. Não buscam encontrar modelos técnico-científicos adequados para a recuperação de áreas degradadas, seja na Amazônia, seja no Brasil Tropical Atlântico ou alhures. Pessoas para as quais exigir a adoção de atividades agrárias “ecologicamente auto-sustentadas” é uma mania de cientistas irrealistas.
Por muitas razões, se houvesse um movimento para aprimorar o atual Código Florestal, teria que envolver o sentido mais amplo de um Código de Biodiversidades, levando em conta o complexo mosaico vegetacional de nosso território. Remetemos essa idéia para Brasília e recebemos resposta de que era boa, mas complexa e inoportuna (…). Entrementes, agora outras personalidades trabalham por mudanças estapafúrdias e arrasadoras no chamado Código Florestal.
Razão pela qual ousamos criticar aqueles que insistem em argumentos genéricos e perigosos para o futuro do país. Sendo necessário, mais do que nunca, evitar que gente de outras terras, sobretudo de países hegemônicos, venha a dizer que fica comprovado que o Brasil não tem competência para dirigir a Amazônia (…). Ou seja, os revisores do atual Código Florestal não teriam competência para dirigir o seu todo territorial do Brasil. Que tristeza, gente minha.
O primeiro grande erro dos que no momento lideram a revisão do Código Florestal brasileiro – a favor de classes sociais privilegiadas – diz respeito à chamada estadualização dos fatos ecológicos de seu território específico. Sem lembrar que as delicadíssimas questões referentes à progressividade do desmatamento exigem ações conjuntas dos órgãos federais específicos, em conjunto com órgãos estaduais similares, uma Polícia Federal rural e o Exército Brasileiro. Tudo conectado ainda com autoridades municipais, que têm muito a aprender com um Código novo que envolva todos os macrobiomas do país e os mini-biomas que os pontilham, com especial atenção para as faixas litorâneas, faixas de contato entre as áreas nucleares de cada domínio morfoclimático e fitogeográfico do território.
Para pessoas inteligentes, capazes de prever impactos, a diferentes tempos do futuro, fica claro que ao invés da “estadualização” é absolutamente necessário focar para o zoneamento físico e ecológico de todos os domínios de natureza do país. A saber, as duas principais faixas de Florestas Tropicais Brasileiras, a zona amazônica e a zona das matas atlânticas; o domínio dos cerrados, cerradões e campestres; a complexa região semi-árida dos sertões nordestinos; os planaltos de araucárias e as pradarias mistas do Rio Grande do Sul; além de nosso litoral e o Pantanal mato-grossense.
Seria preciso lembrar ao honrado relator Aldo Rabelo, que a meu ver é bastante neófito em matéria de questões ecológicas, espaciais e em futurologia – sendo que atualmente na Amazônia Brasileira predomina um verdadeiro exército paralelo de fazendeiros que em sua área de atuação têm mais força do que governadores e prefeitos. O que se viu em Marabá, com a passagem das tropas de fazendeiros, passando pela Avenida da Transamazônica, deveria ser conhecido pelos congressistas de Brasília e diferentes membros do Executivo. De cada uma das fazendas regionais passava um grupo de cinqüenta a sessenta camaradas, tendo a frente em cavalos nobres o dono da fazenda e sua esposa e filhos em cavalos lindos.
E os grupos iam passando separados entre si, por alguns minutos. E, alguém a pé, como se fosse um comandante, controlava a passagem da cavalgada dos fazendeiros. Ninguém da boa e importante cidade de Marabá saiu para observar a coluna amedrontadora dos fazendeiros. Somente dois bicicletistas meninos deixaram as bicicletas na beira da calçada olhando silentes a passagem das tropas. Nenhum jornal do Pará, ou alhures, noticiou a ocorrência amedrontadora. Alguns de nós não pudemos atravessar a ponte para participar de um evento cultural.
