Justiça determina “anonimização” de partes do relatório da Comissão Nacional da Verdade

Judiciário determinou que nome de ex-coronel da PM identificado pela CNV seja tarjado em documentos disponibilizados pelo Arquivo Nacional

Em uma decisão sem precedentes, a Justiça Federal determinou que partes de pelo menos seis páginas do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), documento preservado pelo Arquivo Nacional, sejam vetadas. A decisão é resultado de um processo judicial movido por Daniel Queiroga Gomes, Marcos Olinto Novais de Sousa, Leandro Ribeiro Novais de Sousa e Maria Fernanda Novais de Souza Cavalcanti contra a União Federal, no final de 2019. O julgamento da ação, cujo conteúdo tramita sob segredo de justiça, determinou a “anonimização” de todas as menções publicadas no relatório final da CNV sobre Olinto de Sousa Ferraz, ex-coronel da Polícia Militar de Pernambuco.

Olinto de Sousa Ferraz dirigia a Casa de Detenção do Recife quando Amaro Luiz de Carvalho (1931-1971), militante do Partido Comunista Revolucionário (PCR), foi morto no cárcere. À época, a Secretaria de Segurança de Pernambuco divulgou que Amaro havia sido envenenado por seus próprios companheiros de cela. A versão, no entanto, foi contestada pela perícia do caso. De acordo com levantamento realizado pelo portal Memórias da Ditadura, o atestado de óbito do militante assassinado registra que sua morte se deu por “hemorragia pulmonar decorrente de traumatismo de tórax por instrumento cortante”.

A Comissão Nacional da Verdade, que investigou os crimes da última ditadura civil-militar entre 2011 e 2014, concluiu que a morte de Amaro Luiz de Carvalho se deu em decorrência de ação perpetrada por agentes do Estado brasileiro. A CNV recomendou, ainda, a continuidade das investigações sobre as circunstâncias da morte e a identificação e responsabilização dos agentes envolvidos no assassinato.

O Volume III do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que sistematiza os casos de morte e desaparição durante o período investigado, apresenta Olinto de Sousa Ferraz como integrante da “cadeia de comando do órgão envolvido com a morte” de Amaro Luiz de Carvalho (p. 702). Na página 871 do Volume I do relatório, o nome do ex-coronel da PM de Pernambuco também é mencionado, elencado entre os “agentes de graves violações de direitos humanos”, informação que se repete no Volume II (p. 117).

Acontece que, agora, tais menções só podem ser consultadas nas versões do relatório disponibilizadas pela imprensa, desde 2014. Como resultado do julgamento da ação promovida, nos documentos digitais disponibilizados pelo Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN), as nominações ao ex-coronel aparecem tarjadas em preto:

Ao consultar os documentos no SIAN, o campo “3.1.1 – Especificação do conteúdo” das descrições arquivísticas referencia a Nota Técnica nº 24/2022, emitida pela Coordenação-Geral de Processamento e Preservação do Acervo (COPRA). A nota informa que o processo de “anonimização” dos documentos cumpre às determinações do Parecer de Força Executória nº 01539/2021, da Advocacia Geral da União – que, por sua vez, cumpre às determinações da Justiça.

O Arquivo Nacional começou a tratar do caso em 19 de janeiro deste ano. No Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do AN é possível visualizar a tramitação da demanda, mas não é possível ter acesso ao processo – que também tramita sob condição de restrição.

Há pelo menos outros 20 documentos disponibilizados pelo SIAN que mencionam a atuação do ex-coronel Olinto de Sousa Ferraz durante ao período ditatorial. Os registros provêm de diferentes fundos documentais, todos ligados aos organismos de segurança da ditadura, ainda estão acessíveis e não foi possível apurar se existem determinações para que também sejam tarjados.

Em relação ao relatório da CNV, a Lei nº 12.528/2011 determina que “todo o acervo documental e de multimídia resultante da conclusão dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade deverá ser encaminhado ao Arquivo Nacional para integrar o projeto Memórias Reveladas”. Cabe lembrar que a lei que criou a CNV surgiu no mesmo contexto de outro importante dispositivo legal da democracia brasileira, a Lei nº 12.527, que regula o acesso à informação no país. A Lei de Acesso à Informação determina que “a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior evidência” (Art. 31, V, § 4).

Portanto, a “anonimização” determinada pela Justiça – que pode ser interpretada como censura – não apenas afronta a legislação vigente, como também abre um perigoso precedente para o acesso à informação e ao conhecimento histórico no país. Ao determinar que partes de documentos públicos considerados de guarda permanente e de livre acesso sejam tarjadas, o Poder Judiciário não apenas obstrui a acidentada jornada brasileira por memória, verdade e justiça sobre os crimes da ditadura, como dá aval para a disseminação da censura sobre documentos e informações públicas custodiados nos arquivos brasileiros.
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