De tempos em tempos, um crime brutal alimenta as manchetes da mídia brasileira, causando efêmera comoção popular e despertando uma sede de justiça tão grande quanto a de vigiar e punir os assassinos dentro de nós mesmos. Porém, ao contrário da sentença de condenação, proclamada pelo tribunal-midiático-popular antes mesmo do fim das investigações dos casos Isabela Nardoni e Susane von Richthofen, o caso Eliza Samudio conta com uma testemunha muito relevante a seu favor: o “machismo blindado” pela aliança entre capitalismo e patriarcado.
Mal a pauta da gravidez da modelo Eliza Samudio surgiu na mídia, fez-se coro para taxá-la de prostituta, maria-chuteira e oportunista, enquanto ela tentava provar a paternidade de Bruno Fernandes, goleiro do Flamengo. Até um filme pornô do qual Eliza teria participado surgiu à tona. Ela já havia registrado queixa de agressão contra o goleiro, e, em outubro de 2009, a delegada responsável pela Delegacia de Atendimento à Mulher de Jacarepaguá (RJ) pediu à Justiça medidas de proteção para a jovem. Em entrevista ao Jornal Extra, descreveu as ameaças. Oito meses depois, ela desapareceu, sem que qualquer providência houvesse sido tomada.
Quando o desaparecimento e a suspeita de assassinato voltaram a colocá-la em evidência, as revistas Veja e Isto É, em sintonia com a Rede Globo e com outros tantos veículos de comunicação, também usaram-se do argumento da desqualificação da jovem para dar seu veredito in dubio pro reu. Na capa da Isto É, a foto de Eliza em pose sensual elimina qualquer possibilidade de discurso a seu favor. Já na Veja, as palavras-chave “orgias”, “traição” e “horror”, deixam semioticamente explícita mensagem de igual teor, a qual nós da Marcha Mundial das Mulheres tratamos por mercantilização do corpo e da vida das mulheres.
A aliança machista logo se articulou para defender o jogador, repetindo episódio ocorrido com o próprio Bruno em março desse ano, quando indagou, em defesa do amigo e colega de trabalho Adriano: “Quem nunca saiu na mão com a mulher?”. Como não poderia ser diferente, no Twitter, a rede social do momento, logo o nome de Eliza constava entre as palavras mais citadas, e, reflexo dessa aliança, a maioria continha condenações moralistas e piadas sexistas. Mas o que parece ter passado despercebido é que o tópico deveria ser Bruno, e não Eliza.
A culpa é do estuprador, e não da mulher que estava de saia, tampouco da saia de Geisy Arruda. A questão não é o comportamento sexual da moça – que, convenhamos, também não engravidou sozinha – e sim o comportamento violento do goleiro. Mas Bruno já está absolvido pela mídia e pelo povo. No Programa “Mais Você” dessa sexta (09/07), exaltava-se a origem humilde do rapaz e as boas ações realizadas por ele na comunidade, nos levando a pensar que “ele não é tão mau assim, vai”. Somam-se a isso o depoimento de crianças dizendo que sonham em serem jogadores de futebol profissionais e o quanto ficarão decepcionadas se Bruno for culpado; e a entrevista, em clima familiar, com Lúcio, jogador da Seleção Brasileira, mostrando como é um bom pai e marido.
As investigações conduzem à incriminação do jogador e de sua trupe de amigos-primos de apelidos e tatuagens estranhos. No entanto, a conclusão do inquérito pouco importa quando o assunto é violência de gênero. Os juízes da comunicação e boa parte do júri popular brasileiro, sejam eles rubro-negros ou não, há muito já deixaram a rivalidade e as evidências de lado em prol da manutenção da tal aliança.
No fundo, Bruno não pode ser condenado, porque representa o futebol-além-do-bem-e-do-mal. Puni-lo publicamente seria desvelar que a violência contra a mulher existe, e que os todo-poderosos-boleiros, além de baterem em prostitutas e patricinhas, também assassinam brutalmente mulheres com quem tiveram um filho. O caso também desvela outra cruel realidade: a rede de prostituição alimentada pelo mundo do futebol multimilionário. As tais “festas de jogadores”, nas quais são contratadas dançarinas, atrizes pornôs e prostitutas, muitas das quais acabam vítimas de agressão física, são apenas uma faceta da indústria do sexo, que levou 40 mil prostitutas à África do Sul, só no período da Copa do Mundo de 2010, e que movimenta, por ano, de 5 a 7 milhões de dólares.
No país em que uma mulher é violentada a cada 15 segundos, e dez mulheres são assassinadas por dia, as vítimas de agressão e o movimento feminista lutam para que a Lei Maria da Penha seja, de fato, cumprida, e para que, um dia, possamos viver em um mundo livre de machismo e de violência.