Luta política é igualada a crime comum

RECIFE – No último relatório sobre conflitos no campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), onde são abordados preliminarmente alguns números referentes ao ano de 2006 (o documento completo será divulgado mês que vem), chama a atenção um aumento de 351,2% nos casos de trabalhadores rurais presos (num total de 749 pessoas) em relação a 2005.

Em uma análise ampliada do período do primeiro mandato do governo Lula, a CPT contabilizou, por outro lado, um número de 99,7 mil famílias de trabalhadores rurais despejadas por ordem judicial, o que, adicionando-se as 11,3 mil famílias expulsas sem mandado da Justiça, totaliza 110 mil famílias retiradas de forma forçada da terra; o equivalente a um terço do total assentado pelo governo neste período.

Os casos acima são sintomáticos de um tratamento jurídico recorrente dispensado aos movimentos sociais do campo, impregnado pelo arcaísmo do conceito de direito à propriedade dos tempos da Lei de Terras de 1850 (que instituiu a compra como único instrumento de acesso à terra para evitar, com a abolição do tráfico de escravos, o assentamento de colonos e negros). Ou seja, na defesa desta concepção, a Justiça conservadora tem optado claramente pela criminalização dos “agentes subversivos”.

Uma pesquisa recente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) nos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Pará e Pernambuco constatou que a tática mais comum do Poder Judiciário frente aos movimentos de luta pela terra tem sido igualar ações de cunho político – principalmente as ocupações com objetivo de pressionar o governo a agilizar a reforma agrária – a atos criminais comuns.

“Formalmente, a judicialização dos conflitos agrários se dá por meio das acusações freqüentes que criminalizam as ações centrais das estratégias de ocupação de terras utilizadas pelos movimentos políticos”, afirma o IBCCRIM, destacando, neste contexto, a utilização massiva da acusação de formação de quadrilha ou bando (criminalização da ação coletiva).

Ainda segundo a pesquisa do IBCCRIM, para boa parte dos magistrados a questão social é irrelevante para o aplicador da lei, não estando os movimentos sociais “autorizados a condutas ilegais”. Não obstante, não é raro que os movimentos e suas lideranças sofram preconceitos de cunho anti-esquerda, anti-socialista e anti-estatista. Segundo o pesquisador do IBCCRIM, Frederico de Almeida, as convicções ideológicas de muitos juizes auto-intitulados legalistas justificam o discurso de que “é preciso separar o joio do trigo, trabalhadores de mãos calejadas de bandidos”, quando a ação envolve o MST, por exemplo.

Como principal movimento organizado de luta pela terra, o MST e suas lideranças têm sido de longe os principais protagonistas do quadro descrito pelo IBCCRIM, a exemplo do processo contra o dirigente nacional do movimento em Pernambuco, Jaime Amorim.

Denunciado em março do ano passado pelo Ministério Público por ter participado, em 2005, de uma manifestação em frente ao consulado americano contra a visita do presidente dos EUA, George Bush, “deteriorando coisa alheia, incitando à prática de crime publicamente e desobedecendo a ordem legal da Polícia Militar”, Amorim teve a prisão preventiva decretada porque não compareceu a uma audiência de interrogatório.

“Alegando que não sabia o endereço de Jaime, a Justiça publicou a convocação para a audiência no Diário Oficial. Como esse não é um jornal que ele lê todo dia, nem ficou sabendo da citação. Todo esse procedimento é um absurdo, dado que o Jaime é uma pessoa pública e todos conhecem o endereço da sede do MST em Caruaru, onde trabalha”, explica o advogado de defesa Fernando Prioste.

A prisão preventiva de Amorim acabou sendo efetuada em 21 de agosto do ano passado, no momento em que deixava o enterro de um companheiro do MST assassinado no dia anterior. O primeiro pedido de hábeas corpus, impetrado pela defesa no mesmo dia junto ao Tribunal de Justiça de Pernambuco, foi negado. Entendendo que o Judiciário do estado tinha tomado claramente partido contra o dirigente do MST, a defesa fez um novo pedido de hábeas corpus diretamente ao STJ, concedido pelo Ministro Nilson Naves, que julgou improcedentes todos os argumentos que levaram ao pedido de prisão.

Analisando o caso e as acusações contra Amorim, o Juiz de Direito do Rio de Janeiro, Rubens Casaro, considera que houve aí o que chamou de criminalização secundária, caracterizada pela caricaturização do réu.