Será certamente, apoiados por fatos como esse, que alguns proprietários de terras amazônicas deram sua mensagem, nos termos de que “a propriedade é minha e eu faço com ela o que eu quiser, como quiser e quando quiser”? Mas ninguém esclarece como conquistaram seus imensos espaços inicialmente florestados. Sendo que, alguns outros, vivendo em diferentes áreas do centro-sul brasileiro, quando perguntados sobre como enriqueceram tanto, esclarecem que foi com os “seus negócios na Amazônia” (…). Ou seja, através de loteamentos ilegais, venda de glebas para incautos em locais de difícil acesso, os quais ao fim de um certo tempo são libertados para madeireiros contumazes.
E o fato mais infeliz é que ninguém procura novos conhecimentos para reutilizar terras degradadas. Ou exigir dos governantes tecnologias adequadas para revitalizar os solos que perderam nutrientes e argilas, tornando-se dominados por areias finas (siltização).
Entre os muitos aspectos caóticos, derivados de alguns argumentos dos revisores do Código, destaca-se a frase que diz que se deve proteger a vegetação até sete metros e meio do rio. Uma redução de um fato que por si já estava muito errado, porém agora está reduzido genericamente a quase nada em relação aos grandes rios do país. Imagine-se que para o rio Amazonas a exigência protetora fosse apenas sete metros, enquanto para a grande maioria dos ribeirões e córregos também fosse aplicada a mesma exigência. Trata-se de desconhecimento entristecedor sobre a ordem de grandeza das redes hidrográficas do território intertropical brasileiro. Na linguagem amazônica tradicional, o próprio povo já reconheceu fatos referentes à tipologia dos rios regionais.
Para eles, ali existem, em ordem crescente: igarapés, riozinhos, rios e parás. Uma última divisão lógica e pragmática, que é aceita por todos os que conhecem a realidade da rede fluvial amazônica.
Por desconhecer tais fatos os relatores da revisão aplicam o espaço de sete metros da beira de todos os cursos d’água fluviais sem mesmo ter ido lá para conhecer o fantástico mosaico de rios do território regional.
Mas o pior é que as novas exigências do Código Florestal proposto têm um caráter de liberação excessiva e abusiva. Fala-se em sete metros e meio das florestas beiradeiras (ripário-biomas) e depois em preservação da vegetação de eventuais e distantes cimeiras. Não podendo imaginar quanto espaço fica liberado para qualquer tipo de ocupação do espaço. Lamentável em termos de planejamento regional, de espaços rurais e silvestres. Lamentável em termos de generalizações forçadas por grupos de interesse (ruralistas).
Já se poderia prever que um dia os interessados em terras amazônicas iriam pressionar de novo pela modificação do percentual a ser preservado em cada uma das propriedades de terras na Amazônia. O argumento simplista merece uma crítica decisiva e radical. Para eles, se em regiões do centro-sul brasileiro a taxa de proteção interna da vegetação florestal é de 20%, por que na Amazônia a lei exige 80%? Mas ninguém tem a coragem de analisar o que aconteceu nos espaços ecológicos de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais com o percentual de 20%. Nos planaltos interiores de São Paulo a somatória dos desmatamentos atingiu cenários de generalizada derruição.
Nessas importantes áreas, dominadas por florestas e redutos de cerrados e campestres, somente o tombamento integrado da Serra do Mar, envolvendo as matas atlânticas, os solos e as aguadas da notável escarpa foi capaz de resguardar os ecossistemas orográficos da acidentada região. O restante, nos “mares de morros”, colinas e várzeas do Médio Paraíba e do Planalto Paulistano, e pró-parte da Serra da Mantiqueira, sofreram uma derruição deplorável. É o que alguém no Brasil – falando de gente inteligente e bioética – não quer que se repita na Amazônia brasileira, em um espaço de 4.200.000 km².
Os relatores do Código Florestal falam que as áreas muito desmatadas e degradadas poderiam ficar sujeitas a “(re)florestamento” por espécies homogêneas pensando em eucalipto e pinus. Uma prova de sua grande ignorância, pois não sabem a menor diferença entre reflorestamento e florestamento. Esse último, pretendido por eles, é um fato exclusivamente de interesse econômico empresarial, que infelizmente não pretende preservar biodiversidades. Sendo que eles procuram desconhecer que para áreas muito degradadas foi feito um plano de (re)organização dos espaços remanescentes, sob o enfoque de revigorar a economia de pequenos e médios proprietários: o Projeto FLORAM.
