Raquel Júnia,
do Rio de Janeiro
O 3º Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH 3), em uma das ações estratégicas, dizia: “apoiar a aprovação de projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre os seus corpos”. No entanto, o decreto 7.177, de 12 de maio de 2010, modifica pontos do programa, inclusive este. A redação agora ficou assim: “considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde”. Assim, o tema da descriminalização foi suprimido do PNDH 3.
A modificação foi criticada por movimentos de mulheres e organizações em defesa dos direitos humanos, muitas delas articuladas na campanha pela integralidade do PNDH 3. Como informou a primeira reportagem desta série, sobre ensino e símbolos religiosos no Estado laico (publicada na edição 381), a campanha quer a revogação do decreto 7.177.
A descriminalização do aborto é tema de pelo menos dois projetos de lei que tramitam na Câmara dos Deputados – um deles em discussão desde 1991. Outros vários projetos falam sobre a permissão do aborto em casos de enfermidade congênita grave apresentada pelo feto, como a anencefalia. Atualmente, a gestante que pratica o aborto pode sofrer pena de um a três anos de prisão. A prática é assegurada, no entanto, em situações nas quais a mulher corre risco de vida ou está grávida em decorrência de um estupro.
Nesta segunda reportagem da série sobre as modificações no PNDH 3, a EPSJV/Fiocruz pretende estimular reflexões sobre a descriminalização do aborto. Neste sentido, esta matéria traz dados de pesquisa recente sobre quantas e quem são as mulheres que abortam no país, além de um panorama sobre como o tema tem sido tratado na esfera legislativa.
Mudança não agrada
Segundo a doutora em sociologia da religião, Regina Jurkewicz, membro da coordenação da entidade feminista Católicas pelo Direito de Decidir, o PNDH 3 é fruto de um processo de reuniões que resultaram na Conferência Nacional de Direitos Humanos e, portanto, não poderia ser modificado. “Não é algo que saiu da cabeça de alguém, foi feito com a contribuição da sociedade organizada. A nossa primeira reação foi no sentido de parabenizar o ministro Paulo Vannuchi [secretário especial de Direitos Humanos da Presidência da República], porque o plano, como foi concebido, é ousado, toca em questões de fundo”, destaca.
Ela lembra, entretanto, que a pressão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) contribuiu para a modificação do texto original. “O fato é que houve esse jogo de forças e pressão que fizeram com que o plano fosse alterado. Defendemos a posição integral que apareceu no primeiro texto, porque é muito mais forte você pensar em apoiar projetos em favor da descriminalização do que passar pelo reconhecimento do aborto como questão de saúde pública, que é algo que já vem sendo afirmado pelo presidente Lula e pelo ministro [da Saúde José Gomes] Temporão”, analisa.
Segundo Regina, já que houve a mudança PNDH 3, é preciso defender que se coloque em prática pelo menos o conteúdo que está no texto atual – a garantia de que o problema seja tratado pelo viés da saúde pública. Ela ressalta que atualmente os serviços de saúde públicos não contemplam sequer os casos previstos em lei para a prática do aborto e que as mulheres pobres, que não têm recursos para pagar clínicas clandestinas, recorrem aos hospitais públicos para realizar a curetagem (procedimento cirúrgico para limpeza do útero). “Mais cedo ou mais tarde vai se esbarrar de novo no problema da descriminalização”, antecipa.
Se, por um lado, o movimento de mulheres ficou descontente com as mudanças feitas no PNDH 3 original, por outro, parlamentares que são contra a descriminalização do aborto também não ficaram satisfeitos. É o caso do deputado petista Odair Cunha (PT-MG), autor de um projeto de lei que cria o Estatuto do Nascituro. A proposta caracteriza o “nascituro” como um ser humano concebido, mas ainda não nascido, inclusive os concebidos in vitro, “ou através de clonagem ou outro meio científica e eticamente aceito”.
O PL foi rejeitado recentemente na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados não por seu conteúdo, mas por haver outra proposta com teor idêntico a dele, dos deputados Luiz Bassuma (PV-BA) e Miguel Martini (PHS-MG). “[O item sobre a descriminalização do aborto no texto original do PNDH 3] é um equívoco. Fala em direitos humanos, mas e o humano que há no nascituro não deve ser garantido? Tanto que o governo fez uma revisão. Tratar como saúde pública é diferente de descriminalizar o aborto. Nunca achei que a mulher não deve ser atendida no sentido de saúde, mas isso não significa que ela se verá livre de problemas com a justiça. A versão atual aponta no sentido de garantir o direito humano. Mas acho que esse tema não deveria ser tratado no PNDH, então nenhum dos dois textos é adequado”, avalia Odair.
O autor do outro projeto, deputado Luiz Bassuma, também critica a proposta. “Como o tema estava, nós achamos um absurdo, como ele está agora, virou alguma coisa em cima do muro. Fica na posição de quem não quer se desgastar e prefere agrupar uma posição dúbia: fala que continua sendo uma questão de saúde pública, mas nem remete para a legalização do aborto e muito menos diz que é contra”, afirma.
Em visita à EPSJV/Fiocruz, onde foi o convidado da aula inaugural do ano letivo, no dia 12 de março, Paulo Vannuchi argumentou à favor da descriminalização do aborto. Ele lembrou, entre outras coisas, que não há comprovações científicas de que a vida começa na concepção. (Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz)
Descriminalização está parada no Congresso
Desde 1991, está tramitando na Câmara o projeto de lei 1.135, de autoria do ex-deputado Eduardo Jorge (PT/SP), que propõe suprimir do Código Penal o artigo 124, que inclui a prática de aborto como crime e estipula pena de detenção de um a três anos para quem o comete. A última movimentação do PL remonta a 2008, quando esteve prestes a ser arquivado. Na ocasião, o deputado federal José Genoíno (PT/SP) apresentou um recurso para que fosse apreciado no plenário. Apensado ao PL 1.135, tramita uma proposta do próprio Genoíno (PL 176/95) que garante que a mulher possa abortar até os 90 dias de gestação, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com acompanhamento médico, psicológico e de assistência social. Porém, o parlamentar acha que dificilmente haverá debate sobre o projeto em 2010, posto que é ano eleitoral.