“Jaime foi caracterizado como incorporação do mal, uma ameaça às ‘pessoas de bem’, representadas pelo juiz. Antes de qualquer coisa, porém, houve uma violação básica da lei, já que a Justiça nem poderia pedir a prisão preventiva. Ou seja, se julgado e condenado, a pena pelos crimes imputados ao Jaime seria alternativa, não a reclusão”, explica Casaro, para quem, nesta lógica, o pedido de prisão preventiva foi ilegal.

Ofensiva parlamentar
Concomitante à judicialização dos conflitos agrários no âmbito do Judiciário, os movimentos sociais estão enfrentando agora uma ofensiva mais organizada também dentro do Legislativo.

Na avaliação de defensores dos direitos humanos e dos próprios movimentos, a atuação do Judiciário acabou sendo um reflexo da mudança de comportamento do governo com a eleição de Lula. Ou seja, diferentemente da gestão passada, que assumiu claramente o papel de repressor das mobilizações populares, o atual governo tem conferido, senão legitimidade, ao menos tolerância aos instrumentos de pressão, considerados importantes para a aceleração do processo de reforma agrária.

Exemplo disso é que, de acordo com Darci Frigo, advogado da ONG Terra de Direitos, em recente audiência pública sobre conflitos na região de Tailândia, sudeste do Pará, o Ouvidor Agrário Nacional, Desembargador Gercino José da Silva Filho, teria afirmado que “terras griladas e improdutivas podem e devem ser ocupadas”.

Diante desta nova postura do Executivo frente a questão fundiária, grandes fazendeiros e operadores do agronegócio passaram a organizar uma ofensiva pesada de defesa de seus interesses no Congresso Nacional. A bancada ruralista, que em 2006 emplacou um relatório paralelo na CPMI da Terra com projetos de lei que, se aprovados, grosso modo transformam os movimentos sociais em terroristas, em 2007 se qualificou e fortaleceu com o apoio de parlamentares conservadores de outras áreas, como os evangélicos e empresários, chegando a um total de 220 nomes só na Câmara.

Segundo o advogado Marcos Rogério de Souza, assessor parlamentar do deputado Iran Barbosa (PT-SE), a agenda da bancada ruralista não segue a lógica governistas/oposição, mas atua transversalmente no Congresso na defesa de seus interesses. Fortalecidos com o prestigio do agronegócio junto ao presidente Lula, os ruralistas têm cerca de 1400 projetos de lei em tramitação, 400 dos quais “importantes” e 26 “prioritários”.

Entre os últimos, afirma Souza, estão propostas como diminuição das reservas legais previstas no Código Florestal, a atribuição ao Congresso do processo demarcatório de Terras Indígenas e da fixação dos índices de produtividade, a flexibilização das leis que regulamentam os contratos de trabalho no campo, e, sobretudo, os dois Projetos de Lei da CPMI da Terra, que propõe dar conotação jurídica de ato terrorista às ocupações de terra para pressionar a realização da reforma agrária, e que o esbulho possessório (definido no texto como saque, invasão, depredação ou incêndio de propriedade alheia) com fins políticos (com o fim de manifestar inconformismo político ou de pressionar o governo a fazer ou deixar de fazer alguma coisa) seja enquadrado como crime hediondo (pena de reclusão de três a dez anos).

De acordo com Souza, a estratégia de ataque aos movimentos se estende também à recém criada CPI das ONGs no Senado, que deve focar sua artilharia nas organizações rurais, e até no projeto anti-terror em fase de elaboração pelo Executivo.

“Estamos perdendo espaço no Congresso”, avalia o advogado, mas avisa que já está se conformando na Câmara uma frente parlamentar de amigos da reforma agrária (leia Parlamentares articulam bloco em defesa da reforma agrária), a ser lançada no início de abril, e que trabalhará as pautas sociais do campo, como a aprovação, pelo Executivo, da mudança dos índices de produtividade rural, um Projeto de Lei que barre a emissão de liminares a toque de caixa, a Proposta de Emenda Constitucional que torna passível de desapropriação terras onde foi encontrado trabalho escravo (PEC do trabalho escravo), a PEC que limita o tamanho de propriedade no Brasil, entre outros.

“Os movimentos nunca viram o Parlamento como espaço a ser disputado. Isso terá que mudar”, considera Souza.

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