Os eucaliptólogos perdem sentido ético quando alugam espaços por trinta anos de incautos proprietários, preferindo áreas dotadas ainda de solos tropicais férteis, do tipo dos oxissolos, e evitando as áreas degradadas de morros pelados reduzidas a trilhas de pisoteio, hipsométricas, semelhantes ao protótipo existente no Planalto do Alto Paraíba, em São Paulo. Isso ao arrendar terras de bisonhos proprietários, para uso em 30 anos, e sabendo que os donos da terra podem morrer quando se completar o prazo. Fato que cria um grande problema judicial para os herdeiros, sendo que ao fim de uma negociação as empresas cortam todas as árvores de eucaliptos ou pinus, deixando miríades de troncos no chão do espaço terrestre. Um cenário que impede a posterior reutilização das terras para atividades agrárias. Tudo isso deveria ser conhecido por aqueles que defendem ferozmente um Código Florestal liberalizante.
Por todas as razões somos obrigados a criticar a persistente e repetitiva argumentação do deputado Aldo Rebelo, que conhecemos há muito tempo e de quem sempre esperávamos o melhor. No momento somos obrigados a lembrar a ele que cada um de nós tem de pensar na sua biografia e, sendo político, tem de honrar a história de seus partidos. Principalmente em relação aos partidos que se dizem de esquerda e jamais poderiam fazer projetos totalmente dirigidos para os interesses pessoais de latifundiários.
Insistimos que em qualquer revisão do Código Florestal vigente deve-se enfocar as diretrizes através das grandes regiões naturais do Brasil, sobretudo domínios de natureza muito diferentes entre si, tais como a Amazônia e suas extensíssimas florestas tropicais, e o Nordeste Seco, com seus diferentes tipos de caatingas. Trata-se de duas regiões opósitas em relação à fisionomia e à ecologia, assim como em face das suas condições sócio-ambientais. Ao tomar partido pelos grandes domínios administrados técnica e cientificamente por órgãos do Executivo federal, teríamos de conectar instituições específicas do governo brasileiro com instituições estaduais similares. Existem regiões como a Amazônia, que envolve conexões com nove estados do Norte brasileiro. Em relação ao Brasil Tropical Atlântico os órgãos do Governo Federal – IBAMA, IPHAN, FUNAI e INCRA – teriam que manter conexões com os diversos setores similares dos governos estaduais de norte a sul do Brasil. E assim por diante.
Enquanto o mundo inteiro repugna para a diminuição radical de emissão de CO2, o projeto de reforma proposto na Câmara Federal de revisão do Código Florestal defende um processo que significará uma onda de desmatamento e emissões incontroláveis de gás carbônico, fato observado por muitos críticos em diversos trabalhos e entrevistas.
Parece ser muito difícil para pessoas não iniciadas em cenários cartográficos perceber os efeitos de um desmatamento na Amazônia de até 80% das propriedades rurais silvestres.
Em qualquer espaço do território amazônico que vêm sendo estabelecidas glebas com desmate de até 80% haverá um mosaico caótico de áreas desmatadas e faixas de inter-propriedades estreitas e mal preservadas. Nesse caso, as bordas dos restos de florestas, inter-glebas, ficarão à mercê de corte de árvores dotadas de madeiras nobres. E, além disso, a biodiversidade animal certamente será profundamente afetada.
Seria necessário que os pretensos reformuladores do Código Florestal lançassem sobre o papel os limites de glebas de 500 a milhares de quilômetros quadrados, e dentro de cada parcela das glebas colocassem indicações de 20% correspondentes às florestas ditas preservadas. E, observando o resultado desse mapeamento simulado, poderiam perceber que o caminho da devastação lenta e progressiva iria criar alguns quadros de devastação similares ao que já aconteceu nos confins das longas estradas e seus ramais, em áreas de quarteirões implantados para venda de lotes de 50 a 100 hectares, onde o arrasamento de florestas no interior de cada quarteirão foi total e inconseqüente.
Aziz Ab’Saber é professor emérito de geografia da USP e já produziu diversos trabalhos sobre a Amazônia Brasileira, tendo mais de 400 trabalhos acadêmicos publicados.